O Novo Marco Legal da Inteligência Artificial no Brasil e os rumos da Responsabilidade Civil

Coluna Direito Civil

Pensar na acomodação da responsabilidade civil ao novo contexto de danos oriundos de tecnologias não é uma tarefa simples. A transformação do mundo físico com o advento da internet e das novas tecnologias é inegável. Nunca foi tão fácil se comunicar com qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, a qualquer momento. Vivemos na era da conexão. Uma era com promessas de desenvolvimento, informação, progresso e integração. Para muita gente, sequer é possível elencar o que, afinal, poderia dar errado.

No entanto, diante de uma sociedade hiperconectada é fundamental que haja uma compreensão mínima acerca dos riscos que estão envolvidos no desenvolvimento tecnológico. Isso porque a hiperconectividade é um dos principais fatores que estimula a modificação decisiva do modelo de sociedade de consumo atual e a compreensão dos direitos envolvidos.

Em uma perspectiva de hiperconsumo e hiperconexão, o indivíduo deixa de ser somente um sujeito de direito, titular de vontades e autonomia de aquisição, para ser também um objeto, sendo ele mesmo uma mercadoria que serve de vitrine de dados a serem utilizados nos mais variados serviços. E o advento da inteligência artificial potencializa esses efeitos e riscos de uma maneira exponencial.

Na oportunidade da publicação da obra “Responsabilidade Civil e Inteligência Artificial: os desafios impostos pela inovação tecnológica”, sustenta-se que não é adequada a consagração apriorística de regimes únicos de responsabilidade civil, uma vez que a modalidade poderá ser subjetiva ou objetiva a depender das especificidades do caso concreto, máxime tendo em vista os influxos dos âmbitos civis, consumeristas, empresariais ou trabalhistas. Torna-se necessário, portanto, pensar em um sistema de múltiplas responsabilidades, que considere a complexidade, os sujeitos envolvidos e a natureza da relação jurídica posta em apreciação.

Diante da multiplicidade de interesses que orbitam a questão, iniciou-se a discussão de novos textos legislativos e de um marco regulatório específico para a inteligência artificial no Brasil. A regulação assume caráter relevante por ser o norte que direciona o desenvolvimento das novas tecnologias.

O Projeto de Lei n. 21/2020, de autoria do Deputado Eduardo Bismarck e relatoria da Deputada Luísa Canziani, estabeleceu princípios, direitos e deveres para o uso de inteligência artificial no Brasil. O projeto foi aprovado em regime de urgência pela Câmara dos Deputados e seguiu para o Senado Federal, o que, por si só, demonstra a inadequação de sua tramitação, eis que a regulação tecnológica necessariamente demanda uma participação multissetorial, ampla e dialógica.

Em que pese a manifestação parlamentar no sentido de que o texto seria notadamente principiológico, observam-se disposições que restringem ou modificam algumas garantias fundamentais, especialmente no regime de responsabilidade civil. É o caso do art. 6º, VI, do PL, que prevê de modo abstrato a responsabilidade subjetiva como regra geral nos casos de inteligência artificial, desprestigiando a cláusula geral do risco prevista no art. 927 do Código Civil e a análise de caso concreto que norteia a operacionalização dos casos de responsabilidade.

A previsão vulnerabiliza diretrizes fundamentais como a solidariedade social e o direito da vítima à reparação integral de seus danos, caracterizando inegável retrocesso no campo do Direito de Danos. No mesmo sentido, o PL não enfatizou suficientemente preceitos básicos para a proteção dos direitos fundamentais no ramo do desenvolvimento tecnológico, tais como a transparência e o dever de informação.

Ao restringir a responsabilidade somente à esfera subjetiva, o dispositivo desconsidera que a avaliação da responsabilidade civil como subjetiva ou objetiva depende do caso concreto, notadamente quando se trata de inteligência artificial, cuja aplicação pode ocorrer nas formas e nos contextos mais distintos possíveis[1]. As diferentes características da inteligência artificial trazem distintos desafios regulatórios e se refletem também nos diferentes regimes de responsabilização[2]. Para além disso, verifica-se que não há uma adequada definição de quem seriam esses agentes mencionados no dispositivo, o que torna ainda mais difícil a compreensão da imputação de responsabilidade[3].

Diante de toda a problemática, houve a instalação de uma Comissão de Juristas, instituída pelo ato do Presidente do Senado n. 4 de 2022, destinada a subsidiar a elaboração de minuta de substitutivo para instruir a apreciação dos Projetos de Lei nºs 5.051, de 2019, 21, de 2020, e 872, de 2021, que versam sobre o marco de princípios, regras, diretrizes e fundamentos para regular o desenvolvimento e a aplicação da inteligência artificial no Brasil.

Em 6 de dezembro de 2022, a Comissão de Juristas publicou parecer em que apresenta proposta de substitutivo aos projetos de lei, trazendo, simultaneamente, avanços e pontos que ainda precisam de atenção e cautela. O texto avança ao buscar a conciliação entre uma abordagem baseada em riscos e uma modelagem regulatória baseada em direitos fundamentais, incluindo proposições de gestão de risco, de avaliação de impacto, de ampliação da transparência e de capacidade de contestação desses sistemas[4]. Por outro lado, ainda há muito a ser discutido no que tange ao uso do reconhecimento facial, segurança pública, autoridade competente e riscos excessivos[5].

No que tange à responsabilidade civil, o substitutivo optou, no art. 27, por um regime que abranja o fornecedor e o operador de sistema de IA, evidenciando que sempre que algum desses agentes causar dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, será obrigado a repará-lo integralmente, independentemente do grau de autonomia do sistema[6].

Em continuidade, estipulou-se uma diferenciação no capítulo da responsabilidade civil: quando se tratar de sistema de IA de alto risco ou de risco excessivo, o fornecedor ou operador respondem objetivamente pelos danos causados, na medida da participação de cada um no dano, ao passo em que, tratando-se de IA que não seja de alto risco, a culpa do agente causador do dano será presumida, aplicando-se a inversão do ônus da prova em favor da vítima.

A previsão do substitutivo é semelhante à proposta demonstrada na Resolução do Parlamento Europeu de 3 de maio de 2022 sobre a inteligência artificial na era digital, onde se salienta que

embora os sistemas de IA de alto risco devam ser abrangidos pela legislação em matéria de responsabilidade objetiva, a que se deve juntar um seguro obrigatório, todas as outras atividades, dispositivos ou processos baseados em sistemas de IA que causem danos ou prejuízos devem continuar a estar sujeitos à responsabilidade culposa; considera que as pessoas afetadas devem, contudo, beneficiar da presunção de culpa por parte do operador, a menos que este seja capaz de provar que respeitou o seu dever de diligência[7].

A modalidade de culpa presumida é um estágio intermediário em que a culpa mantém a sua condição de requisito indispensável para a configuração do dever de indenizar, gozando, no entanto, da inversão do ônus da prova, de modo que a responsabilidade será afastada se o ofensor comprovar que não agiu com imprudência, negligência ou imperícia.

De nítida inspiração europeia, compete refletir se a importação, nesse caso, é compatível e adequada com a realidade brasileira. Ao estipular a culpa presumida para os danos causados para sistemas que não sejam caracterizados como alto risco, o substitutivo, em realidade, determina que a regra geral será a responsabilidade subjetiva, relegando as hipóteses de responsabilidade objetiva para situações excepcionais de risco alto ou excessivo.

Retorna-se, portanto, ao ponto inicial de discussão sobre a determinação apriorística de uma responsabilidade subjetiva para regimes de IA, que enfrenta diversas dificuldades, especialmente no que tange à complexidade da cadeia de produção, à verificação da culpa e do causador e à determinação de quais sistemas serão considerados de alto ou baixo risco.

Questiona-se, ainda, se há efetiva necessidade de uma alteração legislativa desse teor no campo da responsabilidade civil, considerando a cláusula geral do risco existente no ordenamento jurídico brasileiro, a escassa maturação do debate e a fragilização da reparação integral da vítima com a centralização de uma responsabilidade subjetiva, ainda que acompanhada da presunção de culpa.

