A funcionalidade do contato herdeiro face à não regulamentação da herança digital no Brasil

14 de fevereiro de 2023

Coluna Direito Civil

Leitor, você consegue imaginar um mundo sem redes sociais, internet ou toda a tecnologia que temos hoje? A provocação reflete bem a transformação da sociedade contemporânea em que vivemos: o uso contínuo das novas tecnologias revolucionou a convivência social e o comportamento humano contemporâneos.

Um reflexo gritante dessa sociedade tecnológica é o despojo com a acumulação de bens, indubitavelmente alterado pela tecnologia, e a consequente nova forma de se experimentar a vida. As locadoras de filmes em DVD foram substituídas pelos streamings, sendo a Netflix o mais conhecido do ramo; os CD’s e vinis deram lugar ao Spotify, assim como os livros físicos estão sendo, aos poucos, substituídos pelos livros digitais. 

A pandemia de COVID-19 aperfeiçoou esse novo cenário. Em um momento histórico para a toda humanidade, fomos proibidos de manter contato social. Não restou outra saída que não fosse o uso da tecnologia para preencher essa lacuna. A partir de então, em se tratando de Direito das Famílias, passamos a readequar os contornos da conjugalidade e da responsabilidade parental para o isolamento social, além do que o diálogo acerca direito das sucessões não poderia mais ser procrastinado.        

A experiência de uma vida cada vez mais tecnológica atingiu em cheio as relações jurídicas. A frenética alteração da sociedade contemporânea pela tecnologia retraiu cada vez mais a regulamentação legal dos fenômenos sociais, resultando, invariavelmente, em um compêndio de normas analógicas que fazem frente a um mundo preponderantemente tecnológico.

No campo do direito privado, as novas tecnologias, ora incrementadas pelas redes sociais, ora pelas interações digitais, impulsionaram o ideal de um mundo cada vez mais conectado à rede, resultando, por óbvio, numa significativa ressignificação na identidade dos indivíduos em razão da construção de um corpo eletrônico como reflexo existencial da pessoa conectada (LEAL, 2018).

Logo, a necessidade de regular os ativos digitais produzidos pelo corpo eletrônico mostrou-se urgente. Como o uso da tecnologia atinge as mais variadas searas da contemporaneidade, o presente texto busca refletir somente em relação à transmissão causa mortis desses ativos. Considerando que os bens digitais fazem parte do patrimônio do indivíduo, é de se afirmar que, em caso de perecimento, há transmissão integral dos bens via saisine aos herdeiros legítimos? Há diferenciação entre os bens que são transmitidos – se patrimoniais ou personalíssimos – ou, neste caso, respeita-se a privacidade do de cujus? O ordenamento jurídico brasileiro regulamenta a transmissão desses bens?

Para que as respostas sejam efetivamente respondidas, é imprescindível que, primeiro, definamos os contornos do que se conceitua por bem digital. O bem jurídico analógico é definido por Caio Mário da Silva Pereira a partir de duas categorias: com expressão patrimonial ou não. Compreendem os primeiros “tudo aquilo que pode integrar o nosso patrimônio traduzido como bens econômicos”, mas não se resumem a eles, constituindo os de expressão não patrimonial “o estado de filiação, o direito ao nome, todos bens jurídicos, embora não patrimoniais.” (2017, p. 330).

Por outro lado, o bem jurídico digital pode ser conceituado como “bens imateriais representados por instruções codificadas e organizadas virtualmente com a utilização de linguagem informática, armazenados em forma digital” e que “poderão estar ou não armazenados no dispositivo de seu próprio titular, ou transmitidos entre usuários de um dispositivo para outro, digitalmente na rede ou por meio de download” (DIAS et al, 2018). 

A partir de então, a doutrina majoritária categoriza o bem digital tendo em conta a natureza do ativo. São bens digitais patrimoniais aqueles que denotam o valor econômico que o acervo de conteúdo possui e, neste caso, é possível citarmos como exemplo as milhas aéreas. Os bens digitais personalíssimos são aqueles que englobam tão somente a natureza existencial do conteúdo que pertence ao titular do acervo ou a terceiros que com o titular mantiveram relações. São exemplos de bens personalíssimos: o whatsapp, o instagram e o facebook e os bens digitais híbridos englobam a natureza patrimonial e existencial concomitantemente. São exemplos dessa categoria os canais de Youtube.

A classificação desemboca, invariavelmente, numa celeuma doutrinária que pretende responder à pergunta que dá início às indagações feitas em momento anterior deste texto. Os doutrinadores se dividem em posicionamentos sobre a natureza dos bens que serão transmitidos pela sucessão causa mortis do de cujus, perfazendo, assim, duas teorias: a transmissibilidade parcial ou a transmissibilidade total dos bens.

