O dano psíquico na sociedade contemporânea: uma distinção do dano moral

12 de dezembro de 2022

Coluna Direito Civil

 

O Direito por ser uma ciência social, dinâmica e mutável anda de mãos dadas com os valores e costumes da sociedade. Impossível pensar o Direito sem falar em sociologia. Em sendo assim, a sociedade atual, também chamada de contemporânea, ou pós-moderna ou, ainda, de sociedade líquida tem apresentado certas características que podem influenciar no comportamento das pessoas e nas suas atitudes que, não raras vezes, descambam para violências inesperadas que podem ser ditas traumáticas. Suas vítimas, como consequência, têm apresentado sintomas de patologias biopsíquicas. Está-se falando de um novo dano fruto da sociedade pós-moderna, distinto do dano moral e que pode ser chamado de dano psíquico.

O sociólogo Zygmunt Bauman denomina a sociedade contemporânea como líquida[1], no sentido de que as relações pessoais, profissionais e sociais são superficiais, efêmeras, desprovidas de laços duradouros e de empatia. É uma sociedade individualista baseada na obtenção de sucesso. Vende-se a ideia de que a felicidade só alcança as pessoas que têm bens materiais. Esses paradigmas dificultam a criação de laços de afetividade, de compaixão e de respeito uns com os outros. De acordo com a análise de Bauman, o sistema capitalista contribui para esta performance social. Ele instiga as pessoas ao consumismo exagerado, ao descarte do que não mais satisfaz por outro mais moderno, mais interessante. As próprias relações pessoais e sociais são efêmeras, descartadas logo começam a ficar desinteressantes. E não é só. O sistema capitalista vende a ideia de que a felicidade está no exagero do consumismo e na sua exposição que, implicitamente, transmite a ideia de sucesso, de realização, de status financeiro. Esta é a tragédia da sociedade contemporânea: a falsa ideia da felicidade atrelada ao consumismo exagerado e à sua exposição. Logo, é preciso comprar mais, expor mais, fazer novos laços de amizade, de amores. É a eterna busca da felicidade. Nada mais efêmero, mais superficial, mais enganoso.

É possível que esta sociedade líquida descrita por Bauman provoque o instinto de agressividade que todo ser humano carrega dentro de si. O psicanalista Sigmund Freud ao estudar a psique humana, especialmente na sua obra O Mal-Estar na Civilização[2], dissertou que as pessoas buscam a felicidade, mas há muito mais motivos que as levam à insatisfação e à frustração. De acordo com ele, as tragédias naturais, o próprio envelhecimento humano e o meio em que vivemos trazem insegurança, medos, tristezas, desencantos e eles podem ser gatilhos para acionar a pulsão da morte que existe dentro de cada um. Neste sentido, traçando um diálogo entre Bauman e Freud, é coerente afirmar que esta sociedade líquida pode sim provocar a agressividade nas pessoas por dar causa a insatisfações, a frustrações e à infelicidade que podem levá-las ao cometimento de violências traumáticas perpetradas umas contra as outras.

É certo que a violência sempre existiu, em qualquer época histórica e nos mais variados tons e cores. Porém, o que se tem verificado na sociedade contemporânea são violências capazes de provocar danos psicopatológicos nas pessoas. Não é raro que vítima de ameaça contra sua vida ou integridade física, ou a consumação da agressão ou, ainda, que tenha testemunhado tal evento apresente o que a psiquiatria denomina de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) ou, ainda, a depressão, por exemplo.

De acordo com o conceito dado pela psiquiatria, o TEPT obrigatoriamente decorre de um evento traumático e este é toda e qualquer situação em que o indivíduo vivencia ou testemunha atos contra sua vida e/ou contra sua integridade física, capaz de desencadear sintomas psicopatológicos. Ainda, pode ser verificado quando o indivíduo toma conhecimento de que esse mesmo evento ocorreu com pessoas que lhe são próximas afetivamente.