Ademais, quando se determina que os fornecedores ou operadores responderão objetivamente pelos danos causados na medida da participação de cada um no dano, o texto parece indiciar obstáculo no acesso à justiça pela vítima, eis que a averiguação da participação de cada agente no dano é especialmente complexa em cadeias de produção de sistemas de inteligência artificial.

Fica a expectativa sobre como será apreciado o relatório da Comissão de Juristas, pontuando-se que a relevância da regulação da inteligência artificial e a multiplicidade de seus impactos torna necessário o aprofundamento da discussão por todos os setores interessados: iniciativa privada, sociedade civil, academia e Estado. Na medida em que o desenvolvimento proporcionado pela IA é crescente e se alastra por todos setores sociais, torna-se imprescindível debater o que o Legislativo brasileiro entende como termos de uso, limites e responsabilidades nesse ramo tecnológico, com a consciência de que o debate está apenas começando e que a reparação integral do dano da vítima deve ser uma diretriz imprescindível para a compreensão do tema.

 


Gabriela Buarque

Advogada. Mestra em Direito pela Universidade Federal de Alagoas. Secretária-Geral da Comissão de Inovação, Tecnologia e Proteção de Dados da OAB/AL. Coordenadora do GT de Inteligência Artificial e Novas Tecnologias no Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN).

 

Notas:

[1] LABORATÓRIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS E INTERNET. Nota técnica ao substitutivo ao PL 21/2020. Disponível em: https://lapin.org.br/wp-content/uploads/2021/09/notatecnica-ia-pl.pdf. Acesso em: 01 fev. 2023. P. 35.

[2] LABORATÓRIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS E INTERNET. Nota técnica ao substitutivo ao PL 21/2020. Disponível em: https://lapin.org.br/wp-content/uploads/2021/09/notatecnica-ia-pl.pdf. Acesso em: 01 fev. 2023. P. 35.

[3] LABORATÓRIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS E INTERNET. Nota técnica ao substitutivo ao PL 21/2020. Disponível em: https://lapin.org.br/wp-content/uploads/2021/09/notatecnica-ia-pl.pdf. Acesso em: 01 fev. 2023. P. 35.

[4] COALIZÃO DIREITOS NA REDE. Nota técnica sobre a proposta do novo texto do marco legal da IA. Disponível em: https://direitosnarede.org.br/2022/12/19/nota-tecnica-sobre-a-proposta-de-novo-texto-do-marco-legal-da-ia/. Acesso em: 31 jan. 2023.

[5] COALIZÃO DIREITOS NA REDE. Nota técnica sobre a proposta do novo texto do marco legal da IA. Disponível em: https://direitosnarede.org.br/2022/12/19/nota-tecnica-sobre-a-proposta-de-novo-texto-do-marco-legal-da-ia/. Acesso em: 31 jan. 2023.

[6] BRASIL. CJUSBIA. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2504 . Acesso em: 31 jan. 2023.

[7] UNIÃO EUROPEIA. Resolução do Parlamento Europeu de 3 de maio de 2022 sobre a inteligência artificial na era digital. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-9-2022-0140_PT.html. Acesso em: 31 jan. 2023.

Dia do bibliotecário: os guardiões das chaves do conhecimento

Instituído através do Decreto nº 84.631, de 1980, o Dia do Bibliotecário homenageia Manuel Bastos Tigre, considerado o primeiro bibliotecário concursado do Brasil. Nascido em 12 de março de 1882, Manuel Tigre foi aprovado com honras no concurso do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Trabalhou por dois anos na Biblioteca Nacional, assumindo, em seguida, a direção da Biblioteca Central da Universidade do Brasil. Lá, desempenhou diversas atividades junto ao reitor da instituição, mesmo depois de aposentado. 

A história da sua carreira demonstra a paixão de quem abraçou a missão de ser o guardião das chaves do conhecimento. Engenheiro de formação, trocou a ocupação pela biblioteconomia após conhecer o bibliotecário Melvil Dewey, que instituiu o Sistema de Classificação Decimal. Em 1915, aos 33 anos de idade, Manuel Tigre assumiu de vez a nova profissão.

Desafios à profissão no Brasil

Segundo dados do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP), mantido pela Secretaria Especial da Cultura do Ministério do Turismo, entre 2015 e 2020, o Brasil perdeu ao menos 764 bibliotecas públicas.

Em 2015, a base de dados contava com 6.057 bibliotecas públicas no país. Número que caiu para 5.293 em 2020.

Atualmente, o país só tem 21,6 mil formados em Biblioteconomia. Por lei, é preciso ter diploma para trabalhar na área. Para especialistas em biblioteconomia, a queda no número de bibliotecas revela um dos grandes desafios da profissão nos dias de hoje.

Homenagem merecida

Embora os desafios sejam inúmeros, a FÓRUM reconhece a importância de todos os bibliotecários e bibliotecárias do Brasil. A todos esses profissionais, nosso profundo respeito e admiração pelo empenho em preservar o acesso ao conhecimento.

Como contratar obras e serviços de engenharia segundo a Nova Lei de Licitações?

Contratar obras e serviços de engenharia a partir da Nova Lei de Licitações – Lei n ° 14.133/21 se tornou uma das principais necessidades de aperfeiçoamento da Administração Pública brasileira. Isso porque, o novo marco legal trouxe importantes novidades relacionadas ao tema, tornando mais sofisticado o processo competitivo e a execução dos acordos para esses objetos. Neste mês, por exemplo, a Confederação Nacional de Municípios (CNM) revelou que mais de 7 mil obras públicas estão paradas no Brasil. Os investimentos somam R$ 9,32 bilhões e uma série de prejuízos econômicos para a Administração Pública e sociais para a população. O planejamento inadequado dos projetos de engenharia agrava o cenário.

Entre os serviços parados estão os “esqueletos” de escolas, unidades de saúde, pavimentação de estradas, canalização de esgoto e iluminação pública. Especialistas apontam que os principais problemas foram encontrados nas licitações realizadas sem planejamento estruturado, sem garantia de orçamento para seu término e, ao longo da execução, há constantes alterações dos projetos, atrasos em medições, empenho e pagamentos pelos serviços. 

A Nova Lei de Licitações e os caminhos possíveis

Dirigente do Tribunal de Contas da União (TCU), com vasta experiência na área, Rafael Jardim Cavalcante, que também é autor da FÓRUM, explica que os dados da CNM podem ser ainda mais alarmantes. Um acórdão do TCU (acórdão nº 1.079 de 2019) mostra que 38 mil construções podem estar paradas ou abandonadas no Brasil. E, segundo ele, “com obras interrompidas, é menos crescimento, desenvolvimento, mais inflação e déficit fiscal para o país”.

No entanto, ainda de acordo com o especialista, a Nova Lei de Licitações – Lei nº 14.133/21, se bem adotada, representa a possibilidade do país apresentar melhores resultados em relação ao tema.

“Essa fase de planejamento, tudo o que é preciso fazer para garantir um bom objeto, a Nova Lei nº 14.133/21 tratou de dizer”.

Em entrevista inédita concedida para a Editora FÓRUM, Rafael Jardim explica como esse processo deve acontecer, quais etapas são necessárias e de que forma a Nova Lei pode e deve ser aplicada pela Administração Pública na contratação de obras.

Assista abaixo à entrevista completa:


Conheça 5 fundamentos sobre obras e os serviços de engenharia segundo a Lei nº 14.133/21

1 – Na execução indireta de obras e serviços de engenharia, são admitidos os seguintes regimes:

I – empreitada por preço unitário;

II – empreitada por preço global;

III – empreitada integral;

IV – contratação por tarefa;

V – contratação integrada;

VI – contratação semi-integrada;

VII – fornecimento e prestação de serviço associado.

 

2 – A Administração poderá contratar a execução de obras e serviços de engenharia pelo sistema de registro de preços, desde que atendidos os seguintes requisitos:

I – existência de projeto padronizado, sem complexidade técnica e operacional;

II – necessidade permanente ou frequente de obra ou serviço a ser contratado.

