A inserção de novas tecnologias e o equilíbrio econômico-financeiro no setor de distribuição de gás canalizado

22 de maio de 2023

Como se sabe, o serviço público estadual de distribuição de gás canalizado (de que trata o art. 25, § 2°, da CRFB) é prestado, por intermédio de redes qualificadas como monopólios naturais. É dizer, na prestação de tais serviços, só poderá haver um prestador, uma vez que os custos iniciais são elevados (sunk costs) e os custos, para sua utilização, por cada novo usuário, são incrementais. Assim, para que a atividade se torne economicamente viável, deve-se retirá-la da esfera da concorrência para a obtenção de economias de escala e de economias de escopo, sob pena de a competição, por usuários, impossibilitar a amortização dos investimentos afundados.[1] A economia de escala é aquela que terá lugar quando, já tendo o operador privado incorrido em um alto custo fixo para o desenvolvimento da atividade (v.g. construção da rede de distribuição), não tem significativos custos marginais (variáveis) em virtude do aumento da quantidade de usuários. A economia de escopo, por sua vez, terá lugar quando o operador conseguir se valer da mesma infraestrutura para desempenhar mais de uma atividade (v.g. a utilização da mesma rede para prestar serviços ancilares). Em tal hipótese, haverá diluição do custo fixo investido na construção da infraestrutura, justamente pela otimização do uso da rede pela exploração de outras atividades. Razão pela qual qualquer tentativa de aumentar o número de produtores dessa indústria importará na presença de uma ou mais plantas de escala subótima[2].

Assim é que, sobretudo após edição da Emenda Constitucional n°05/1995, a maior parte dos contratos de concessão de distribuição Gás Canalizado instalou um modelo de regulação discricionária (discretionary regulation), a partir da fixação de uma tarifa teto (price cap), metodologia por intermédio da qual, ao se fixar um preço máximo para a tarifa, pretende-se criar incentivos para que o concessionário aumente a sua rentabilidade, pela gestão eficiente de seus custos[3].

A adoção de uma regulação discricionária, para tal setor, se mostra a mais adequada, como bem como lecionam Guilherme Cavalcanti e Leonardo Cocchieri Leite Chaves[4],  em razão das seguintes características específicas que lhe são subjacentes: (i) a elevada imprevisibilidade dos investimentos necessários para a expansão das redes, por se tratar de setores que ainda carecem de ampliação ou aperfeiçoamento de infraestrutura; (ii) políticas setoriais que têm como meta a universalização dos serviços; (iii) a constante necessidade de aperfeiçoamento de tecnologias na prestação dos serviços, inviabilizando o estabelecimento antecipado da natureza e do volume dos investimentos que deverão ser aportados pelo concessionário ao longo do tempo, que podem demandar alocações distintas do encargo tarifário entre setores industriais e residenciais, por exemplo, da concessão, sobretudo em seu período final; e (iv) variações relevantes nos distintos perfis dos usuários, tanto por questões sociais, com variação tarifária para usuários com menor capacidade de pagamento, quanto, especialmente, por questão de políticas de desenvolvimento econômico.

Nesse quadrante, a entidade reguladora, a cada ciclo tarifário, tem a missão de averiguar, ex post, se as “obrigações de investimento” e as “obrigações de desempenho” apresentadas, pelos Concessionários, em seu Plano de Negócios, foram implementadas, de modo a justificar a tarifa de equilíbrio.

Acontece que, mesmo em setores submetidos à regulação discricionária, não se pode desconsiderar os impactos que o advento de novas tecnologias[5] terá no devir de cada ciclo tarifário para além do que já restou provisionado a título de P&D. Nesse sentido, como bem destaca Ronaldo José de Andrade[6], em obra específica sobre tema, ao examinar a incorporação de novas tecnologias, em contratos de concessão que adotam regulações contratuais (v.g. Contratos de Concessão de Rodovias), o risco de “inovação tecnológica, que se refere à incorporação de tecnologia de natureza disruptiva no respectivo setor, a literatura nacional e internacional recomenda a sua alocação ao parceiro público”.

Cuida-se de entendimento que não pode ser desconsiderado às concessões submetidas à regulação discricionária. Afinal de contas, os deveres genéricos de garantir a “adequação” e a “atualidade” (art. 6º, § 1º e § 2º, da Lei nº 8.987/1995) não criam uma obrigação genérica e indeterminada para concessionárias de distribuição de gás canalizado. De fato, a Concessionária só é obrigada a responder pelas metas previamente previstas no edital, nos termos do art. 18, inciso I, da Lei nº 8.987/1995. E, do mesmo modo, a fazer frente ao atendimento de obrigações previamente delineadas no seu Plano de Negócios (art. 23, inciso V, da Lei n° 8.987/1995).

