O Marco Regulatório da Geração Distribuída (GD): um trade off entre a sustentabilidade e a higidez dos contratos de Distribuição

17 de abril de 2023

A Geração Distribuída (GD) é uma forma de geração de energia renovável, local ou remota, por intermédio da qual o excedente de energia elétrica gerado por unidade consumidora de titularidade de um consumidor-gerador, pessoa física ou jurídica (notadamente empreendimentos que se valem da energia solar, como fonte de energia), é compensado ou creditado, pela mesma unidade, no âmbito do Sistema de Compensação de Energia Elétrica (SCEE). O tema fora disciplinado, historicamente, por intermédio da Resolução Normativa (REN) ANEEL n° 482/2012, normativo que permitiu que os usuários do sistema pudessem gerar a sua própria energia elétrica, a partir de fontes renováveis, ou de cogeração qualificada, bem como fornecer o excedente para a rede de distribuição de sua localidade – normativo que restou revisado pela REN nº 687/2015.

A agenda de debates a propósito do tema ganhou novos quadrantes, a partir da edição da REN n° 1.000/2021 (alterada pela REN n° 1059/2023), que teve por desiderato, para além de reduzir os custos e o tempo para a conexão da microgeração e minigeração, compatibilizar o Sistema de Compensação de Energia Elétrica com as condições gerais de fornecimento de energia, no âmbito dos sistemas de distribuição de energia elétrica. Mais recentemente, foi editada a Lei n° 14.300/2022, que institui o marco legal da microgeração e minigeração distribuída, o Sistema de Compensação de Energia Elétrica (SCEE) e o Programa de Energia Renovável Social (PERS).

O cerne do Novo Marco Regulatório da GD é o de propiciar que a diferença positiva entre a energia elétrica injetada e a energia elétrica consumida, por unidade consumidora com microgeração ou minigeração distribuída de titularidade de consumidor-gerador, possa ser compensada entre o gerador e o concessionário de distribuição de energia elétrica. Tal encontro de contas será endereçado, por posto tarifário, a cada ciclo de faturamento – exceto para o caso de empreendimento com múltiplas unidades consumidoras ou geração compartilhada.

A despeito de fomentar a utilização de fontes renováveis de energia (providência alvissareira em face da dependência hidrotérmica brasileira), fato é que o novel diploma produzirá efeitos nos contratos de concessão de distribuição em vigor. É que, de acordo com o art. 2° do normativo, “as concessionárias ou permissionárias de distribuição de energia elétrica deverão atender às solicitações de acesso de unidade consumidora com microgeração ou minigeração distribuída, com ou sem sistema de armazenamento de energia, bem como sistemas híbridos, observadas as disposições regulamentares”. Ainda de acordo com o Marco Regulatório, “Para o atendimento às solicitações de nova conexão ou de alteração da conexão existente para instalação de microgeração ou minigeração distribuída, deve ser calculada a participação financeira da concessionária ou permissionária de distribuição de energia elétrica, bem como a eventual participação financeira do consumidor-gerador titular da unidade consumidora onde a microgeração ou  minigeração distribuída será instalada, consideradas as diretrizes e as condições determinadas pela Aneel” (art. 8°).

Note-se que a arquitetura regulatória, instalada pela Lei n° 14.300/2022, instaura um dilema econômico-financeiro entre, de um lado, um prestador de um serviço público (que tem o seu título habilitante lastreado a partir da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro de seu contrato de concessão, caudatário do regime jurídico-administrativo – publicatio) e, de outro, um usuário que pretende, a partir da utilização de novas tecnologias, incrementar a sua autossubsistência energética.

Acontece que o sistema de distribuição de energia é um recurso escasso. Razão pela qual nem sempre tal facility possuirá capacidade de recepcionar novas conexões. Assim é que, quando o sistema se encontra saturado (em decorrência da inviabilidade técnica da absorção de novos pedidos de acesso), a distribuidora terá de realizar novos investimentos, na construção de subestações, que viabilizem a conexão dos novos entrantes. Cuida-se da criação de “obrigações de investimentos”, que produzirão impactos nas metas de universalização, previamente estipuladas pela ANEEL, para as distribuidoras.

Some-se a isso o fato de que, no Brasil, o sistema tarifário do segmento de distribuição se vale da sistemática dos subsídios cruzados, de modo que os consumidores-geradores (aqueles que produzem e consomem a sua própria energia através da GD) têm sua geração remunerada pelo mesmo valor da tarifa da distribuidora. Nesse quadrante, quanto mais empreendimentos de GD forem conectados ao sistema, maior será o custo a ser repartido pelos demais consumidores comuns que não possuem painéis fotovoltaicos de geração de energia. Daí a necessidade de se endereçar a análise dos pleitos destes novos entrantes, à luz de todos os seus efeitos prospectivos, no Setor Elétrico, sob pena de violação do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de distribuição (art. 9°, § 4°, da Lei n°8.987/1995). E isso, ao menos, por três ordens de razão.