 

3 – As licitações de obras e serviços de engenharia devem respeitar, especialmente, as normas relativas à:

I – disposição final ambientalmente adequada dos resíduos sólidos gerados pelas obras contratadas;

II – mitigação por condicionantes e compensação ambiental, que serão definidas no procedimento de licenciamento ambiental;

III – utilização de produtos, de equipamentos e de serviços que, comprovadamente, favoreçam a redução do consumo de energia e de recursos naturais;

IV – avaliação de impacto de vizinhança, na forma da legislação urbanística;

V – proteção do patrimônio histórico, cultural, arqueológico e imaterial, inclusive por meio da avaliação do impacto direto ou indireto causado pelas obras contratadas;

VI – acessibilidade para pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida.

 

4 – Nas contratações de obras e serviços de engenharia de grande vulto, poderá ser exigida a prestação de garantia, na modalidade seguro-garantia, com cláusula de retomada prevista no art. 102 desta Lei, em percentual equivalente a até 30% (trinta por cento) do valor inicial do contrato.

 

5 – O valor previamente estimado da contratação deverá ser compatível com os valores praticados pelo mercado, considerados os preços constantes de bancos de dados públicos e as quantidades a serem contratadas, observadas a potencial economia de escala e as peculiaridades do local de execução do objeto.

Trechos extraídos do livro Nova Lei de Licitações – passo a passo de Sidney Bittencourt.

Solução em capacitação

Após 2 anos de espera, o 18º Fórum Brasileiro de Contratação e Gestão Pública – FBCGP, evento de maior tradição acerca do tema no país, está de volta, congregando os principais estudiosos no assunto, a expertise e a tradição da editora líder em Direito Público no Brasil.

Nesta edição, o FBCGP será palco dos principais debates sobre compras públicas, acompanhando os primeiros dias da obrigatoriedade da Nova Lei de Licitações e Contratos – Lei nº 14.133/21. A Nova Contratação Pública será o tema central do evento que vai debater desde a autonomia do Controle Externo aos aspectos econômico-financeiros dos contratos, passando pela análise das obras de engenharia, pelo papel do TCU, apresentando, também, uma das tendências mundiais acerca do assunto: sustentabilidade e contratação pública sob a análise de renomados especialistas, além do selo de excelência da FÓRUM e em parceria com o Observatório da Nova Lei de Licitações.

Grandes nomes do Direito no Brasil estão confirmados ne estarão em Brasília-DF, nos dias 11 e 12 de maio de 2023. 

O grupo de renomados especialistas acompanha e se debruça no estudo, sistematização e aplicação da Lei nº 14.133/21. Veja abaixo alguns nomes já confirmados*:

Bruno Dantas

Presidente do Tribunal de Contas da União (TCU) e da INTOSAI, Bruno Dantas possui pós-doutorado em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

Benjamin Zymler

Ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), Benjamin Zymler é mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília – UnB, com vasta experiência em Direito Administrativo e Direito Constitucional.

Marçal Justen Filho

Advogado, Marçal Justen Filho é doutor em Direito do Estado pela PUC-SP e professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

Joel Niebuhr

Advogado, doutor em Direito Administrativo pela PUC/SP, Joel Niebuhr também é professor convidado de cursos de especialização em Direito Administrativo.

Jacoby Fernandes

Jacoby Fernandes é mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professor de Direito Administrativo, consultor e conferencista.

Cristiana Fortini

Responsável pela coordenação científica do FBCGP/2023, Cristiana Fortini é doutora em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e atual presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA).

Tatiana Camarão

Assessora Técnica Especializada da Presidência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Tatiana Camarão é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e professora da pós-graduação da PUC/MG.

Marcos Nóbrega

Conselheiro Substituto do Tribunal de Contas de Pernambuco (TCE-PE), Marcos Nóbrega é doutor em Direito e também é professor adjunto IV da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). 

Victor Amorim

Analista Legislativo do Senado Federal desde 2010, Victor Amorim é membro do Comitê Gestor da Rede Nacional de Contratações Públicas, doutorando em Constituição, Direito e Estado pela Universidade de Brasília (UnB) e mestre em Direito Constitucional.

Rafael Sérgio de Oliveira

Procurador Federal da Advocacia Geral da União (AGU), Rafael de Oliveira é mestre em Direito e pós-graduado em Direito da Contratação Pública pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

Daiesse Jaala

Advogada e mestre em Direito pela Universidade Nove de Julho, atualmente é auditora de Controle Externo (TCM-SP), atuando na área de Direito Público, em especial Direito Financeiro e Administrativo. 

Gabriela Pércio

Advogada, mestre em Gestão de Políticas Públicas, além de prestar consultoria para a Administração Pública em Licitações e Contratos há mais de 15 anos. Atualmente também é vice-presidente do Instituto Nacional da Contratação Pública – INCPL.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro

Doutora em Direito pela USP, Maria Sylvia Zanella também é professora, na mesma Universidade, do programa de pós-graduação em Direito. É membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.

*Palestrantes sujeitos a alterações

5 motivos para participar do Programa de Capacitação FÓRUM

O Programa de Capacitação FÓRUM 2023 é a mais completa qualificação em Direito e Gestão Pública do país, com cursos elaborados por renomados doutrinadores, organizados em áreas do conhecimento e ofertados ao longo do ano. As soluções em qualificação têm o objetivo de apoiar as instituições no treinamento perene de suas equipes, proporcionando o aprendizado efetivo e a ampliação da visão frente aos desafios vivenciados na esfera do Direito.

Depois do sucesso da 1ª edição em 2022, o Programa de Capacitação FÓRUM deste ano reunirá 4 grandes eixos temáticos, que são: Nova Lei de Licitações e Contratos; Meios alternativos de solução de conflitos no Setor Público; ESG nas Instituições Públicas; e Inovações na Administração Pública.

Confira agora os 5 motivos para participar do Programa de Capacitação FÓRUM edição 2023

1) Faça melhores escolhas com o poder do conhecimento

A partir de uma agenda extensa e ousada, o Programa foi criado para solucionar os desafios dos gestores públicos no sentido de formar, capacitar, fornecendo alicerce científico e prático aos atores envolvidos na Administração Pública. As soluções em capacitação podem ser contratadas em conjunto ou separadamente, atendendo às necessidades de cada organização.

Com mais de três décadas de trajetória e 20 anos de experiência na promoção de cursos e eventos, a FÓRUM tem a convicção de que o conhecimento bem aplicado melhora o mundo. O Programa de Capacitação FÓRUM carrega esse propósito na base de sua elaboração. Proporciona aos participantes o poder de fazer escolhas seguras por meio do acesso a um conteúdo vasto, diversificado e rico.

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2) Cursos online

A formação contempla possui 15 cursos online. As aulas acontecerão ao vivo em plataforma segura, consistente e integrativa. Os participantes poderão interagir de qualquer lugar do país com os professores, sanar dúvidas e fazer parte de uma vasta rede que congrega profissionais e estudiosos de diversas regiões do país. As aulas ficarão gravadas e disponíveis por um prazo de 15 dias para os alunos que não puderem acompanhar as transmissões em tempo real.

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3) Exemplos práticos

Nesta edição, os exemplos práticos serão amplamente abordados nos cursos. São casos reais ou hipotéticos, envolvendo situações diversas do dia a dia dos profissionais e estudantes. Esses exemplos poderão ser apresentados pelos próprios participantes e também pelos professores, que farão os estudos de caso em sala de aula.

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4) Oportunidade de networking

O Programa de Capacitação da FÓRUM está presente em diversas regiões do país, por meio da expertise da editora que lidera o Direito Público no Brasil, além de reunir os principais especialistas e estudiosos do Direito e ciências afins. Os cursos aproximam os profissionais de realidades diversas para o compartilhamento de conhecimento, ideias, desafios e oportunidades.

Confira abaixo alguns relatos dos participantes da primeira edição do programa.