Não se trata de matéria desconhecida das melhores práticas internacionais de concessões e parceiras público-privadas. O Global Infrastructure Hub (“GIHub”), por exemplo, sugere que o risco pelo surgimento de novas tecnologias seja compartilhado (entre Poder Concedente e concessionário). Na Espanha, a Lei nº 9/2017, que foi responsável por transpor ao seu ordenamento jurídico as Diretivas nos 2014/23/UE e 2014/24/UE, exaradas pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho da União Europeia, em seu art. 259 prescreve que: “a concessionária deverá manter as obras de acordo com as normas técnicas, ambientais, de acessibilidade, de remoção de barreiras e de segurança ao usuário, aplicáveis em cada momento e de acordo com o progresso da ciência”. Cuida-se da conhecida “Cláusula de Progresso”. De acordo com Nuria Magaldi Mendaña[7], a cláusula de progresso, como instrumento arbitrado, a partir do direito administrativo, permitiu que os efeitos econômicos do progresso tecnológico fossem internalizados nos contratos de concessão. Mais que isso, a introdução da cláusula de progresso teve por desiderato equacionar o dever de atualidade e a manutenção do equilíbrio econômico contratualmente estabelecido.

Diante de todo exposto, é se concluir que, mesmo no âmbito de contratos de concessão, que adotem um modelo tarifário de regulação discricionária, não se pode desconsiderar a incidência de novas tecnologias, na prestação dos serviços aos usuários, de modo que sejam compatibilizados o dever genérico de atualidade com a intangibilidade da equação econômico-financeira. Do contrário, criar-se-á um cenário de risco moral (Moral Hazard) às concessionárias distribuidoras de gás canalizado, segundo o qual só os prestadores submetidos à regulação contratual teriam incentivos para realizar investimentos em novas tecnologias.

Rafael Véras
Coordenador da Coluna Direito da Infraestrutura da Editora Fórum.
Professor Responsável do LLM de Infraestrutura e Regulação da FGV Direito Rio.
Doutorando e Mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.

 

Andréa Di Benedetto Arantes
Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Especialista em Regulação pela Florence School of Regulation.

Notas
[1] A distribuição de gás canalizado, em que pese monopólio natural, enfrenta a competição de outros energéticos, a exemplo, da energia elétrica, do Gás Liquefeito de Petroléo – GLP, entre outros, o que torna o setor ainda mais desafiador.
[2] DEMSETZ, H. Why regulate utilities? Journal of Law and Economics, Chicago, v. 11, n. 1, p. 55-65, 1968.
[3] JAMISON, M. A. Regulation: price cap and revenue cap. In: CAPEHART, Barney L. (Ed.). Encyclopedia of energy engineering and technology. Boca Raton: CRC Press, 2007. p. 1.245-1.251; JOSKOW, P. L. Incentive regulation in theory and practice: electricity distribution and transmission networks. In: ROSE, Nancy L. (Ed.). Economic regulation and its reform: what have we learned? Cap. 2. Cambridge: NBER, 2011; LAFFONT, J.-J.; TIROLE, J. A theory of incentives in procurement and regulation. Cambridge: MIT Press, 1993; LITTLECHILD, S. C. Regulation of British telecommunications’ profitability: report to the secretary of State. London: Department of Industry, 1983.
[4] CAVALCANTI, Guilherme; CHAVES, Leonardo Cocchieri Leite. Prorrogação ordinária de contratos submetidos à regulação discricionária: implicações do modelo de regulação sobre a prorrogação contratual. Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo: Parcerias Público-Privadas, Vol. III, São Paulo, nº 96, p. 129-176, 2022.
[5] Ao se falar em tecnologia, refere-se a qualquer processo com capacidade de transformar a realidade, seja ela física ou mesmo virtual. Segundo, Jonathan B. Wiener (in The regulation of technology, and the technology of regulation. Technology in Society, Durham, n. 26, p. 483-500, 2004. Disponível em: http://scholarship.law.duke.edu. Acesso em: 1o maio 2016), é “qualquer artefato ou sistema que promova a conversão de inputs em outputs, modificando a função produtiva”. De modo a demonstrar que tecnologia é algo muito mais amplo e está dentro de um processo de contínuo aperfeiçoamento, atualização e criação.
[6] ANDRADE, Ronaldo José de. Incorporação de novas tecnologias em contratos de concessão: estudo de caso do setor rodoviário paulista. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 88.
[7] MENDAÑA, Nuria Magaldi. La aparición de la “cláusula de progreso”: de la iluminación por gas a la iluminación eléctrica. Asociación Española de História Económica. Disponível em: https://www.aehe.es/wp-content/uploads/2016/01/Nuria-Magaldi.pdf. Acesso em: 24 abr. 2023.

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