Eventos traumáticos, que na ciência jurídica são chamados de violências traumáticas, estão presentes no cotidiano das pessoas. Eles podem ocorrer nas brigas de trânsito, nas agressões doméstica e familiar, no abuso sexual de crianças e adolescentes, nos desastres ambientais provocados por ações ou omissões humanas, dolosas, culposas ou apenas decorrentes da própria atividade desenvolvida. Vê-se os dois maiores desastres ambientais dos últimos anos, Mariana e Brumadinho, ambos no estado de Minas Gerais.

Do conceito clínico a psiquiatria ainda descreve os diversos sintomas que as vítimas devem apresentar para serem diagnosticadas com essa patologia psíquica. Além disso, eles devem perdurar por mais de quatro semanas após o surgimento deles, que pode ser logo após a violência traumática vivenciada ou testemunhada, semanas, meses ou até mesmo alguns anos após. Os sintomas afetam negativamente a vida social, profissional e pessoal da vítima.

Desta análise sucinta das características da sociedade contemporânea descritas por Bauman, do estudo da psique humana feita por Freud, da verificação de inúmeras violências traumáticas praticadas no dia a dia, a psicologia apresentou diversos estudos comprovando que elas podem sim desencadear a psicopatologia TEPT ou até mesmo uma depressão nas suas vítimas.

Está-se falando do dano psíquico, novo instituto jurídico originário desta sociedade contemporânea e suas diversas formas de violência, e que ainda é ignorado pelo Direito e distinto do dano moral.

A ciência jurídica conceitua o dano moral como uma violação dos direitos da personalidade. O dano psíquico também tem esse efeito portanto, esta ideia não define aquele. Quem melhor explica o dano moral é a psicologia. Para esta ciência, qualquer fato externo que provoque emoções negativas em alguém, como dor psíquica, tristeza, angústia, pode ser considerado como um dano moral, desde que elas sejam breves e imediatas. O próprio organismo é capaz de autorregular-se e ajustar-se ao estado anterior à provocação daquelas emoções negativas. Por isso que dano moral não pode ser provado materialmente, ele é presumido de acordo com o caso concreto e as avaliações dos fatos feitas pelo juiz e da oitiva da própria vítima.

Dano psíquico, por sua vez, pode ser provado por laudo psiquiátrico. Seus sintomas estão descritos no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V)  e devem perdurar por mais de quatro semanas, podendo ser leves, moderados ou graves, de acordo com a intensidade deles. O tratamento de psicopatologias como o TEPT e a depressão, por exemplo, é terapêutico combinado com uso de medicamentos prescritos por um médico psiquiátrico. A indenização, portanto, tem natureza híbrida. É extrapatrimonial no que tange à qualidade de vida da vítima, aos efeitos negativos provocados na sua vida pessoal, profissional e social. É material quanto aos gastos monetários decorrentes de todo o tratamento. Como não é possível determinar por quanto tempo a vítima terá sua vida afetada pelo TEPT e/ou pela depressão, por exemplo, e quanto tempo levará o tratamento, o reconhecimento do dano psíquico atinge os efeitos da própria sentença judicial. Ela fará coisa julgada, mas, por tratar-se de obrigação continuada, havendo alteração na situação fática é possível nova análise judicial quanto aos valores da indenização que por ventura ainda devam ser estabelecidos. Portanto, tem-se uma sentença sob a condição implícita da cláusula rebus sic stantibus, isto é, enquanto a saúde física e mental da vítima não se restabelecer por completo ou não houver alterações do tratamento, haverá obrigação do ofensor em custear o tratamento médico. Assim está disposto no art. 505, I do CPC.

Claro está que dano moral não é dano psíquico, este é resultado de violências traumáticas capazes de desencadear sintomas nas vitimas descritos pela psiquiatria como psicopatologias como o TEPT e/ou a depressão, por exemplo. Dano moral provoca meras emoções negativas, capazes de diluírem-se no tempo, não perdurando por mais de quatro semanas, tampouco afetam consideravelmente a vida pessoal, profissional e social das vítimas.

Casos de dano psíquico têm chegado aos tribunais, por esta razão faz-se necessário discuti-lo, aperfeiçoá-lo e reconhecê-lo como um novo instituto jurídico distinto do dano moral. As vítimas de violências traumáticas que apresentarem sintomas de TEPT e/ou depressão devem ser indenizadas de maneira integral.

