Registro de bens digitais: uma reflexão a partir da teoria clássica | Coluna Direito Civil

17 de maio de 2022

Coluna Direito Civil

Uma geração que não se interessa por apropriação de bens é a realidade do século XXI. Enquanto aqueles que têm mais de quarenta anos cresceram sonhando com o primeiro carro e a casa própria, símbolos mínimos de segurança e estabilidade, os mais jovens dispensam a acumulação de bens e trocam a propriedade pela experiência do uso.

Se é possível distinguir diferentes categorias de bens digitais, é fácil concluir pela impossibilidade de se emprestar tratamento uniforme a todas elas, razão pela qual a definição proposta por Ana Carolina Brochado Teixeira e Livia Teixeira Leal (2020, p. 337) considera bens digitais “todos aqueles conteúdos constantes na rede, passíveis ou não de valoração econômica, que proporcionem alguma utilidade para o seu titular”, concluindo as referidas autoras que “os perfis de redes sociais, os e-books, as contas de e-mail, jogos virtuais etc. poderiam ser enquadrados como bens digitais, sendo ou não suscetíveis de apreciação econômica”.

A migração dos bens corpóreos para o meio digital, naquilo que representa grande parte da intimidade de uma pessoa (como livros, músicas e fotos), cria novas demandas jurídicas. O modo de experienciar o mundo tem mudado de parâmetro, e como consequência, novos modelos de negócios estão surgindo para realizar no mundo virtual as expectativas e sonhos do mundo físico.

A chegada do metaverso e do NFT estão tratando de migrar para o mundo virtual toda a expressão de riqueza até hoje possível apenas no mundo corpóreo. E os altos valores gerados pelos negócios nesse ambiente desafiam o direito civil quanto à segurança jurídica dos negócios e da titularidade sobre bens.

No entanto, parte considerável de tais bens não se enquadra na clássica propriedade regulada pelos direitos reais. Não possui um registro oficial e, portanto, ainda não resguarda a segurança jurídica trazida por ele. Já vivemos na era digital, e a tutela legal sobre a apropriação de bens precisa ser repensada e atualizada.

Se os códigos civis clássicos protegem o proprietário e seu domínio sobre as coisas, só estaria amparado pela lei aquele que pudesse compor o status de proprietário. Mas como garantir titularidade sobre um bem de alto valor não sujeito a registro oficial reconhecido pelo Estado?

O elemento nuclear da apropriação de bens resolve o trato da propriedade digital? É necessário o registro? Ou esse novo modelo de pertencimento dispensa os instrumentos clássicos de segurança jurídica? A natureza obrigacional trará mais soluções que a de direito real?

Essa ruptura do modelo clássico desafia a tutela do pertencimento, que tem em seu núcleo o domínio e a titularidade registral, marcas da apropriação exclusiva. Com os novos contornos na relação das pessoas e bens, a exemplo dos bens digitais, é preciso refletir sobre o estatuto jurídico a ser aplicado.

A imprensa tem noticiado a cada dia inúmeros bens de alto valor vendidos no ambiente virtual sem a segurança jurídica que se atribui aos bens corpóreos. Já se fala em investimento em fração virtual de imóveis físicos, compra de terrenos no metaverso e compra de obras de arte garantidas pelo registro de um NFT. É preciso refletir sobre a segurança jurídica desses pactos obrigacionais, especialmente a certeza de titularidade para efeitos reais, de regime de bens e sucessórios. Afinal, eles não encontram guarida na proteção registral de órgãos oficiais do Estado.

Entre todos os elementos estruturantes da propriedade, destacamos aqui o que sempre representou a garantia de publicidade e segurança das relações jurídicas: o registro. À medida que o Estado impôs o controle das titularidades, através de entidades específicas, estabeleceu a base de negócios sobre os bens, oferecendo a certeza da existência de bens e sua penhorabilidade. Para um sistema jurídico calcado sobre bens corpóreos, criaram-se entidades como cartórios, Detrans, Capitania dos Portos, ANAC etc. São eles que atestam a titularidade da propriedade, sobrepondo-se a qualquer declaração emitida pelo particular sobre seus próprios bens.

A primeira grande ruptura do modelo clássico veio com a propriedade intelectual, que por ser tão estranha ao Código Civil, nele não encontrou guarida, precisando de lei extraordinária para ingressar no sistema. Para este pertencimento também foi no registro que se encontrou a segurança da propriedade e das relações contratuais. O INPI representa para a propriedade incorpórea o que os demais órgãos representam para a propriedade corpórea.