Curso: Implementação Estrutural da Nova Lei de Licitações

“Minha experiência com aulas online e com o primeiro curso da Editora Fórum foi maravilhosa. Parabenizo a todos os professores e mediadores e à organização do curso pelo excelente atendimento, organização e material apresentado e disponibilizado. Espero futuramente participar de outros cursos e eventos dessa editora.”

Renata dos Santos Fonseca | Ministério Público do Estado do Pará | Auxiliar de Administração

Curso: Curso Planejamento das Contratações: ETP, TR e Estimativa de Despesas

“Os cursos que tenho realizado nesta plataforma têm contribuído bastante para minha atualização de conhecimento, trazendo diferentes pontos de vista e opiniões sobre temas que estão presentes no dia a dia. Só tenho a agradecer.”

Edson de Souza | Tribunal de Contas do Estado do Pará | Auditor Controle Externo

Curso: A Probidade Administrativa e as Sanções Aplicáveis em Virtude da Prática de Atos de Improbidade Administrativa I

“O curso ministrado foi de extrema relevância para a atualização profissional e efetivo em promover o aprofundamento sobre o tema”.

Phâmela Sinary Nascimento Bento | Auditor Técnico de Controle Externo

Curso: Sanções Administrativas na Lei Nº 14.133/2021: Como se Adequar às Novas Diretrizes?

“O curso correspondeu às minhas expectativas, os professores são muito didáticos, o que deixa as aulas fluírem de uma forma maravilhosa. E não menos importante, o assunto é repassado de forma completa. Recomendo aos colegas que façam o curso.”

Karen Serruya | Procuradoria Geral do Estado | Assessora Jurídica

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5) Acesso gratuito aos conteúdos diversos com selo de qualidade FÓRUM

Os alunos ganharão livros digitais com conteúdo atualizado e extremamente relevante, disponibilizados através da loja digital da FÓRUM. Receberão, ainda, materiais de apoio elaborados pelos professores.

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Direito e interlocução entre saberes. Um bom começo.

Coluna Direito Civil

É costume do gênero humano trabalhar com marcos temporais no decorrer da vida. O tempo, “compositor de destinos”, como diz o poeta[1], costuma impor ritmos à vida das pessoas, ligando-as às noções de início, fim e, não menos comumente, recomeço. Nesse aspecto, o alvorecer de um ano novo – o que no Brasil costuma acontecer após o carnaval – é sempre um momento em que se traçam metas, iniciam-se projetos, verbalizam-se novos desejos. No bem trabalhado imaginário popular, tempo de recomeçar.

Na experiência acadêmica não acontece de forma diferente e o iniciar do ano – até pela ligação dessa experiência com o ensino – serve a uma organização por parte do pesquisador, seja ele aluno ou professor, daquilo que pode ser começado e também do que deve ser finalizado.

O profissional do direito que precisa ou quer se aprofundar em determinada área ou simplesmente se dedicar a um estudo específico que possa lhe proporcionar um aprendizado que o auxiliará na prática, utiliza comumente tal período para maturar tais ideias.

O fato é que ao estudante, ao professor, ao pesquisador e ao operador do direito, entre outros atores, não é dado ficar inerte quanto ao que se aproxima de sua atividade em termos teóricos, deixar de perceber o que acontece nos Tribunais, ficar desatento aos novos métodos, sob pena de não absorver da maneira correta, ou melhor expressando, adequada, o que se lhe oferece de novas inquietações da doutrina ou da (re)leitura de pensamentos já consolidados, mas não definitivamente engessados.

O planejamento de uma pesquisa, a redação de um artigo e até mesmo de uma peça processual, inobstante suas diferenças estruturais e ontológicas – muitos são os que defendem que a linguagem prática, melhor compreendida como forense, deve estar apartada da acadêmica[2] – carrega a bagagem do conhecimento e da experiência do seu autor. As novas tecnologias têm trazido os mais diversos benefícios a tal prática, incluindo as metodologias que valorizam o aprendizado através das experiências do homem e da mulher nos ambientes ou universos a que estão ligados, o que importa em uma forma enriquecedora de aquisição de conhecimento. Entretanto, os diversos tipos metodológicos de apreensão da realidade do mundo – e aqui se refere ao mundo jurídico – não devem estar isolados. Pelo contrário, é extremamente importante a interlocução entre os saberes, o conhecimento interdisciplinar, a abertura da mente a novos horizontes.

Um exemplo frisante é o estudo da filosofia pelo jurista. Na experiência da graduação não se percebe maior entusiasmo com o pensamento filosófico. Talvez seja algo ligado à falta de um bom treino nessa seara nos ensinos fundamental e médio. Ao estudante de direito, que em geral tem essa disciplina nos primeiros períodos do currículo, não é dado perceber a importância do estudo da filosofia para as diversas atividades relacionadas aos cursos jurídicos.

A filosofia amplia os espaços da mente, tornando-os aptos a serem ocupados por uma indiscutível diversidade de pensamentos. A utilização da lógica, por exemplo, é a melhor forma de desenvolver argumentos e exercer a retórica – aqui sem distinção entre um trabalho científico ou uma manifestação prática em um processo judicial ou um parecer decorrente de uma consulta.

Do mesmo modo, percebe-se que muitos dos conceitos hoje utilizados pelo direito positivo têm sua origem nos estudos filosóficos, em especial, do período compreendido entre o final século XVIII e boa parte do século XIX, quando se consolidam os valores expressados pela verve revolucionária, em um manancial de expressões que terminam por se ligar ao direito

E se é de direito civil que trata esta Coluna, o direito civil constitucional – metodologia difundida no Brasil pelas Universidades do Estado do Rio de Janeiro e Federais do Paraná e Pernambuco, a partir dos ensinamentos dos mestres italianos Stéfano Rodotá e Pietro Perlingieri – é um terreno onde se colhe muito do pensamento do filósofo Immanuel Kant (1724-1804).

A filosofia kantiana traz em si valores caros aos movimentos revolucionários do final do século XVIII, quando o poder absoluto do Estado sofria o abalo provocado pelos movimentos burgueses, os quais, por sua vez, conduziram a mudança de paradigmas, voltando-se para os ideais da liberdade, da igualdade e da fraternidade, espraiando-se da França ao mundo ocidental.

A massa de trabalhadores e miseráveis que sofriam os efeitos da concentração do Poder absoluto, entretanto, apesar de servirem como força humana para a revolução, permaneceram à margem do reconhecimento e garantia concretos dos valores revolucionários. Tais valores liberais não se sustentavam materialmente, mas apenas de maneira formal, uma vez que o direito reconhecia como indivíduo aquele que detinha a propriedade privada, que empregava trabalhadores e chefiava famílias.

O advento da Modernidade, com o auxílio da formação do Estado liberal e do liberalismo econômico, quando da passagem para o século XIX, tratou de verter sobre o homem a noção de igualdade. Todos seriam iguais, sem que a lei os distinguisse por credo, status econômico, classe social ou qualquer outro critério.

E o que se observa é que essa igualdade, que se compreende formal por não ser realizada concretamente, porém brotar de comando normativo fundado no aforismo “[…] todos são iguais perante a lei”, apenas dita uma situação jurídica na qual não se contemplam as vicissitudes encontradas em decorrência do exercício da liberdade então proclamada.

Como observa Pietro Perlingieri, a concepção reinante à época era a do indivíduo atomizado, considerado como valor pré-social, e que prescindia da relação com os outros .

Assim é que a igualdade formal, a qual, repita-se, configurou-se em uma das maiores conquistas da humanidade, passou a se consubstanciar em fonte de grandes desigualdades. Sensível aos influxos trazidos, entre outros aspectos, pela abismal diferença entre os detentores do poder econômico e a força de trabalho de então, as relações jurídicas privadas foram sendo contaminadas por desequilíbrio tal, que, paradoxalmente, tornaram escravizante a liberdade de que se gozava.