Caso recente de dano psíquico, mas tratado como dano moral pelo Poder Judiciário ocorreu no julgamento de um recurso de revista da decisão do TRT da 4ª Região para a 3ª Turma do TST em fevereiro de 2022[3]. A vítima/empregada vivenciou uma violência traumática que a afastou das atividades laborais por 11 anos para tratamento da psicopatologia TEPT em comorbidade com o transtorno afetivo bipolar e a depressão leve, conforme laudo pericial. Embora o TRT e o TST tenham reconhecido a configuração de problemas psicológicos apresentados pela empregada, baseando-se em laudo psiquiátrico, ao final o empregador foi condenado a 30 mil reais por meros danos morais. De acordo com os fatos descritos nos mencionados acórdãos, o ônibus no qual a empregada trabalhava como cobradora foi assaltado e a atuação violenta dos assaltantes resultou no desferimento de tiro na cabeça de uma passageira, cujos pedaços do cérebro voaram sobre a obreira. Essa violência traumática implicou o adoecimento psiquiátrico dela, que foi afastada das atividades laborais para o gozo de benefício previdenciário de fevereiro de 2008 até 2019.

Diante desses fatos, condenar o empregador por mero dano moral não parece ter reconhecido que a integridade físico-psíquica, o bem-estar e o equilíbrio emocional da vítima foram violados, muito menos reparados. O Pacto de San José da Costa Rica, de 1969[4], internalizado no ordenamento jurídico brasileiro[5], dispõe expressamente: “Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.” Neste sentido, é dever do Estado garantir que o direito de todos não seja ofendido em nenhum desses três aspectos distintos do ser humano. Isso significa que o Direito deve impor responsabilidade a toda e qualquer pessoa que ofender a integridade do corpo, que der causa a emoções negativas e, ainda, que provocar o surgimento de doenças biopsíquicas em alguém. Infelizmente o ordenamento jurídico protege apenas a integridade física e moral da vítima, há uma lacuna quanto à garantia da integridade psíquica. Desse modo, não se está respeitando o princípio constitucional da dignidade humana, o qual exige que todos os direitos fundamentais sejam previstos e efetivados. Desconsiderar a integridade psíquica de toda e qualquer pessoa como um direito fundamental e que deve ser protegido juridicamente contra danos causados a ela reflete não apenas a lacuna do Direito, mas também, a letra morta de um dispositivo previsto em documento internacional que foi recepcionado pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Enfim, violências traumáticas que coloquem a vida da pessoa em risco ou sejam capazes de causar sérias agressões físicas e/ou psíquicas ao ponto de lhe provocar o desenvolvimento de uma psicopatologia, representam uma mudança na estrutura jurídica dos danos, descortinando um efeito em sua saúde físico-mental a médio e longo prazos. Embora a ciência jurídica desconheça a vertente do dano psíquico, ele está presente na sociedade contemporânea e o Direito não pode continuar ignorando esse novo dano.

 

 

Juliana Gerent
Doutora em Direito Ambiental Internacional pela Universidade Católica de Santos (UniSantos)
com doutorado sanduíche na Universidad de Valencia/Espanha.
Ex-bolsista da Capes. Mestre em Tutela Coletiva dos Direitos Supraindividuais pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Especialista em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável
pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR/Campus Londrina).

 

Referências
[1] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001
[2] FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011
[3] TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. 3ª Turma. Acórdão. Processo n. TST-AG-AIRR-20732-79.2019.5.04.0331. Publicado acórdão em 25/02/2022. Disponível para download https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=20732&digitoTst=79&anoTst=2019&orgaoTst=5&tribunalTst=04&varaTst=0331&submit=Consultar Acesso 19/03/2022
[4] Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) (Pacto de San José da Costa Rica). Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/pacto-san-jose-costa-rica.pdf Acesso 13/10/2022
[5] Decreto n. 678, de 6.11.1992. Disponível em https://www.tjrr.jus.br/cij/arquivospdf/ConvencaoAmericana-pacjose-1969.pdf Acesso 13/10/2022

 

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