Os bens digitais hoje seguem desbravando a temática do registro, tendo no NFT a melhor alternativa para garantir titularidade exclusiva, um curioso retorno aos valores consolidados pela propriedade clássica. Mas como não há previsão no Código Civil, nem em qualquer outra lei civilista, esse tipo de registro tem o único efeito de provar a existência de um negócio jurídico e a boa-fé dos contratantes. No mais, podem ser considerados como ativos dentro de uma esfera patrimonial, adquiridos por meio de contrato, sem titularidade de direito real.

A contemporaneidade trouxe várias dimensões de propriedade, para além do modelo individual e abstrato dos modernos. Por esta razão Eroulths Cortiano (2002. p. 158-159) fala na existência de vários estatutos proprietários, ao lado do modelo clássico.

Por isso, o exercício dos poderes proprietários não cabe mais no abstrato modelo de usar, fruir e gozar. Bens de produção ou de consumo, móveis ou imóveis, imóveis rurais e urbanos, riqueza material ou imaterial, propriedade empresarial, atividade financeira, bens culturais, todos têm diversos regimes proprietários. A diversidade dos bens, seja por sua natureza, seja pela sua destinação que se lhes dê, envolve uma análise circunstancial e concreta implementada pelo trabalho do legislador e do jurista – para a realização de sua função social.

No contrato de compra e venda, há a obrigação de transferir o domínio, o que revela que a transferência do verdadeiro poder sobre a coisa se dá pelo contrato. Já para o vendedor o poder de pertencimento se encerra ali, ainda que mantenha vínculos por responsabilidade junto a terceiros (o registro).

Paulo Lôbo (2020, p.97-98) ressalta a linguagem utilizada pelo legislador e pelo senso comum. Afirma: “Às vezes é utilizada como gênero, incluindo todos os modos de pertencimento da coisa, até mesmo a posse autônoma. Porém, a expressão ‘direito de propriedade’ deve ser restrita a quem detenha titulação formal reconhecida pelo direito para aquisição da coisa. Assim, a acessão, a usucapião, a sucessão, o registro imobiliário”.

E segue refletindo:

Na contemporaneidade, as mudanças têm sido de tal magnitude que se cogita não mais de um genérico direito de propriedade, mas de direito das propriedades, além da viragem rumo à funcionalização, à interlocução com deveres gerais de conduta e ao exercício ambiental sustentável.

Se é certo que o sistema jurídico brasileiro comporta vários estatutos proprietários, e não somente o instituto da propriedade clássica, absoluta e exclusiva, então como deve ser o estatuto que regulará a propriedade digital? O fato é que ela, ao romper as estruturas clássicas da propriedade, demanda uma regulação própria e inovadora.

Diz Alexandre Barbosa (2018, p.180) que a propriedade é complexa por natureza, possuindo um elemento exterior e outro interior:

A propriedade, assim, tem natureza jurídica complexa, uma  vez que, espécie do gênero Titularidades, que tem por conteúdo um elemento interior (o domínio, enquanto poderes proprietários, na concepção tradicional) e exterior (a propriedade em sentido estrito, com forma obrigacional negativa – dever geral de abstenção -, intersubjetiva).

O conceito de móvel e imóvel foi pensado para a propriedade corpórea, daí a dificuldade de enquadramento da propriedade sobre bens digitais. Neste aspecto linguístico, é curioso imaginar um bem flutuante, em contraponto aos dois conceitos clássicos. Outro aspecto interessante é a possibilidade de ser replicado sem perder sua identidade. Fotos, textos, vídeos, músicas, tudo pode ser multiplicado em cópias intermináveis, entregues a outras pessoas não proprietárias, sem passar por uma relação contratual de compra e venda. Tudo tem fundamento no compartilhamento.

Os conceitos de bem novo e usado passam por uma releitura, posto que um bem corpóreo pode se decompor, amarelar, desgastar. Mas um bem digital sempre será novo, com uma capacidade de se replicar na sua inteireza indefinidamente. E este é um aspecto jurídico relevante para certos arquétipos do direito, como o valor do bem na compra e venda, o poder de doação por parte do titular, a autorização para replicá-lo e até mesmo a sucessão.