São as revoluções burguesas, porém, que universalizam o significado de liberdade e igualdade, promovendo sua inserção na codificação levada a efeito no século XIX, os chamados códigos oitocentistas, que bem traduziram o ideal revolucionário, assim como a ideologia liberal então dominante.

Com o advento do Estado social, a igualdade, concebida até então como um princípio formal, estabelecido para que todos fossem titulares dos mesmos direitos, conforme atribuía a lei, caminha para uma evolução à medida em que se escancaram as desigualdades sociais e econômicas, descortinando a exploração do trabalho humano pela classe dominante, a concentração de renda e o poder econômico exercido pela burguesia. Passa-se a perceber a igualdade em um sentido material ou substantivo, forçando-se a adequação da ordem jurídica vigente às dimensões da justiça social.

No Brasil, a Constituição de 1988, promulgada após Assembleia Constituinte reunida ao final de longo período de autoritarismo decorrente dos anos de ditadura militar, além de normas programáticas, trouxe também força normativa aos direitos e garantias fundamentais, estabelecendo como fundamentos da República a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.

Como objetivos fundamentais da República brasileira, o legislador constituinte elegeu a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização, além da redução das desigualdades sociais e regionais; assim como a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Dentre os fundamentos e objetivos acima transcritos, a dignidade da pessoa humana se destaca como vetor principiológico e é alçado à condição de macroprincípio, por decorrer dele próprio a concretização dos demais fundamentos e o alcance dos objetivos estabelecidos.

Muito se tem debatido sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, em especial acerca de sua eficácia enquanto norma jurídica, dada a prefalada força normativa dos dispositivos das Constituições contemporâneas.

Em geral, o pensamento utilizado pelo operador do direito – aquele que exerce funções jurídicas – é um pensamento prático sobre o direito. Assim atuam os juízes, advogados etc. O filósofo, por sua vez, busca refletir, pesquisar, avançar em seus saberes, que a rigor se constituem mediante uma longa tradição histórica. Há, no entanto e por óbvio, filósofos que pensam o direito. Assim como filósofos que pensam a economia e outros saberes. Sob tal perspectiva, o direito é um dos temas da filosofia. E muitos filósofos se ocuparam de assuntos jurídicos. Assim aconteceu com Kant.

E é na Fundamentação da metafísica dos costumes que Kant apresenta os conceitos que são aqui abordados e outros que precedem a compreensão deles.

Para Kant, o caráter é o modo particular que o ser humano tem de fazer uso de dons naturais ou “talentos do espírito”, como o discernimento, a argúcia de espírito, a capacidade de julgar, e o que chama de “qualidades do temperamento”, que seriam a coragem, a decisão, a constância de propósitos. Segundo ele, esses atributos estariam ligados a uma boa vontade, que por sua vez comandaria os dons da fortuna: poder, riqueza, honra, saúde e todo o bem-estar e contentamento com a sorte, a felicidade. Tanto uns como outros podem se tornar prejudiciais se a vontade não for boa:

A razão, por sua vez, como faculdade prática que é, deve exercer influência sobre a vontade, de tal modo que se mostra apta a atingir um fim que só ela determina, ainda que possa causar dano aos fins da inclinação.

Nesse sentido, Kant introduz o conceito de dever, o qual contém em si o de boa vontade e é retirado do uso vulgar da razão prática, o que, por sua vez, não o aproxima de um conceito empírico.

Prossegue Kant afirmando que “tudo na natureza age segundo leis” e que apenas o ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação dessas leis, o que, segundo ele, seriam os princípios. E como para proceder às ações da lei é necessária a razão, o filósofo conclui que “a vontade não é outra coisa senão razão prática”. Se, entretanto, a vontade – que é a faculdade de escolher o que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como bom – não é determinada por ainda estar sujeita a condições subjetivas, que Kant chama de “móbiles”, ou seja, se a vontade não é em si plenamente conforme a razão, então as ações reconhecidas objetivamente como necessárias se apresentam subjetivamente contingentes e a determinação de uma tal vontade se torna uma obrigação.

Kant denomina de mandamento da razão a representação de um princípio obrigante para uma vontade. A fórmula desse mandamento é a conhecida categoria dos Imperativos. Estes se exprimem pelo verbo dever e mostram a relação de uma lei objetiva da razão para uma vontade não necessariamente por ela determinada, de acordo com a sua constituição subjetiva.

Os imperativos são fórmulas que exprimem a relação entre leis objetivas e a imperfeição subjetiva da vontade humana. Hipotéticos são os imperativos que representam a necessidade prática de uma ação possível; dizem que a ação é boa em vista de qualquer intenção possível ou real. Os imperativos categóricos transmitem a representação de uma ação como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade; independe da intenção.

Sendo a vontade concebida por Kant como a faculdade de se determinar a si mesmo a agir em conformidade com a representação de certas leis, só pode ser encontrada em seres racionais. O que serve à vontade de princípio objetivo da autodeterminação é o que Kant chama de fim [Zweck], o qual necessita ser validado para todos os seres racionais. O que, no entanto, contém apenas o princípio da possibilidade da ação e que tenha por efeito um fim, é designado por Kant como meio.

As noções acima se fazem necessárias para a plena compreensão do conceito de pessoa em Kant:

Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio .

Percebe-se que Kant, a essa altura de sua Fundamentação admite lacunas, que procura suprir com definições outras. É o caso do princípio da humanidade e de toda a natureza racional como um fim em si mesmas, condição que limita a liberdade das ações de cada ser humano. De tal percepção decorre, assim, o conceito de Autonomia (da vontade), o qual se opõe ao de heteronomia, como qualquer outro que se oponha ao primeiro.

Do conceito de Autonomia – princípio segundo o qual todo ser racional deve ser legislador universal por todas as máximas de sua vontade para, deste ponto de vista, se julgar a si mesmo e às suas ações – deriva o conceito de Reino dos fins. Para Kant, reino é a ligação sistemática de vários seres racionais por meio de leis comuns. Reino dos fins justamente porque tais leis comuns têm em vista a relação desses seres uns com os outros como fins e meios .

No reino dos fins, conforme o pensamento kantiano, tudo tem um preço ou uma dignidade. Alguma coisa que tenha preço pode ser substituída por outra como equivalente. Porém se alguma coisa está acima de todo o preço e, por isso, não permite equivalente, ela tem dignidade. Dignidade, portanto, seria algo que não se precifica .

Finaliza Kant a Fundamentação da metafísica dos costumes entrelaçando os conceitos dados para concluir que, embora a dignidade da natureza humana seja um valor incondicional, esta tem por fundamento a Autonomia.

Ora, do conjunto dos conceitos kantianos acerca de valores caros e fundamentais ao ser humano, depreende-se uma clara contingencialidade histórica que os aprisiona. A vinculação da dignidade à autonomia da vontade não dá conta de solucionar os principais problemas surgidos na contemporaneidade. A autonomia da vontade para o direito é fonte de desigualdade, já que a vontade do mais forte (o proprietário, o contratante mais poderoso economicamente, o empregador, o fornecedor de produtos e serviços etc.) prevalecerá sobre a vontade do mais fraco ou vulnerável.

As noções aqui trabalhadas são importantes e se fazem necessárias para a plena compreensão dos conceitos de pessoa e dignidade em Kant. Isto porque ditos conceitos foram internalizados em diversos ordenamentos jurídicos, inclusive o brasileiro e precisam ser interpretados à luz de outros princípios jurídicos sistemáticos que compõem o cabedal normativo constitucional e que definem o tipo de Estado escolhido pelo projeto do legislador constituinte; no Brasil um Estado social democrático de direito, de economia capitalista.

Verdade é que a obra de Kant ainda é um bom caminho para entender a moralidade humana e seus fundamentos são extremamente úteis para uma compreensão aprofundada de cada significado e sua utilização na linguagem jurídica.

Que tenham todos um ano produtivo.

