O caráter contratual da prestação dos serviços públicos de saneamento básico e o dever de contribuição do cidadão para a sua adequada execução | Coluna Saneamento: Novo Marco Legal

27 de setembro de 2022

Um dos maiores objetivos do novo marco legal do saneamento básico (Lei federal nº 14.026/2020, que alterou o diploma legal original – Lei federal nº 11.445/2007) é a universalização dos serviços públicos de saneamento, com a adequada execução, de modo integral, franqueado o mais amplo acesso e obedecendo padrões de eficiência e metas de expansão definidas normativamente. Segundo o novo marco, as metas de universalização deverão ser definidas contratualmente e até o final de 2033, 99% da população deverá ser atendida com o serviço de água potável e 90% deverá ter acesso à coleta e tratamento do esgotamento sanitário. É fato notório que a adequada prestação dos serviços de saneamento básico à população tem impactos positivos relevantes na saúde coletiva, além de ensejar outras externalidades positivas que excedem o fornecimento de água e o esgotamento sanitário propriamente ditos, daí a urgência na ampliação do acesso aos serviços.

Para cumprir esse nobre fim, o legislador reconheceu a importância da participação de entes privados não estatais na qualidade de prestadores, disciplinando expressamente sobre a concessão dos serviços públicos, vedando a prorrogação dos contratos de programa vigentes entre companhias estatais de saneamento básico e municípios (legítimos titulares dos serviços), criando assim um ambiente de competitividade.

O novo marco legal do saneamento evidenciou o caráter contratual da prestação dos serviços públicos de saneamento básico, definindo a concessão como forma adequada de prestação, mediante prévia licitação. Instrumentos precários e a contratação direta são vedados pela norma. A norma privilegia a concorrência entre os prestadores bem como a participação privada na prestação dos serviços.

Nesse cenário, resta evidenciada a necessidade de uma atuação conjugada e harmônica de todos os atores partícipes da execução do serviço público de saneamento básico, o qual abrange o abastecimento de água, o esgotamento sanitário, a coleta de resíduos sólidos e limpeza urbana e a drenagem de águas pluviais.

A execução dos serviços públicos de saneamento básico tem como pressuposto a conformação de uma relação tripartite, envolvendo o titular do serviço público, o sujeito responsável pela sua prestação (“prestador”) e os usuários. Cada um desses sujeitos é detentor tanto de direitos quanto de deveres no que toca a adequada execução dos serviços – direitos e deveres esses que decorrem expressamente da lei, de normas regulamentares ou do contrato de concessão. Permeando essa relação tripartite, tem-se ainda um quarto ator: a agência reguladora dos serviços públicos de saneamento básico, a ser eleita pelo titular dos serviços, a qual é responsável por aferir o cumprimento dos deveres de todos os sujeitos partes dessa relação, além de estabelecer padrões e normas à adequada prestação e expansão dos serviços. É somente a partir da atuação conjugada e harmônica desses atores que se viabiliza a prestação dos serviços de abastecimento de água, esgotamento sanitários, coleta de resíduos sólidos urbanos, limpeza urbana e drenagem na forma propugnada pela legislação e que será possível atingir a almejada universalização.

A atuação desses diversos atores é organizada as partir de um plexo de relações contratuais, com destaque para aquela estabelecida entre o titular dos serviços públicos (município ou ente regional latu sensu) e o prestador (concessionária do serviço público de saneamento – seja ela uma empresa privada ou pública), entre prestador e usuário e entre titular e usuário. O caráter contratual dessas relações subsiste mesmo que na ausência de um contrato formal firmado entre as partes – como, por exemplo, nas relações estabelecidas entre usuário do serviço público de saneamento e os demais sujeitos. E tal qual em toda a relação contratual, as partes são detentoras de direitos e de obrigações recíprocos.

Se por um lado são muito claros os deveres que emergem das relações de que são detentores os titulares e prestadores do serviço de saneamento em relação aos usuários – como a prestação de um serviço adequado, acessibilidade, integralidade e modicidade tarifária – por outro, não se pode olvidar que os últimos são não apenas detentores de direitos no que toca o serviço, mas também de deveres. Sedimentada essa compreensão, tem-se que a adequada prestação dos serviços públicos de saneamento básico, sua expansão e cumprimento das metas de universalização postas legalmente só dar-se-ão se todos os atores envolvidos cumprirem as suas obrigações diligentemente, na forma da norma e dos dispositivos contratuais expressos.