A uma, porque os investimentos que serão realizados pelas Concessionárias de Distribuição estão sujeitos a diversos critérios regulatórios e de acompanhamento, pela ANEEL (agência reguladora responsável) – eis que afetam diretamente o valor da tarifa paga pelo consumidor final. Tais investimentos compõem o chamado Plano de Desenvolvimento da Distribuição (“PDD”), que é regulamentado pelo Anexo II, da Resolução Normativa ANEEL nº 956/2021, a qual estabelece os Procedimentos de Distribuição de Energia Elétrica no Sistema Elétrico Nacional (“Prodist”).

A duas, na medida em que qualquer decisão descoordenada, que embarrasse o equilíbrio sistêmico do Setor Elétrico, poderá importar em risco de continuidade de um serviço público, que é essencial à população brasileira (art. 21, XII, b, da CRFB). É que, em razão de eventual decisão descoordenada, corre-se o risco de serem experimentadas as seguintes vicissitudes ao serviço público prestado aos usuários: (i) a interrupção no fornecimento de energia elétrica a milhares de consumidores atendidos pela subestação; (ii) o agravamento nos índices de DEC (Duração Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora) e FEC (Frequência Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora); (iii) a produção de impacto nos indicadores de tensão em regime permanente DRP (Duração Relativa da Transgressão de Tensão Precária) e DRC (Duração Relativa da Transgressão de Tensão Crítica). São impactos que violam a própria sistemática prevista da REN nº 1.000/2021.

Não se trata de fenômeno desconhecido em outros países. No ano de 2005, por exemplo, a Itália passou a fomentar a Geração Distribuída, por intermédio de uma política pública chamada de “Conto Energia”, introduzindo um mecanismo denominado feed in tariff (FIT). De acordo com tal mecanismo, o consumidor-gerador receberia um crédito pela totalidade de energia gerada, e não apenas pela energia efetivamente injetada no sistema de distribuição[3]. Nos anos seguintes, o modelo regulatório italiano passou por algumas modificações, visando conter o crescimento da GD e o seu nítido impacto no sistema de distribuição de energia. Todavia, o crescimento continuou de maneira desenfreada, alcançando, no ano de 2015, o número de 18,9 GW de potência instalada, ou seja, maior que toda a potência instalada da maior hidrelétrica do mundo (Hidrelétrica Três Gargantas, com 18,2 GW).

O crescimento desenfreado da GD de fonte solar na California, em igual medida, trouxe efeitos perversos para a estabilidade do sistema[4]. À medida que a energia solar tem caráter intermitente, o sistema de distribuição recebe uma alta injeção de energia durante o período da tarde. Diante disso, um pico de carga (consumo de energia) do sistema ocorre durante a noite, período em que não há injeção de energia pelas usinas fotovoltaicas. Este fenômeno foi intitulado, pelo California ISO (Caiso), como “Curva do Pato”, em razão da curva gráfica que indica a carga líquida de energia elétrica resultante da variação entre demanda total de energia e a geração fotovoltaica, que ocorre durante o dia. Tal fenômeno é demonstrado no gráfico abaixo colacionado:

Nesse cenário, segundo Meredith Fowlie, Professora da Universidade de Berkley[5], a partir do ano de 2016, a curva do pato se tornou um problema estratégico para a operação do sistema de distribuição da California.

Não se desconsidera a importância do fomento à exploração das fontes renováveis de energia, como restou plasmado, desde o Programa de Desenvolvimento da Geração Distribuída de Energia Elétrica – ProGD (Portaria nº 538/2015) até a recente Lei n° 14.300/2022. Nada obstante, isso não autoriza que uma política pública, que é importante para reduzir a dependência hidrelétrica de grandes geradores centralizados, desconsidere os seus impactos sistemáticos no equilíbrio econômico-financeiro das concessões de distribuição de energia. Os custos de transação da descoordenação regulatória são salientes. E quem poderá pagar essa conta são os usuários cativos do sistema.

Rafael Véras[1]

Coordenador da Coluna Direito da Infraestrutura da Editora Fórum.
Professor Responsável do LLM de Infraestrutura e Regulação da FGV Direito Rio.
Doutorando e Mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.

Felipe Henrique Braz[2]

Advogado. Relator da Task-Force de Modernização do Setor Elétrico da ICC Brasil.
Professor da Pós-Graduação em Direito da PUC-PR
Notas
[1] Coordenador da Coluna Direito da Infraestrutura da Editora Fórum. Professor Responsável do LLM de Infraestrutura e Regulação da FGV Direito Rio. Doutorando e Mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.
[2] Advogado. Relator da Task-Force de Modernização do Setor Elétrico da ICC Brasil. Professor da Pós-Graduação em Direito da PUC-PR.
[3] CASTRO, Nivalde; DANTAS, Guilherme [Org.]. Geração distribuída: experiências internacionais e análises comparadas. Rio de Janeiro: Publit, 2018. p. 59 e ss.
[4] California Distributed Generation Statistics (2017). Statistics and Charts. Disponível em <http://www.californiadgstats.ca.gov/charts/>. Acessado em 10/02/2023.
[5] Fowlie, M. 2016. The duck has landed. Energy Institute at Haas. Disponível em <https://energyathaas.wordpress.com/2016/05/02/the-duck-has-landed/>. Acesso em 10/02/2023.

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