 

Gustavo Henrique Baptista Andrade
Possui pós-doutorado pela UERJ, com imersão de pesquisa no Instituto Max-Planck de Hamburgo, Alemanha; mestrado e doutorado pela UFPE; é Professor de Direito Civil da Faculdade Frassinetti do Recife-FAFIRE; Professor nas Especializações de Direito de Família, Direito Municipal e Direito Médico da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP; Professor da Especialização em Direito de Família da UFPE; Pesquisador; Procurador do Município do Recife; atual Presidente do IBDFAM-PE.
Notas
[1] Caetano Veloso em Oração ao tempo, canção do álbum Transcendental, de 1979.
[2] OLIVEIRA, Luciano. Não fale do Código de Hamurábi. A pesquisa sócio-jurídica na pós-graduação em direito. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4213608/mod_resource/content/1/OLIVEIRA%2C%20Hamurabi.pdf. Acesso em 02.02.2023

Empresas estatais e soluções em infraestrutura | Coluna Direito da Infraestrutura

A intervenção do Estado no Domínio Econômico tem seus ciclos. A depender do resultado do sufrágio, altera-se a intepretação do art. 173 da CRFB (o qual prevê a intervenção direta, concorrencial, por intermédio de empresas estatais). A par dos (relevantes) embates doutrinários a propósito dos lindes do princípio da liberdade de iniciativa (art. 1°, IV e 170, caput, da CRFB), que tornaria excepcional a intervenção estatal direta, para dar cabo de hipóteses de “imperativo segurança nacional”, ou de “relevante interesse público”, fato é que o “pêndulo” da Ordem Constitucional Econômica badala, nos quadrantes da escolha das urnas – se mais à direita ou mais à esquerda.

Em tempos não tão distantes, empresas estatais já fizeram parte de modelagens de Concessões de Aeroportos e de Concessão de Exploração de E&P, nas áreas de pré-sal. O resultado de se formatar concessões, com uma arquitetura intrusiva de empresais estatais, importou em parcerias que produziram ineficiências, seja pelos prejuízos que lhe foram repassados, em razão da existência de contratos celebrados entre os concessionários privados e suas partes relacionadas, seja pela impossibilidade financeira de a empresa estatal aportar os necessários investimentos para exploração dos ativos. Estas modalidades de “parcerias público-privadas”, em sentido amplo, envolvendo empresas estatais, malfadaram.

Nada obstante, tenho para mim que, nos últimos anos, foram endereçadas novidadeiras parcerias entre empresas estatais e empresas privadas, que tem o potencial de trazer soluções criativas para a resolução de imbróglios, nos setores de infraestrutura.

A primeira delas teve por desiderato forjar soluções para uma típica hipótese econômica de tragédia de comuns (The Tragedy of the Commons). Embora existisse o interesse de diversos agentes privados (v.g. concessionárias de ferrovias) e públicos (v.g. Santos Port Authority – SPA) em gerir, de forma eficiente, a Ferrovia Interna do Porto de Santos (Fips), fato é que a maximização dos seus interesses particularísticos, de forma individualizada, geraria ineficiências para todas das partes.

Seguiu daí a celebração de uma engenhosa parceria, a denominada Cessão Onerosa – inspirada na The Belt Railway Company of Chicago (BRC) –, que restou celebrada entre entre a empresa estatal que administra o Porto Organizado e as concessionárias privadas de ferrovias, por intermédio da criação de uma associação privada. A gestão condominial da infraestrutura ferroviária comum do porto foi lastreada: (i) no disposto no art. 56-A, da Lei n° Lei Federal 14.273/2021 (Novo Marco Regulatório das Ferrovias), segundo o qual “As infraestruturas ferroviárias no interior do perímetro dos portos e instalações portuárias não se constituem em ferrovias autônomas e são administradas pela respectiva autoridade portuária ou autorizatário, dispensada a realização de outorga específica para sua exploração”; (ii) na necessidade de gestão integrada e de autorregulação operacional da infraestrutura comum, com fundamento na contratação, por oportunidade de negócio, precedida por chamamento público (na forma do 28, § 3º, III, da Lei 13.303/2016), na qual foi oportunizada a participação de todos os operadores ferroviários; (iii) no rateio dos investimentos entre os Associados Investidores, os quais serão proporcionais ao volume médio de movimentação de cargas, nos dois anos anteriores à data de celebração do Contrato e à projeção para os próximos cinco anos, enquanto para os demais associados o rateio será proporcional aos volumes efetivamente movimentados.

Outra modelagem inovadora digna de nota, que se valeu de uma parceria com uma empresa estatal, foi a que buscou endereçar os problemas econômico-financeiros de umas das “concessões em crise”. Explica-se, como se sabe, nos idos dos anos de 2014, foram licitados, pelo Governo Federal, ativos que vieram a se tornar inexequíveis, como, por exemplo, as modelagens previstas nos contratos de concessão de rodovia celebrados na 3ª Fase do Programa de Rodovias Federais – PROCROFE e nas 2ª e 3ª Fases das Concessões de Infraestrutura Aeroportuária. Tal inexequibilidade restou reconhecida, inclusive, pela instituição de um regime normativo para disciplinar a relicitação de tais ativos, por intermédio da edição da Lei nº 13.448/2017. Exemplo saliente desse cenário se materializou, pelo Decreto, sem número, de 15 de agosto de 2017, por intermédio do qual se declarou a caducidade da concessão de titularidade da Concessionária de Rodovias Galvão BR-153 SPE S.A. – BR – 153/GO/TO.

O trepasse da gestão da BR-163/MT (Concessionária Rota do Oeste) se deu nesse contexto. A modelagem engendrada considerou que o Estado do Mato Grosso, por intermédio da MT PAR – Participações e Projetos S/A (uma sociedade de economia mista estadual), apresentou uma proposta, que tinha por objetivo tornar viável a continuidade da concessão, sem aumento de tarifa e com início imediato dos investimentos previstos, comprometendo-se, ainda, a aportar 1 bilhão de reais no projeto, como condição para a própria eficácia do TAC cogitado. Após diversas rodadas de negociações entre as partes, restou celebrado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e a Concessionária Rota do Oeste, cujo objeto foi a transferência do controle acionário da concessionária para a MT Participações e Projetos (MT Par).

Tal parceria importou na transferência do controle de uma concessionária privada para uma empresa estatal, com fundamento nos art.s 27 da Lei n°8.987/1995, no art. 30 da Lei n°10.233/2001 e no art. 56 da Resolução ANTT n°5.927/2021.

Os exemplos citados dão conta de uma nova função das empresas estatais. Se, antes, só se cogitava de autorizar a constituição de empresas estatais para fugir das amarradas do regime jurídico-administrativo (a denominada “fuga para o direito privado”), ou, para explorar atividades consideradas (muito) estratégicas, com auspícios monopolistas, atualmente, as entidades da administração pública, com personalidade jurídica de direito privado, passam a ter a sua função social direcionada a novos quadrantes. Ao se despirem de vetustas prerrogativas publicísticas – no âmbito de um regime de simetria com a empresas do setor privado –, as estatais passam a ter uma renovada importância nos setores de infraestrutura. Esperamos – alvíssaras – que seja uma nova tendência.

 

Rafael Véras
Professor Responsável do LLM de Infraestrutura e Regulação da FGV Direito Rio.
Doutorando e Mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.

 

Relembre os artigos mais lidos

 Os cinco artigos mais lidos em 2022 na Coluna Direito da Infraestrutura estão reunidos em uma coletânea disponível para download em formato de e-book. 

Nele você poderá conferir os principais temas jurídicos sobre infraestrutura, como concessões, concorrências, os impactos do novo marco legal nas contratações. A curadoria desta seção fica a cargo do autor da casa Rafael Véras.

>> Leia o e-book 

A funcionalidade do contato herdeiro face à não regulamentação da herança digital no Brasil

Coluna Direito Civil

Leitor, você consegue imaginar um mundo sem redes sociais, internet ou toda a tecnologia que temos hoje? A provocação reflete bem a transformação da sociedade contemporânea em que vivemos: o uso contínuo das novas tecnologias revolucionou a convivência social e o comportamento humano contemporâneos.