Posto isso, destaca-se aqui o dever dos usuários ao uso racional da água, à adequada deposição de resíduos, ligação à rede de abastecimento e de esgotamento sanitário e ao pagamento das tarifas.

A ideia contida na relação contratual acima descrita, de obrigações mútuas ou recíprocas, é reforçada pela Lei Federal nº 11.445/2007 com as alterações advindas da Lei federal nº 14.026/2020, quando, em seu artigo 45, afirma que “as edificações permanentes urbanas serão conectadas às redes públicas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário disponíveis e sujeitas ao pagamento de taxas, tarifas e outros preços públicos decorrentes da disponibilização e da manutenção da infraestrutura e do uso desses serviços”. Do dispositivo dessume-se não existir a faculdade do cidadão de realizar a conexão à rede disponibilizada pelo prestador para que ocorra a prestação do serviço público de saneamento, mas sim um dever – dever esse decorrente diretamente da disponibilização da infraestrutura de saneamento. Nesse mesmo sentido, os parágrafos do artigo, cartesiana e expressamente, afirmam que, ainda que o cidadão não tenha realizado a sua conexão, é assegurada a cobrança de um “valor mínimo de utilização dos serviços”. Soluções individuais, mediante a instalação de sistema individual alternativo de saneamento, são admitidos unicamente quando a região não for atendida diretamente pela rede pública. Posto isso, resta claro que a lei cristaliza o dever de contribuição do usuário com a sociedade, sobrepondo a coletividade ao indivíduo. Sob essa ótica, dada a necessária e impositiva atuação do usuário, é possível afirmar que é também obrigação de cada cidadão contribuir para a universalização do saneamento básico – não se trata de dever atribuído unicamente ao Estado ou ao prestador direto.

Paralelamente, a ligação (ou não ligação) dos usuários à rede de abastecimento e de esgotamento sanitário excede questões puramente contratuais relacionadas diretamente à execução do serviço propriamente dita: fator que, mesmo quando exógeno ao contrato em sentido estrito, é intrinsecamente relacionado ao saneamento básico e o meio ambiente. O marco legal do saneamento básico dá ênfase à necessidade de preservação ambiental concomitantemente à execução dos serviços em diversos momentos. Não obstante, a preocupação ambiental é uma tônica cada vez mais relevante nas mais variadas atividades empresariais, sendo atribuídas aos prestadores dos serviços públicos de saneamento diversas obrigações nesse sentido. O cidadão que se nega a utilizar esses serviços está a colocar em risco o meio ambiente equilibrado, uma vez que, ao utilizar sistemas individuais de esgotamento sanitário, pode vir a contribuir para a contaminação de lençóis freáticos e, consequentemente, pôr em risco a saúde pública, além de, eventualmente, onerar ainda mais o tratamento de afluentes de água.

Outro ponto que merece atenção diz respeito ao custeio dos serviços públicos de saneamento básico. É fato notório que se tratam de serviços de elevados custos, – em especial os serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário – custos esses a serem arcados, invariavelmente, pelo prestador, ante o necessário cumprimento de suas obrigações face o Poder Concedente. Ao ser firmado o instrumento entre o titular do serviço público e o concessionário, são estabelecidos os investimentos a serem realizados, identificada a área e população a ser atendida, definidas metas e de expansão de atendimento e respectivos prazos, dentre outros fatores que refletirão diretamente no custo do serviço e, consequentemente, na tarifa a ser cobrada dos usuários. Esta, por sua vez, é calculada considerando que, regra geral, os usuários cumprirão com o seu dever de pagamento, assegurando a sustentabilidade do contrato de concessão.

Somente mediante o adimplemento dos usuários de sua obrigação de pagamento pela fruição/disponibilização dos serviços públicos de saneamento básico que o contrato de concessão poderá ser adequadamente cumprido, bem como os deveres decorrentes da legislação regulamentar, sem que o concessionário incorra em prejuízos. Nesse sentido dispõe o marco legal do saneamento básico, ao afirmar em seu artigo 29, caput, que os serviços “terão a sustentabilidade econômico-financeira assegurada por meio de remuneração pela cobrança” e que as tarifas, taxas e preços públicos deverão contemplar a “recuperação dos custos incorridos na prestação do serviço, em regime de eficiência; recuperação do capital investido pelos prestadores dos serviços; geração dos recursos necessários para a realização dos investimentos objetivando o cumprimento das metas e objetivos do serviço” (art. 29, §1º).

