Seria possível o reconhecimento de indignidade sucessória por manifestações nas redes sociais?

2 de abril de 2024

celular com alguns ícones de redes sociais

A indignidade prevista no Código Civil vigente abrange não somente os casos de exclusão da herança, aqueles que incorrerem em conduta que se desvia do comportamento que se espera de um herdeiro (arts. 1.814 a 1.818) – aqui incluídos tanto os herdeiros legítimos quanto os testamentários –, mas também as hipóteses de deserdação (arts. 1.961 a 1.965), estas ligadas exclusivamente aos herdeiros legítimos.

A exclusão da sucessão por indignidade somente se dá por decreto judicial, presumindo-se a princípio a legitimidade do herdeiro excluído. Como afirmado, trata-se de uma sanção atribuída a herdeiros legítimos e testamentários, além de legatários. Já a deserdação dá-se por ato voluntário do testador, atingindo os herdeiros necessários, uma vez que na inexistência destes, basta que o autor da herança destine seus bens a terceiros, excluindo os demais herdeiros legítimos[1].

Perceba-se que tanto a exclusão quanto a deserdação decorrem de disposição legal, mas a última depende de ato de vontade do autor da herança. Como assevera Paulo Lôbo, “o testamento é apenas seu instrumento, mas a finalidade é a exclusão do herdeiro necessário, o que a conduz necessariamente à sucessão legítima”[2], sendo certo que o instituto da indignidade abarca todas as causas de exclusão legal e de deserdação voluntária.

Persiste ainda alguma discussão sobre a natureza jurídica da indignidade, em especial por sua definição de causa incapacitante. Esclarece Orlando Gomes que ela existe apenas em relação à sucessão daquele contra o qual o sucessível cometeu ato ofensivo, caso não ocorra a reabilitação. Assim sendo, não se estaria diante de uma “verdadeira e própria incapacidade”, embora opere como se incapacidade fosse, por privar o indigno de adquirir a herança[3].

Apesar de os casos de indignidade, seja como causa de exclusão, seja de deserdação, encerrarem numerus clausus e procurarem indicar situações objetivamente definidas, não há como deixar de salientar a existência do conteúdo moral[4] vigente à época da redação da codificação do início do século XX, o que fica claro ao se confrontar os dispositivos atualmente vigentes com os arts. 1.595 a 1.602 (exclusão) e 1.741 a 1.745 do Código Civil de 1916, os quais apresentam muitas semelhanças, à exceção da hipótese de “desonestidade da filha que vive na casa paterna” da legislação pretérita, dado seu manifesto cunho discriminatório e sua consequente inconstitucionalidade.

No Capítulo reservado à deserdação, inserido no Título da Sucessão Testamentária (Título III do Livro das Sucessões), a ser levada a efeito por testamento mesmo atingindo exclusivamente os herdeiros necessários, os já referidos artigos 1.961 a 1.965 complementam as hipóteses versadas na exclusão prevista nos arts. 1.814 a 1.818, o que leva a doutrina a considerar que, não obstante diferenciação entre indignidade e deserdação, ambas têm regras comuns que se encontram parcialmente unificadas[5].

Como mencionado, a indignidade deve ser declarada por decisão judicial em ação movida pelo interessado ou pelo Ministério Público, neste caso quando houver interesse público, como nos casos de homicídio. A I Jornada de Direito Civil, do Conselho da Justiça Federal (Superior Tribunal de Justiça), ocorrida ainda em 2002, reconheceu a legitimidade do parquet através do Enunciado nº 116: “O Ministério Público, por força do art. 1.815 do novo Código Civil, desde que presente o interesse público, tem legitimidade para promover ação visando à declaração da indignidade de herdeiro ou legatário”[6]. Posteriormente, a Lei nº 13.532/2017 acrescentou um parágrafo segundo ao referido art. 1.815, espancando qualquer dúvida acerca da questão.

Os institutos jurídicos, como de resto todo o conhecimento do ser humano, vêm sofrendo os influxos da tecnologia da informação. Quando nos deparamos pela primeira vez com situações ainda não vivenciadas e propiciadas pelo advento de aplicações tecnológicas, especialmente no campo da comunicação interpessoal, costumamos oscilar entre a surpresa, a incredulidade, a animação ou a apreensão quanto ao desconhecido. Qual deve ser o comportamento dos operadores jurídicos diante do impacto das novas tecnologias?

Ao discorrer sobre os desafios impostos ao direito pela difusão das novas tecnologias da informação e da comunicação, João Victor Rozatti Longui anota que devemos encarar com acuidade todas as grandes mudanças aparentes. Pondera que “muitas das transformações alteram apenas a forma, embora a essência permaneça a mesma”, razão pela qual conclui que

a metáfora do impacto é inadequada. As técnicas novas não vêm de “outro planeta”, do “mundo das máquinas”, frio, sem emoção, estranho a toda significação e qualquer valor humano. Ao revés, são concebidas, fabricadas e reinterpretadas durante seu uso pelos homens, como também é o próprio intensivo das ferramentas que constituem a humanidade enquanto tal. Em outras palavras, a tecnologia não é um ator autônomo, separado da sociedade e da cultura, e as novas técnicas que constituem o funcionamento da Rede são apenas parte dos fenômenos humanos que, ainda que pré-programadas, não agem por vontade própria.[7]

O ponto de partida para tratar das questões abordadas neste artigo é a atual disciplina jurídica estabelecida pelo Código Civil, que foi sintetizada acima, sobre a qual se detém a melhor doutrina pátria na direção de sua ressignificação para uma melhor adequação ao programa valorativo da CF/88. No entanto, enquanto parte considerável dos autores que estudam o tema se dedica a promover e densificar a dignidade humana, constata-se o significativo aumento da exposição de aspectos de nossa intimidade e privacidade em plataformas digitais, cujo conteúdo oferecido é exatamente aquele que as pessoas estão dispostas a compartilhar em busca de reconhecimento, que costuma ser aferido em número de visualizações e de curtidas (“likes”).

