Sharenting: aspectos jurídicos da superexposição de crianças e adolescentes online na perspectiva civil constitucional

26 de setembro de 2023

Considerações iniciais: sharenting ou (over)sharenting e os perigos às crianças e adolescentes

Com o surgimento e desenvolvimento massivo das redes sociais, as pessoas passaram a se relacionar online, compartilhando em fotos, vídeos e dados detalhes de sua vida pessoal com uma infinidade de outros usuários. No novel contexto das redes sociais, muito se tem visto em termos de superexposição de crianças e adolescentes online.

Diante disso, estudiosos passaram a observar um fenômeno ao qual denominaram de sharenting, termo cunhado pela doutrina estrangeira através da junção dos termos de língua inglesa share[1] e parenting,[2] consubstanciando, assim, o compartilhamento parental de informações dos filhos.

O Sharenting é “a publicização, por pais, de registros visuais, audiovisuais, sonoros ou escritos continentes de informações detalhadas ou potencialmente embaraçosas sobre seus filhos, em prejuízo à privacidade destes.” (RAMOS, 2021, p. 365). A questão primordial é, em verdade, o excesso abusivo desse compartilhamento que viola a privacidade e a intimidade dessas crianças e adolescentes, o que enseja a distinção doutrinária entre sharenting e (over)sharenting, justamente para sinalizar o abuso deste último (AFFONSO, 2021, p. 362).

Ao praticar o (over)sharenting os pais estão exercendo seu poder familiar de forma dissociada do melhor interesse dos filhos, de forma que se tem um “exercício disfuncional da liberdade de expressão e da autoridade parental dos genitores, que acabam minando direitos da personalidade de seus filhos nas redes sociais” (AFFONSO, 2021, p. 355).

Ocorre que o compartilhamento excessivo de informações de crianças e adolescentes nas redes gera registros eternos e faz com que seja construída uma vida digital desses indivíduos, que trará reflexos até a maioridade, e que foi formada sem o consentimento e, muitas vezes, sem a participação do titular. Com frequência, os pais nem mesmo se atentam para as consequências futuras de sua prática (BROSCH, 2018, p. 75-85).

Através do compartilhamento excessivo, os pais traçam os contornos da identidade digital de seus filhos, de forma que as publicações que os pais escolheram fazer vão acompanhar essa criança até a idade adulta (STEINBERG, 2017, p. 840-884). Não se sabe ao certo os reflexos que advirão desse compartilhamento, mas, certamente “os riscos da exposição dos dados e imagens das crianças justificam a importância da tutela mais intensa e de atuação mais atenta por parte dos juristas” (AFFONSO, 2021, p. 357).

O problema se agrava diante da percepção de que depois de publicizados os dados nas redes sociais, a volta ao status quo é quase impossível, uma vez que a internet tem o condão de perpetuar os dados ali compartilhados, agravando o potencial negativo, ainda desconhecido, do impacto que as informações compartilhadas em nome das crianças terão ao longo de seu desenvolvimento (TEIXEIRA, 2021, p. 5).

Ameaças às crianças e adolescentes advindas de sua superexposição nas redes sociais e o sistema de proteção à criança e ao adolescente

A maior parte das crianças que nasceu nesse mundo digital tem compartilhadas com o mundo fotografias desde a gravidez, incluindo até exames de ultrassom. Não surpreende, portanto, que todas as etapas das vidas extrauterinas dessas crianças também sejam compartilhadas na internet, desde o nascimento, os primeiros passos, início da vida escolar (BROSCH, 2016, p. 225-235) e dilemas cotidianos.

Isso leva a diversos problemas – cuja análise não se pretende exaurir neste artigo – dentre os quais se destaca, por exemplo, o sequestro digital, no qual indivíduos utilizam os registros compartilhados pelos pais para criar uma nova identidade digital (BROSCH, 2016, p. 225-235) – em verdade um novo indivíduo digital. Ainda, é frequente que as crianças superexpostas sejam vítimas de bullying, seja ele online ou refletido na realidade, eis que as pessoas que convivem com a criança no mundo offline podem vir a ter contato com o conteúdo – muitas vezes vexatório ou embaraçoso – compartilhado sobre aquela criança ou adolescente.

Por fim, a reflexão mais instigante, para fins deste artigo, diz respeito ao rastro digital criado pelos pais através do sharenting. As crianças têm imagens e vidas digitais criadas por seus pais muito antes de terem condições de usar elas mesmas as redes sociais, o que verdadeiramente molda a experiência que terão online no futuro (BROSCH, 2016, p. 225-235). Pode-se argumentar que há pontos positivos, a depender de como foi o comportamento dos pais em nome dos filhos e, principalmente, de como o filho quiser se relacionar com as redes sociais na idade adulta. Porém, enxerga-se com maior potência justamente os impactos negativos.

Por exemplo, uma criança que foi criada como influenciadora mirim poderá crescer para se tornar um adulto que ressente a exposição e deseja privacidade, de forma que preferia que nada tivesse sido compartilhado sobre si. Ademais, educar as crianças precocemente no ambiente digital irá moldar inclusive sua percepção de privacidade, que certamente não será a mesma de uma criança que foi educada sem estar inserida nas redes sociais.

Sendo certo que a autoridade parental – poder familiar, na dicção do Código Civil – é instrumentalizada à realização do melhor interesse do menor (PERLINGIERI, 2008, p. 1002), a conduta dos pais que superexpõem seus filhos nas redes sociais nos parece, a princípio, prejudicial ao melhor interesse da criança e adolescente, de forma que os pais muitas vezes a despeito do dever fundamental de proteger, acabam por lesar seus filhos (AFFONSO, 2019, p. 9).