Na busca de um estatuto proprietário adequado para os bens digitais, os quais já são responsáveis pela base da economia, urge a discussão sobre a segurança jurídica quanto à sua titularidade. A proteção de direitos passa por elementos como a identificação de um titular, de mecanismos de proteção contra apropriação indevida, dos direitos daqueles que têm apenas o acesso, e por instrumentos seguros de negócios sobre esses bens.

O Código Civil tradicionalmente se dedicou aos bens imóveis, dado que sempre foram os bens mais valiosos a compor o patrimônio de uma pessoa. Basta lembrar que o Código surge em sociedades agrícolas, daí as terras serem o bem mais desejado. O registro do bem trouxe segurança sobre a titularidade e sobre o cumprimento de obrigações. Os bens móveis, por sua vez, quando passaram a refletir o mesmo patamar de riqueza, graças à era industrial, também passaram a ser objeto de registro. Por isso, veículos, aeronaves e embarcações passaram a ser registrados.

Somente no século XX é dada atenção aos bens imateriais, e a propriedade intelectual, ao representar um padrão de riqueza, passa a sofrer a obrigatoriedade do registro. Agora, os bens digitais trazem a evolução desses parâmetros e desafiam o legislador para a regulação da sua titularidade. A partir da teoria de Ricardo Aronne, um dos caminhos que podem ser explorados é o de se vislumbrar que os bens digitais proporcionam domínio, mas não propriedade.

Ricardo Aronne (2014. p. 80; 85-86) separou os conceitos de domínio e propriedade, que para ele “traduzem conceitos autônomos, ainda que complementares e não exclusivos”. Em suas palavras: “A propriedade ampara e instrumentaliza o domínio […]. Pelas razões esposadas até aqui, o domínio tem natureza real, e a propriedade, natureza pessoal; assim, o domínio seria o centro dos direitos reais”.

Segundo o autor, “o domínio tem por objeto uma coisa e suas faculdades, não tendo um sujeito passivo; já a propriedade tem por objeto uma prestação, tendo sujeito passivo e não sendo de natureza real. Aí está o ponto-chave da ‘repersonalização’ buscada, onde se funcionaliza o direito real, pela via de seu instrumentalizador”. (2014. p. 80; 85-86)

E segue explicando que o domínio é o núcleo do direito real. A propriedade instrumentaliza os poderes adquiridos pelo domínio. Diz: “o domínio, além de um conjunto de direitos no bem, é uma relação (vínculo) entre o sujeito e a coisa, justamente em função de tais direitos, instrumentalizados pela propriedade, que poderá dispor sobre a forma do exercício do domínio sobre o bem” (2014. p. 95).

Ocorre que a afirmação acima, longe de representar um ponto final, traduz apenas um dos diversos matizes do fractal da contemporaneidade: os bens incorpóreos, na modalidade digital, podem gerar propriedade sem registro? O Código Civil está preparado para ampliar o sentido de apropriação e assim abarcar o compartilhamento e as multititularidades? O domínio é mais importante que a propriedade?

Caro leitor, as reflexões apenas começam, e há mais perguntas do que respostas, mas o certo é que só os pontos de interrogação nos tiram da inércia de um ponto final. É preciso refletir.

 

Everilda Brandão Guilhermino
Advogada. Mestre e Doutora em Direito Civil (UFPE). Professora de pós-graduação em Direito Civil. Associada do Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil (IBERC) e Membro Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual – IBDCont. Membro do Grupo de Pesquisa CONREP. Associada do Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil (IBERC) e do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil).

 

Marcos Ehrhardt Júnior
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor de Direito Civil da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e do Centro Universitário Cesmac. Editor da Revista Fórum de Direito Civil (RFDC). Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil). Presidente da Comissão de Enunciados do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Advogado.

 

Referências
ARONNE, Ricardo. Propriedade e Domínio: a teoria da autonomia. Titularidades e Direitos Reais nos Fractais do Direito Civil-Constitucional. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2014.
CORTIANO JÚNIOR, Erouths. O Discurso Jurídico da Propriedade e suas Rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
LÔBO, Paulo Luiz Neto. COISAS. Saraiva: São Paulo, 2020.
SILVA, Alexandre Barbosa da. Propriedade sem Registro: contrato e aquisição da propriedade imóvel. Juruá: Curitiba, 2018.
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; LEAL, Livia Teixeira. Tutela jurídica dos bens digitais ante os regimes de bens comunheiros. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; CATALAN, Marcos; MALHEIROS, Pablo (Coord.). Direito Civil e tecnologia. Belo Horizonte: Fórum, 2020.

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