Nessa senda, importante destacar que “além de não poder aniquilar os próprios direitos, o usuário das redes sociais também não pode descuidar dos direitos de personalidade alheios: as opiniões lançadas no ambiente virtual não estão isentas de controle, pois há situações em que a honra alheia há de ser protegida, e a liberdade de expressão no ambiente virtual há de ser limitada também em face dos direitos da personalidade”[8].

Seria possível considerar o abuso no exercício da liberdade de expressão no ambiente familiar, hipótese fática de configuração de procedimento indigno no campo do direito sucessório?

Nos termos do disposto no inciso II do art. 1.814 do CC/02, a resposta para a indagação acima apresentada é afirmativa. Devem ser excluídos da sucessão aqueles que mediante abuso no exercício da liberdade de expressão atentarem contra a honra do autor da herança, por qualquer meio ilícito, incluindo aqui o ambiente das redes sociais. Trata-se de punição imposta pelo sistema jurídico àquele que pratica atos contrários ao direito. Presume-se a vontade do morto em afastar o herdeiro ou legatário que praticou as ofensas, que, entretanto, deverá ser confirmada por sentença após a abertura da sucessão, sob pena de não se produzir o efeito pretendido.

Vivemos atualmente o desafio de traduzir uma legislação e jurisprudência analógicas para uma realidade digital, enquanto não se produzem leis específicas para lidar com novas questões que a tecnologia inseriu em nossas vidas. Se intrinsecamente a tecnologia não pode ser rotulada como algo bom ou ruim, o emprego que fazemos dela tem consequências que não estão imunes às garantias constitucionais e à legislação vigente.

É preciso compreender o funcionamento e a atual regulação das ferramentas tecnológicas, antes de valorá-las e discipliná-las, extraindo de sua utilização o melhor que possa ser relacionado ao necessário respeito aos direitos personalíssimos de todos os integrantes da entidade familiar.


Notas

[1] LÔBO, Paulo. Direito civil. Vol. 6. Sucessões. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 204.

[2] LÔBO, Paulo. Direito civil. Vol. 6. Sucessões. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 205.

[3] GOMES, Orlando. Sucessões. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2015, p. 33.

[4] Acerca da A vagueza semântica da locução procedimento indigno, seja permitido remeter a QUINTELLA, Felipe; MAFRA, Tereza Cristina Monteiro. Abuso no exercício da liberdade de expressão e indignidade no direito de família. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; LOBO, Fabíola Albuquerque; ANDRADE, Gustavo (Coord.). Liberdade de expressão e relações privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 327-344.

[5] TARTUCE, Flávio. Direito civil. Vol. 6. Direito das Sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 102.

[6] Disponível em: https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/755. Acesso em 1.6.2021.

[7] LONGUI, João Victor Rozatti. Responsabilidade Civil e Redes Sociais. Indaiatuba: Editora Foco, 2020, p. 1-2.

[8] MATOS, Ana Carla Harmatiuk; CÂMARA, Hermano Victor Faustino. Direitos da personalidade e liberdade de expressão nas redes sociais: atualizando critérios de ponderação. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; LOBO, Fabíola Albuquerque; ANDRADE, Gustavo (Coord.). Liberdade de expressão e relações privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 99. Ainda sobre o tema, vale destacar o entendimento de Eduardo Nunes Souza, Rodrigo da Guia e Cássio Rodrigues: “Como propõe a ótica civil-constitucional, os institutos jurídicos devem ser compreendidos como figuras históricas e relativas. A malfadada aplicação de um conceito jurídico de liberdade desprovido de qualquer historicidade (ou, pior, munido da importação acrítica da experiência alheia) faz com que o direito deixe de refletir sua própria sociedade, sua história e cultura, suas conquistas arduamente alcançadas, para representar uma identidade estrangeira. O que é ainda mais grave: não se pode esperar que tal importação indevida forneça os mesmos resultados benéficos que porventura possam ter sido produzidos em outro sistema, justamente porque, neste último, o conceito está situado no tempo e no espaço – mas não no primeiro, que o absorveu de forma acrítica e desatenta ao seu próprio contexto. Esse aspecto singelo da interpretação e aplicação do direito, se desconsiderado, acarreta uma quebra de sistemática: um instituto jurídico existe em relação com os demais e com a realidade social, de tal modo que o seu sentido, em certo ordenamento, apenas se explica a partir do fino equilíbrio e do sistema de compensações entre ele e esses outros elementos”. (SOUZA, Eduardo Nunes de; SILVA, Rodrigo da Guia; RODRIGUES, Cássio Monteiro. Desafios atuais à disciplina jurídica da liberdade de expressão nas redes sociais. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; LOBO, Fabíola Albuquerque; ANDRADE, Gustavo (Coord.). Liberdade de expressão e relações privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 122-3).

Marcos Ehrhardt Junior

Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor de Direito Civil da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e do Centro Universitário Cesmac. Editor da Revista Fórum de Direito Civil (RFDC). Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil). Presidente da Comissão de Enunciados do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Advogado. E-mail: contato@marcosehrhardt.com.br.

Gustavo Henrique Baptista Andrade

Pós-doutorado em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre e Doutor em Direito Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Membro do Grupo de Pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (CONREP) UFPE-CNPq. Procurador do Município do Recife. Advogado. E-mail: gustavo@gustavoandrade.adv.br.

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