Um reflexo gritante dessa sociedade tecnológica é o despojo com a acumulação de bens, indubitavelmente alterado pela tecnologia, e a consequente nova forma de se experimentar a vida. As locadoras de filmes em DVD foram substituídas pelos streamings, sendo a Netflix o mais conhecido do ramo; os CD’s e vinis deram lugar ao Spotify, assim como os livros físicos estão sendo, aos poucos, substituídos pelos livros digitais. 

A pandemia de COVID-19 aperfeiçoou esse novo cenário. Em um momento histórico para a toda humanidade, fomos proibidos de manter contato social. Não restou outra saída que não fosse o uso da tecnologia para preencher essa lacuna. A partir de então, em se tratando de Direito das Famílias, passamos a readequar os contornos da conjugalidade e da responsabilidade parental para o isolamento social, além do que o diálogo acerca direito das sucessões não poderia mais ser procrastinado.        

A experiência de uma vida cada vez mais tecnológica atingiu em cheio as relações jurídicas. A frenética alteração da sociedade contemporânea pela tecnologia retraiu cada vez mais a regulamentação legal dos fenômenos sociais, resultando, invariavelmente, em um compêndio de normas analógicas que fazem frente a um mundo preponderantemente tecnológico.

No campo do direito privado, as novas tecnologias, ora incrementadas pelas redes sociais, ora pelas interações digitais, impulsionaram o ideal de um mundo cada vez mais conectado à rede, resultando, por óbvio, numa significativa ressignificação na identidade dos indivíduos em razão da construção de um corpo eletrônico como reflexo existencial da pessoa conectada (LEAL, 2018).

Logo, a necessidade de regular os ativos digitais produzidos pelo corpo eletrônico mostrou-se urgente. Como o uso da tecnologia atinge as mais variadas searas da contemporaneidade, o presente texto busca refletir somente em relação à transmissão causa mortis desses ativos. Considerando que os bens digitais fazem parte do patrimônio do indivíduo, é de se afirmar que, em caso de perecimento, há transmissão integral dos bens via saisine aos herdeiros legítimos? Há diferenciação entre os bens que são transmitidos – se patrimoniais ou personalíssimos – ou, neste caso, respeita-se a privacidade do de cujus? O ordenamento jurídico brasileiro regulamenta a transmissão desses bens?

Para que as respostas sejam efetivamente respondidas, é imprescindível que, primeiro, definamos os contornos do que se conceitua por bem digital. O bem jurídico analógico é definido por Caio Mário da Silva Pereira a partir de duas categorias: com expressão patrimonial ou não. Compreendem os primeiros “tudo aquilo que pode integrar o nosso patrimônio traduzido como bens econômicos”, mas não se resumem a eles, constituindo os de expressão não patrimonial “o estado de filiação, o direito ao nome, todos bens jurídicos, embora não patrimoniais.” (2017, p. 330).

Por outro lado, o bem jurídico digital pode ser conceituado como “bens imateriais representados por instruções codificadas e organizadas virtualmente com a utilização de linguagem informática, armazenados em forma digital” e que “poderão estar ou não armazenados no dispositivo de seu próprio titular, ou transmitidos entre usuários de um dispositivo para outro, digitalmente na rede ou por meio de download” (DIAS et al, 2018). 

A partir de então, a doutrina majoritária categoriza o bem digital tendo em conta a natureza do ativo. São bens digitais patrimoniais aqueles que denotam o valor econômico que o acervo de conteúdo possui e, neste caso, é possível citarmos como exemplo as milhas aéreas. Os bens digitais personalíssimos são aqueles que englobam tão somente a natureza existencial do conteúdo que pertence ao titular do acervo ou a terceiros que com o titular mantiveram relações. São exemplos de bens personalíssimos: o whatsapp, o instagram e o facebook e os bens digitais híbridos englobam a natureza patrimonial e existencial concomitantemente. São exemplos dessa categoria os canais de Youtube.

A classificação desemboca, invariavelmente, numa celeuma doutrinária que pretende responder à pergunta que dá início às indagações feitas em momento anterior deste texto. Os doutrinadores se dividem em posicionamentos sobre a natureza dos bens que serão transmitidos pela sucessão causa mortis do de cujus, perfazendo, assim, duas teorias: a transmissibilidade parcial ou a transmissibilidade total dos bens.

Aliam-se à transmissibilidade parcial os estudiosos que defendem que, com a abertura da sucessão, a transmissão dos bens patrimoniais digitais seria imediata, preservando-se, por oportuno, a privacidade do de cujus nos bens com caráter personalíssimo. Advogam por essa teoria Lívia Teixeira Leal e Gabriel Honorato que afirmam:

Assim, a respeito da transmissão do patrimônio digital, ressalta-se, como regra, a impossibilidade de transmissão de conteúdos que contenham aspectos personalíssimos e existenciais que remontem à esfera da privacidade, da intimidade e a reserva do segredo, salvaguardando a pessoa e sua dignidade, devendo-se conferir, portanto, tratamento diferenciado para bens digitais personalíssimos e bens digitais patrimoniais. Excepcionalmente, quando o titular manifestar em vida a sua vontade de projeção de suas contas e não houver prejuízo a terceiros, entende-se como plausível tal transmissão. No caso se redes sociais que gozem de mensagens privativas, uma solução poderia ser a exclusão de tais conteúdos exclusivos, projetando a conta com as informações públicas, para gerenciamento, pelo herdeiro administrador, da conta-memorial. Quanto aos bens digitais patrimoniais, como contas vinculadas a instituições que gerenciam criptomoedas ou milhas aéreas, por exemplo, deve-se, como regra, viabilizar a sua sucessão aos herdeiros, partindo da regra geral da sucessão hereditária. Entende-se que devem se excetuar à regra aquelas contas adquiridas com clareza de informação quanto ao mero direito de uso e não de propriedade (2022, p. 179-180).

O posicionamento antagônico, por sua vez, tem fundamento na decisão do tribunal da mais alta corte da jurisdição ordinária alemã, o Bundesgerichtshof. Segundo a corte alemã, analisando o caso concreto de um casal que buscava ter acesso ao conteúdo do Facebook da filha falecida, ao mundo digital também se aplica o princípio da sucessão universal, querendo dizer, portanto, que após a abertura da sucessão, os herdeiros se inserem na titularidade dos bens deixados pelo de cujus, sem distinção de sua natureza.    

Para fundamentar essa decisão, o tribunal consignou, segundo Fritz e Mendes, que segundo a legislação alemã “a lei não faz distinção entre herança patrimonial e herança existencial, nem tampouco os valores legais que lhes são subjacentes autorizariam tal diferenciação” arrematando, por fim, que “não há nenhuma razão axiológica para tratar conteúdos digitais e conteúdos analógicos de forma diferente quando ambos possuem caráter existencial. ” (2019, p. 201-202).

Em terras tupiniquins, a teoria alemã encontra na doutrinadora Karina Nunes Fritz uma das suas defensoras. Neste sentido: 

Diante do exposto, conclui-se que a chamada herança digital deve ser transmitida aos herdeiros no momento da abertura da sucessão, salvo disposição em sentido contrário do usuário falecido determinando a intransmissibilidade de todo ou de partes do conteúdo digital acumulado em vida. Longe de violar o direito à privacidade do usuário falecido e de seus interlocutores, essa solução fortalece a autonomia privada e autodeterminação dos usuários das redes sociais, chamando todos (emissores e destinatários) a assumir responsabilidades no mundo digital. Com isso, mantém hígido o sistema sucessório do Código Civil, perfeitamente apto a disciplinar o problema da herança digital. Da mesma forma, a transmissibilidade do conteúdo digital aos herdeiros não ofende o sigilo das comunicações, pois essa garantia visa impedir que terceiros estranhos ao processo comunicativo tenham acesso indevido ao conteúdo das conversas, mas os familiares e herdeiros, com a morte do titular, são terceiros estranhos devido à condição de sucessores universais do de cujus (2021, p. 241-242). 