Compreendidas as questões que permeiam o sharenting, é essencial observar o sistema de proteção à criança e ao adolescente no ordenamento brasileiro. Destacam-se os princípios do melhor interesse, da proteção integral e as limitações quanto ao exercício da autoridade parental, que serão adiante discutidos.

A família, com as inovações postas pela CF/88, reveste-se do papel de funcionalizar o desenvolvimento da dignidade de seus membros (LÔBO, 2021, p. 60), inclusive – e sobretudo – as crianças e os adolescentes. Estes institutos jurídicos, juntamente com a mudança de paradigma instrumentalizada pela constitucionalização do Direito privado impõem a consideração da criança e do adolescente como seres objeto da proteção especial, inclusive no seio familiar, não podendo mais ser considerados como sujeitos meramente submissos ao poder patriarcal.

O princípio da dignidade da pessoa humana, inclusive, passa a ser aplicado diretamente sobre as crianças e adolescentes, protegendo-lhes no seio familiar e dos próprios integrantes de seu núcleo familiar, assumindo função estruturante nas relações de família (LÔBO, 1999, p. 105), devendo nortear a interpretação, juntamente com o melhor interesse e a proteção integral.

Nesse sentido, o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente consubstancia que estes seres devem “ter seus interesses tratados como prioridade, pelo Estado, pela sociedade e pela família, tanto na elaboração quanto na aplicação dos direitos que lhe digam respeito, notadamente nas relações familiares, como pessoa em desenvolvimento e dotada de dignidade” (LÔBO, 2021, p. 81).

É possível afirmar, assim, que a publicação de fotos, vídeos e informações das crianças nas redes sociais – notadamente se ultrapassar o limite do esporádico e inserido no contexto normal familiar – só é permitida se for feita no sentido de materializar a concretização do melhor interesse do menor. Todavia, só será possível aferir isso no caso concreto, de forma que persistem os problemas ora debatidos.

Considerações finais

A discussão proposta neste artigo tem infinitas possibilidades. Parece-nos possível encontrar formas de adequar a presença infantil online – seja através dos perfis de seus pais ou de um perfil próprio – ao seu melhor interesse, mediante a conscientização de pais e responsáveis, além da fixação de parâmetros doutrinários que garantam a proteção infantojuvenil online.

Assim, vemos o sharenting, a princípio, como um fenômeno com mais expressões negativas do que possibilidades positivas. Por fim, observa-se que se faz necessária a adequação da conduta parental de compartilhar a vida dos filhos nas redes sociais com as disposições normativas que protegem as crianças e os adolescentes, notadamente os preceitos constitucionais do melhor interesse da criança e do adolescente e da proteção integral.

Camila Sampaio Galvão

Formada em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e pós-graduanda em Direito de Família e Sucessões pelo Instituto Imadec.


Referências

AFFONSO, Filipe José Medon. Influenciadores digitais e o direito à imagem de seus filhos: uma análise a partir do melhor interesse da criança. Revista Eletrônica da PGE-RJ, Rio de Janeiro, v. 2, p. 01-26, 2019.

AFFONSO, Filipe José Medon. (Over)Sharenting: a superexposição da imagem e dos dados da criança na internet e o papel da autoridade parental. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; DADALTO, Luciana (Coord.). Autoridade parental: dilemas e desafios contemporâneos. Indaiatuba: Foco, 2021.

BROSCH, Anna. When the child is born into the Internet: Sharenting as a growing trend among parents on Facebook. The New Educational Review, Toruń, v. 43, n. 1, p. 225-235, March 2016 DOI:10.15804/tner.2016.43.1.19. Disponível em: https://depot.ceon.pl/bitstream/handle/123456789/9226/16.%20When%20the%20child%20is%20born%20into%20the%20Internet.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 10 nov. 2022.

BROSCH, Anna. Sharenting: Why Do Parents Violate Their Children’s Privacy? The New Educational Review, Toruń, v. 54, p. 75-85, 2018.

LÔBO, Paulo. Constitucionalização do Direito Civil. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 141, p. 99-109, 1999.

LÔBO, Paulo. Direito Civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2021.

MENEZES, Joyceane Bezerra de; MORAES, Maria Celina Bodin de. Autoridade parental e privacidade do filho menor: o desafio de cuidar para emancipar. In: ENCONTRO DE INTERNACIONALIZAÇÃO DO CONPEDI, I, 2015, Barcelona. João Marcelo de Lima Assafim, Monica Navarro Michel (Orgs.). Barcelona: Ediciones Laborum, 2015. v. 7. p. 163-196. Disponível em: http://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/55699/1/2015_eve_jbmenezes.pdf. Acesso em: 10 jun. 2021.

PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

RAMOS, André Luiz Arnt. Sharenting: notas sobre liberdade de expressão, autoridade parenta, privacidade e melhor interesse de crianças e adolescentes. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; LOBO, Fabíola Albuquerque; ANDRADE Gustavo. (Orgs.). Liberdade de expressão e relações privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2021, v. 1. p. 336-379.

STEINBERG, Stacey. Sharenting: Children’s Privacy in the Age of Social Media, Emory Law Journal, Atlanta, v. 66, n. 839, p. 840-884, 2017. Disponível em: https://scholarship.law.ufl.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1796&context=facultypub. Acesso em: 10 dez. 2022.

TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; MULTEDO, Renata Vilela. A responsabilidade dos pais pela exposição excessiva dos filhos menores nas redes sociais: o fenômeno do sharenting. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ROSENVALD, Nelson; MULTEDO, Renata Vilela. Responsabilidade civil e Direito de Família: o direito de danos na parentalidade e conjugalidade. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 3-20.

[1]   Compartilhar.

[2]   Exercer poder familiar.


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