Aliam-se à transmissibilidade parcial os estudiosos que defendem que, com a abertura da sucessão, a transmissão dos bens patrimoniais digitais seria imediata, preservando-se, por oportuno, a privacidade do de cujus nos bens com caráter personalíssimo. Advogam por essa teoria Lívia Teixeira Leal e Gabriel Honorato que afirmam:

Assim, a respeito da transmissão do patrimônio digital, ressalta-se, como regra, a impossibilidade de transmissão de conteúdos que contenham aspectos personalíssimos e existenciais que remontem à esfera da privacidade, da intimidade e a reserva do segredo, salvaguardando a pessoa e sua dignidade, devendo-se conferir, portanto, tratamento diferenciado para bens digitais personalíssimos e bens digitais patrimoniais. Excepcionalmente, quando o titular manifestar em vida a sua vontade de projeção de suas contas e não houver prejuízo a terceiros, entende-se como plausível tal transmissão. No caso se redes sociais que gozem de mensagens privativas, uma solução poderia ser a exclusão de tais conteúdos exclusivos, projetando a conta com as informações públicas, para gerenciamento, pelo herdeiro administrador, da conta-memorial. Quanto aos bens digitais patrimoniais, como contas vinculadas a instituições que gerenciam criptomoedas ou milhas aéreas, por exemplo, deve-se, como regra, viabilizar a sua sucessão aos herdeiros, partindo da regra geral da sucessão hereditária. Entende-se que devem se excetuar à regra aquelas contas adquiridas com clareza de informação quanto ao mero direito de uso e não de propriedade (2022, p. 179-180).

O posicionamento antagônico, por sua vez, tem fundamento na decisão do tribunal da mais alta corte da jurisdição ordinária alemã, o Bundesgerichtshof. Segundo a corte alemã, analisando o caso concreto de um casal que buscava ter acesso ao conteúdo do Facebook da filha falecida, ao mundo digital também se aplica o princípio da sucessão universal, querendo dizer, portanto, que após a abertura da sucessão, os herdeiros se inserem na titularidade dos bens deixados pelo de cujus, sem distinção de sua natureza.    

Para fundamentar essa decisão, o tribunal consignou, segundo Fritz e Mendes, que segundo a legislação alemã “a lei não faz distinção entre herança patrimonial e herança existencial, nem tampouco os valores legais que lhes são subjacentes autorizariam tal diferenciação” arrematando, por fim, que “não há nenhuma razão axiológica para tratar conteúdos digitais e conteúdos analógicos de forma diferente quando ambos possuem caráter existencial. ” (2019, p. 201-202).

Em terras tupiniquins, a teoria alemã encontra na doutrinadora Karina Nunes Fritz uma das suas defensoras. Neste sentido: 

Diante do exposto, conclui-se que a chamada herança digital deve ser transmitida aos herdeiros no momento da abertura da sucessão, salvo disposição em sentido contrário do usuário falecido determinando a intransmissibilidade de todo ou de partes do conteúdo digital acumulado em vida. Longe de violar o direito à privacidade do usuário falecido e de seus interlocutores, essa solução fortalece a autonomia privada e autodeterminação dos usuários das redes sociais, chamando todos (emissores e destinatários) a assumir responsabilidades no mundo digital. Com isso, mantém hígido o sistema sucessório do Código Civil, perfeitamente apto a disciplinar o problema da herança digital. Da mesma forma, a transmissibilidade do conteúdo digital aos herdeiros não ofende o sigilo das comunicações, pois essa garantia visa impedir que terceiros estranhos ao processo comunicativo tenham acesso indevido ao conteúdo das conversas, mas os familiares e herdeiros, com a morte do titular, são terceiros estranhos devido à condição de sucessores universais do de cujus (2021, p. 241-242). 

Todas as teorias propostas acalentam ainda mais o debate sobre o tema. Contudo, os autores deste estudo filiam-se à tese da transmissibilidade parcial dos bens digitais. Aqueles que refletem direitos da personalidade do indivíduo não devem ser imediatamente transmitidos, de sorte que admitir eventual sucessão legal de toda a herança digital pode acarretar violação à privacidade e à intimidade do de cujus.

Pressupor que o titular dos bens pretendia que todos eles fossem de logo transmitidos aos herdeiros, iguais aos bens analógicos, a exemplo de um diário ou de composições postumamente encontradas, é deslegitimar a utilização de senhas de acesso às redes sociais definidas pelo usuário falecido que tem justamente o objetivo claro de proteger o conhecimento da intimidade perante a terceiros, sejam eles familiares ou não. Se assim pudessem, os de cujus também inseririam “senhas de acesso a bens analógicos” para evitarem trazer à lume visões de mundo, ideias e contextos sociais de sua época que invariavelmente causariam polêmica em contextos sociais distintos.