Todas as teorias propostas acalentam ainda mais o debate sobre o tema. Contudo, os autores deste estudo filiam-se à tese da transmissibilidade parcial dos bens digitais. Aqueles que refletem direitos da personalidade do indivíduo não devem ser imediatamente transmitidos, de sorte que admitir eventual sucessão legal de toda a herança digital pode acarretar violação à privacidade e à intimidade do de cujus.

Pressupor que o titular dos bens pretendia que todos eles fossem de logo transmitidos aos herdeiros, iguais aos bens analógicos, a exemplo de um diário ou de composições postumamente encontradas, é deslegitimar a utilização de senhas de acesso às redes sociais definidas pelo usuário falecido que tem justamente o objetivo claro de proteger o conhecimento da intimidade perante a terceiros, sejam eles familiares ou não. Se assim pudessem, os de cujus também inseririam “senhas de acesso a bens analógicos” para evitarem trazer à lume visões de mundo, ideias e contextos sociais de sua época que invariavelmente causariam polêmica em contextos sociais distintos.

Albert Einstein pode ser usado como exemplo. A Princeton University Press publicou o livro The Travel Diaries of Albert Einstein: The Far East, Palestine and Spain, 1922-1923 (Os Diários de Viagem de Albert Einstein: O Extremo Oriente, Palestina e Espanha, 1922-1923) destacando que o genial físico alemão, em escritos datados de 1922 e 1923, teria revelado sua faceta racista e xenofóbica em relação a povos da Ásia e Oriente Médio (BBC, 2018). A notícia inflamará os incautos haters das redes e, de fato, provocará olhares distorcidos ao gênio alemão. É bem provável que o teórico da relatividade não quisesse que esses fatos viessem à tona.

Por outro lado, não há óbices no direito brasileiro à transmissão dos bens digitais com expressão econômica que não remontem à esfera da privacidade e da intimidade do titular. Desta forma, a herança digital não é totalmente compatível com o princípio da saisine. Nada impede que o indivíduo manifeste em vida a sua vontade em relação à destinação desses bens.

A solução, portanto, estaria na transmissão aos herdeiros legais apenas do acervo digital com expressão econômica, restando excluídos aqueles bens nos quais há reflexos da personalidade do indivíduo. Esse entendimento, inclusive, está em consonância com o posicionamento do IBDFAM no Enunciado de nº 40 (2022-2023): “A herança digital pode integrar a sucessão do seu titular, ressalvadas as hipóteses envolvendo direitos personalíssimos, direitos de terceiros e disposições de última vontade em sentido contrário”.

A dissonância doutrinária é encampada pela funcionalidade do contato herdeiro disponibilizado pelas redes sociais. Se assim desejar, querido leitor, nesse exato momento você poderá decidir, no Facebook, no instagram e em outras redes sociais, quem cuidará da sua conta após o seu falecimento, bastando apenas que cadastre uma pessoa que assumirá esse encargo.

O ordenamento jurídico ainda não regulamenta a transmissão do patrimônio digital. Há, todavia, projetos de lei que tem esse intento. Citamos, em meio a tantos outros, o PL nº 4847/2012 e 4.099/2012 que visam permitir a transmissão aos herdeiros de tudo o que é possível guardar ou acumular do espaço virtual.

É urgentemente desejável que o Brasil, à semelhança de países como a Espanha e a Alemanha, posicione-se legalmente a respeito do tema e crie um microssistema de tutela dos bens digitais, proporcionando, consequentemente, maior segurança jurídica às situações fáticas vindouras.

Em face da ausência de lei e da morosidade da discussão do tema no Congresso Nacional, o incentivo ao planejamento sucessório do patrimônio digital se apresenta como uma das soluções possíveis àqueles que têm interesse em ver o seu acervo eletrônico transmitido conforme a sua vontade. 

Conclui-se, pelo exposto, que o acervo digital deve ser parcialmente transmitido aos herdeiros legítimos, respeitando os direitos da personalidade do titular falecido. Além do mais, ante a ausência de regulamentação sobre o tema, o planejamento sucessório do patrimônio digital se mostra como uma opção para a correta destinação dos bens.

 

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Autor da FÓRUM, ministro Luís Roberto Barroso abre ano letivo da Escola Superior da PGE/ES

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e autor da FÓRUM, Luís Roberto Barroso, esteve, nesta semana, na Escola Superior da Procuradoria-Geral do Espírito Santo (ESPGE), onde participou da Aula Magna de abertura do ano letivo da instituição.

O evento, realizado na capital capixaba, reuniu o governador do Estado, Renato Casagrande, e os alunos da Escola, marcando, ainda, o início das comemorações dos 80 anos da Procuradoria-Geral (PGE).

A ida do ministro do STF ao Espírito Santo é resultado da parceria entre a FÓRUM e a PGE, que conta com a Biblioteca Digital FÓRUM de Direito, módulo que contempla todas as revistas científicas publicadas pela editora, a Coleção Digital FÓRUM Jacoby de Direito Público, a Biblioteca Digital FÓRUM Livros (1ª a 9ª séries), a Biblioteca Digital FÓRUM Del Rey (1ª a 5ª séries), e a Biblioteca Digital FÓRUM Vídeos (1ª a 7ª séries), produtos da Plataforma FÓRUM de Conhecimento Jurídico®.

Como editora líder em Direito Público no Brasil e por acreditar que o conhecimento jurídico de qualidade melhora o mundo, o objetivo da FÓRUM é poder levar o autor, através de eventos e palestras, cada vez mais perto dos seus leitores.

Esforço reconhecido pelo procurador-chefe da ESPGE, Alexandre Nogueira Alves, que ressaltou que nomes como o do ministro Barroso têm garantido conteúdos da melhor qualidade aos alunos e residentes. 

“Nossa preocupação constante tem sido ofertar aquilo que há de melhor em termos de advocacia pública no País”, ressalta, complementando que “nos últimos três anos, a parceria com a FÓRUM tem viabilizado a ida de personalidades de destaque no mundo jurídico para a realização desses eventos.”

Em sua palestra, Barroso falou sobre temas como enfrentamento à pobreza, aquecimento global e democracia. O ministro também apresentou um cenário preocupante, em que a internet e seu uso para atividades ilícitas tem despertado comportamentos socialmente indesejados e, em muitos casos, criminosos. 

“A mentira é sempre um problema ético, é inaceitável. Nenhuma causa legitima a mentira, a ofensa deliberada. Essa não é uma ideologia, é só uma derrota do espírito”, frisou.

Ministro do STF, Luís Roberto Barroso, em sua palestra na PGE/ES. Foto: Ascom-PGE/ES.

Também participaram do evento, o vice-governador Ricardo Ferraço; o presidente da Assembleia Legislativa, deputado Marcelo Santos; o presidente do Tribunal de Justiça, desembargador Fabio Clem de Oliveira; o presidente do Tribunal de Contas do Estado, conselheiro Rodrigo Chamoun; o defensor-público geral, Vinicius Chaves de Araújo; o superintendente da Polícia Federal no ES, Eugênio Ricas; o presidente do Tribunal Regional Eleitoral/ES, desembargador José Paulo Calmon; além de dirigentes de autarquias e representantes do Tribunal Regional do Trabalho, Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Espírito Santo (OAB-ES) e Associação dos Procuradores do Estado do Espírito Santo (Apes).

Sobre a ESPGE

A Escola Superior da PGE oferece o curso de pós-graduação (lato sensu) em Direito do Estado e Advocacia Pública para servidores estaduais da Administração direta e indireta, bem como a todos os participantes do Programa de Residência Jurídica da PGE.

Segundo as normas da instituição, para ingressar na pós-graduação, os interessados devem, na época da inscrição, passar por um processo seletivo simplificado. Já para entrar no Programa de Residência Jurídica, os candidatos são submetidos a concurso.

A publicação dos editais é amplamente divulgada no Diário Oficial do Estado, no website da PGE e nas redes sociais da instituição (Instagram e Facebook).

Com informações e fotos da Ascom-PGE/ES