Não se pode olvidar que, tal qual em todo o contrato administrativo, os contratos de concessão dos serviços públicos de saneamento básico têm como uma de suas bases estruturais a preservação do equilíbrio econômico-financeiro estabelecido na ocasião da formalização do instrumento contratual, compreendido como a relação entre encargos do contrato e a sua justa remuneração, que deve se manter constante durante todo o período de execução contratual. Havendo uma alteração relevante nessa relação de equilíbrio, que torne demasiado oneroso o cumprimento do contrato pelo particular, as cláusulas financeiras deverão ser revistas, retornando-se à conformação original.

Logo, o inadimplemento contumaz dos usuários coloca em risco o equilíbrio econômico-financeiro do contrato e, possivelmente, a realização de investimentos e cumprimentos de metas de expansão pelo concessionário. Ainda, pode implicar no aumento do valor das tarifas cobradas dos usuários pagantes como mecanismo para reequilibrar o contrato.

Do exposto, dessume-se que tal qual é dever do prestador ou do titular do serviço público a disponibilização de rede de abastecimento de água e esgotamento sanitário, é obrigação do usuário tanto a ligação à rede, quanto o adimplemento de suas obrigações de pagamento perante o prestador do serviço. Além disso, este deve contribuir com o uso racional e eficiente da água, compreendida como recurso natural escasso, colaborando para o estabelecimento de tarifas mais módicas. Somente assim é que poderão ser atingidos os objetivos e metas postos no novo marco legal do saneamento, com destaque para a universalização, efetiva prestação do serviço e integralidade, associados à preservação ambiental.

Para assegurar o adimplemento adequado das obrigações dos diversos sujeitos associados à execução dos serviços de saneamento básico, bem como o cumprimento dos objetivos e metas postos na lei, tem papel relevante a agência reguladora designada, a ser eleita pelo titular do serviço público. Em consonância ao que já fora consignado, dentre os objetivos da regulação postos na lei, tem-se o estabelecimento de tarifas capazes de assegurar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos bem como a modicidade tarifária, concomitantemente à garantia do serviço adequado à população.

Nesse sentido, o regulador deverá contemplar e equilibrar os direitos e interesses tanto dos prestadores dos serviços quanto dos usuários, além de assegurar a consecução dos objetivos e metas previstos em lei e nos planos municipais ou de prestação regionalizada. A fiscalização é dever da agência reguladora e a ela caberá a imposição de sanções ao prestador em caso de inadimplemento de suas obrigações. Contudo, não poderá o ente regulador exigir dos concessionários o cumprimento de supostos deveres não decorrentes da legislação ou do contrato de concessão específico. As normas pelo regulador local a serem editadas deverão estar em consonância à lei geral de saneamento e às diretrizes postas pela Agência Nacional de Águas.

Resta claro que a adequada execução dos serviços públicos de saneamento básico demanda uma atuação concertada dos diversos atores partícipes: titular ou poder concedente, prestador ou concessionário, usuários e ente regulador. Somente a partir da relação harmônica e do cumprimento dos deveres e obrigações por todas as partes é que poderão ser atingidos os objetivos e metas postos pelo novo marco legal saneamento, em especial a universalização, com o atendimento de todos os municípios brasileiros, a integralidade, continuidade, sustentabilidade econômica e preservação do meio ambiente.

 

Ana Carolina Hohmann
Advogada, Doutora e Mestre em Direito do Estado
Assiria M. L. Masetti
Advogada Especialista em Direito Processual Civil

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Para manter sua atualização sobre as novidades dos marcos regulatórios recomendamos que conheça nossas revistas. Sobre o novo marco legal do Saneamento, existem artigos de renomados professores da área como, Rafael Véras de Freitas, Andréa C. de Vasconcelos, Egon Bockmann Moreira, Heloísa Conrado Caggiano e Gabriel Jamur Gomes, na Revista de Direito Público e Economia – RDPE, além de jurisprudências na FÓRUM de Direito Urbano e Ambiental – FDUA e na Revista Brasileira de Direito Municipal – RBDM.

 

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