Albert Einstein pode ser usado como exemplo. A Princeton University Press publicou o livro The Travel Diaries of Albert Einstein: The Far East, Palestine and Spain, 1922-1923 (Os Diários de Viagem de Albert Einstein: O Extremo Oriente, Palestina e Espanha, 1922-1923) destacando que o genial físico alemão, em escritos datados de 1922 e 1923, teria revelado sua faceta racista e xenofóbica em relação a povos da Ásia e Oriente Médio (BBC, 2018). A notícia inflamará os incautos haters das redes e, de fato, provocará olhares distorcidos ao gênio alemão. É bem provável que o teórico da relatividade não quisesse que esses fatos viessem à tona.

Por outro lado, não há óbices no direito brasileiro à transmissão dos bens digitais com expressão econômica que não remontem à esfera da privacidade e da intimidade do titular. Desta forma, a herança digital não é totalmente compatível com o princípio da saisine. Nada impede que o indivíduo manifeste em vida a sua vontade em relação à destinação desses bens.

A solução, portanto, estaria na transmissão aos herdeiros legais apenas do acervo digital com expressão econômica, restando excluídos aqueles bens nos quais há reflexos da personalidade do indivíduo. Esse entendimento, inclusive, está em consonância com o posicionamento do IBDFAM no Enunciado de nº 40 (2022-2023): “A herança digital pode integrar a sucessão do seu titular, ressalvadas as hipóteses envolvendo direitos personalíssimos, direitos de terceiros e disposições de última vontade em sentido contrário”.

A dissonância doutrinária é encampada pela funcionalidade do contato herdeiro disponibilizado pelas redes sociais. Se assim desejar, querido leitor, nesse exato momento você poderá decidir, no Facebook, no instagram e em outras redes sociais, quem cuidará da sua conta após o seu falecimento, bastando apenas que cadastre uma pessoa que assumirá esse encargo.

O ordenamento jurídico ainda não regulamenta a transmissão do patrimônio digital. Há, todavia, projetos de lei que tem esse intento. Citamos, em meio a tantos outros, o PL nº 4847/2012 e 4.099/2012 que visam permitir a transmissão aos herdeiros de tudo o que é possível guardar ou acumular do espaço virtual.

É urgentemente desejável que o Brasil, à semelhança de países como a Espanha e a Alemanha, posicione-se legalmente a respeito do tema e crie um microssistema de tutela dos bens digitais, proporcionando, consequentemente, maior segurança jurídica às situações fáticas vindouras.

Em face da ausência de lei e da morosidade da discussão do tema no Congresso Nacional, o incentivo ao planejamento sucessório do patrimônio digital se apresenta como uma das soluções possíveis àqueles que têm interesse em ver o seu acervo eletrônico transmitido conforme a sua vontade. 

Conclui-se, pelo exposto, que o acervo digital deve ser parcialmente transmitido aos herdeiros legítimos, respeitando os direitos da personalidade do titular falecido. Além do mais, ante a ausência de regulamentação sobre o tema, o planejamento sucessório do patrimônio digital se mostra como uma opção para a correta destinação dos bens.

 

Jardel Ribeiro Ferreira
Advogado; Pós-graduado em Direito das Famílias e Sucessões (CESMAC); e-mail: jardelribeiro2@outlook.com.br

 

 

Karina Barbosa Franco
Mestre em Direito Público (UFAL); Professora de Direito das Famílias e Sucessões. Membro-Associado do Instituto Brasileiro de Direito de Famílias (IBDFAM); Pesquisadora do CONREP/UFPE; e-mail: karybfranco@gmail.com

 

 

 

REFERÊNCIAS
FACHIN, Zulmar Antônio; PINHEIRO, Valter Giuliano Mossini. Bens digitais: análise da possibilidade de tutela jurídica no Direito Brasileiro. DIAS, Feliciano Alcides; TAVARES, José Querino Neto; ASSAFIM, João Marcelo de Lima (Coord.). Florianópolis: CONPEDI, 2018.
Diários de Einstein revelam racismo e xenofobia desconhecidos. BBC News Brasil, São Paulo, 14 de junho de 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-44480196. Acesso em: 09 de ago. de 2022.
FRITZ, Karina Nunes. A garota de Berlim e a herança digital. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; LEAL, Lívia Teixeira. (Coord). Herança digital: controvérsias e alternativas. Indaiatuba: Editora Foco, 2021.
LEAL, Lívia Teixeira; HONORATO, Gabriel. Herança Digital: o que se transmite aos herdeiros? In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; NEVARES, Ana Luiza Maia. (Coord). Direito das Sucessões: problemas e tendências. Indaiatuba: Editora Foco, 2022.
LEAL, Lívia Teixeira. Internet e morte do usuário: a necessária suspensão do paradigma da herança digital. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCIVIL, Belo Horizonte, v. 16, p. 181-197, abr./jun. 2018.
MENDES, Laura Schertel Ferreira; FRITZ, Karina Nunes. Case report: Corte alemã reconhece a transmissibilidade da herança digital. Direito Público, v. 15, n. 85, p. 188-211, jan-fev 2019.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: introdução ao direito civil. 30. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

 

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