“Sim, eu li e aceito os termos e condições”: a problemática do consentimento na sociedade hiperconectada

5 de março de 2024

sociedade hiperconectada

O contrato, assim entendido como instrumento de consolidação da autonomia da vontade para criar, extinguir ou modificar direitos e obrigações, sempre foi um dos objetos centrais de estudo da ciência jurídica e, de certa forma, orbita o centro de gravidade ontológico do direito privado desde sua mais tenra formulação. Exercendo tal papel central, sofreu ampla influência das alterações sociais e econômicas que permearam a sua existência.

É inquestionável, sob esta perspectiva, que o advento da internet mudou exponencialmente a dinâmica com que se desenvolveram as relações sociais e jurídicas a partir do final do Século XX[1]. Nesse contexto, a transferência das relações sociais para o âmbito digital, propiciou, em igual escala, a transmutação das relações jurídicas para o ciberespaço, sendo certo que na atual conjuntura, realizamos negócios jurídicos do nascer ao pôr do sol como preço a ser reivindicado pela adequada inserção no meio social.

Destarte, malgrado não seja dotado de exclusividade, a maioria dos negócios jurídicos realizados no meio digital, é efetivada pelas licenças denominadas clickwrap, conhecidas popularmente como “termos de uso” ou “condições de uso”, pelas quais a formalização do contrato dar-se pela simples sinalização do aceite por parte do usuário, em local previamente estipulado pelo prestador de serviços digital.

Tais modalidades de contratação colocam em cheque os clássicos fundamentos contratuais do Estado Liberal, na medida em que de um lado a volatilidade e urgência com que se dão as relações jurídicas na contemporaneidade tornam basicamente impossível que os indivíduos tenham pleno consentimento acerca das cláusulas contratuais a que se submeteram ao manifestar seu aceite para a utilização de determinado serviço de redes sociais. De outro lado, a inclusão no meio social, muitas vezes efetivado pela utilização de tais plataformas, impõe aos indivíduos para muito mais que uma mera vontade, uma efetiva necessidade de contratação de tais serviços.

Dessa forma, faz-se necessário entender tal fenômeno jurídico que ostenta incontestável importância social a fim de efetivamente compreender o alcance e relevância do consentimento e do voluntarismo na constituição e efetivação dos negócios jurídicos firmados mediante termos de uso no meio digital.

Levando-se em consideração os moldes liberais em que se fundou e difundiu a concepção clássica do direito privado, a manifestação de vontade constitui elemento basilar para o aperfeiçoamento das relações jurídicas. Isto é, consoante leciona Pablo Stolze Gagliano[2], o contrato é um fenômeno eminentemente voluntarista, fruto da autonomia privada, asseverando ainda em tom conclusivo que “sem vontade não há contrato”[3].

Do mesmo modo, Gustavo Tepedino[4] estabelece que a autonomia privada é a expressão maior das liberdades fundamentais concedidas pela ordem constitucional e deve ser entendida como o poder de autogestão e autorregramento que o indivíduo detém sobre suas atividades, nessa senda, assevera ainda que a teoria do negócio jurídico, formulada com forte viés voluntarista, serviu como instrumento técnico da autonomia da vontade, sedimentando-se, a partir de tal acepção, que os negócios jurídicos tivessem por fonte precípua, inicialmente, a vontade real dos agentes, e a posteriori a vontade declarada com o escopo de valorar o livre discernimento e o conteúdo material das declarações tais quais manifestadas[5].

Doutra banda, é ainda pertinente observar, conforme prescreve Bruno Biondi[6] que na atualidade, as diversas oportunidades de inserção na dinâmica social estão condicionadas a realização de negócios jurídicos, nesse dizer, a impossibilidade negocial inerente a modalidade de contratação, somada ainda a já referida necessidade de formulação de contratações para a inserção no meio social, culminam em um esvaziamento axiológico do princípio da autonomia negocial[7].

Boa parte dos consumidores aderentes a estes termos de uso não conhecem materialmente as cláusulas a que se submetem, seja porque não as leram, ou ainda, porque não as compreendem, haja vista que comumente contratos do gênero utilizam-se de linguagem que velam os efetivos efeitos da contratação[8]. Dessa forma, a noção de autonomia da vontade como corolário contratual é mitigada nas novas relações contratuais de massa, nestes casos, a vontade, como elemento do negócio jurídico, dá lugar à simples necessidade de contratar, sendo certo, que em tal contexto, as pessoas, majoritariamente, não contratam, efetivamente, mas, tão somente submetem-se a contratações; e o fazem, não porque querem, mas porque precisam[9].

Tais considerações ganham ainda maior relevância social quando postas em debate a partir das cláusulas inseridas nos instrumentos contratuais em análise, dessa feita, não raras vezes, ao debruçarmo-nos sobre tais gêneros, encontramos previsões que podem ser interpretadas como abusivas, a exemplo da cláusula de cessão de direitos do Instagram[10] e da Uber[11], esta última chegando a prever uma licença “perpétua” e “irrevogável”, em franca rota de colisão com os predicados da ordem constitucional vigente.

Nessa quadra, conforme avalia Paulo Lobo[12] a atual dinâmica das relações contratuais, regidas pela prescindibilidade do poder de escolhas, ausência de autodeterminação livre dos próprios interesses, em que os direitos, deveres e pretensões são fortemente limitados pela lei ou pelo poder negocial do contratante, reclama à transformação da teoria do contrato em igual medida.


REFERÊNCIAS

BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento – 2. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2020.

CORDEIRO, Eros Belin de Moura; PAGANINI, Juliano Marcondes. Contratos de Adesão no Código Civil: A Tutela Material do Equilíbrio à Luz do Princípio da Proporcionalidade. Apontamentos Críticos Para o Direito Civil Contemporâneo./ Eroulths Cortiano Junior, Jussara Maria Leal de Meirelles, Luiz Edson Fachin, Paulo Nadin (coords.) – Curitiba: Juruá, 2008.

GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil, volume 4 : contratos / Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho. – 2. ed. unificada. – São Paulo : Saraiva Educação, 2019.

INSPER. Mundo se Aproxima da Marca de 5 Bilhões de Usuários de Internet, 63% da População. Disponível em <https://www.insper.edu.br/noticias/mundo-se-aproxima-da-marca-de-5-bilhoes-de-usuarios-d e-internet-63-da-populacao>. Acesso em 04 fev 2024.

INSTAGRAM. Termos de Utilização. Disponível em <https://help.instagram.com/581066165581870/?locale=pt_PT&hl=pt>. Acesso em 05 fev. 2024.

LÔBO, Paulo. Contratos. – Coleção Direito civil volume 3 – 6. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos Eletrônicos de Consumo. 3 ed. São Paulo: Atlas. 2016.

PARCHEN, Charles Emmanuel; FREITAS, Cinthia Obladen De Almendra; MEIRELES, Jussara Maria Leal De. As Técnicas de Neuromarketing nos Contratos Eletrônicos e o Vício do Consentimento na Era Digital. Novos Estudos Jurídicos 23.2 (2018): 521. Disponível em <https://periodicos.univali.br/index.php/nej/article/view/13408/7617>. Acesso em 04 fev. 2024.

UBER. Termos Gerais de Uso. Disponível em <https://www.uber.com/legal/pt-br/document/?country=brazil&lang=pt-br&name=general-ter ms-of-use>. Acesso em 05 fev. 2024.


[1] Dados oriundos estudo Digital 2022: Global Overview Report, revelam que sessenta e três por cento da população mundial, correspondente a cerca de cinco bilhões de pessoas em números absolutos, são usuários de forma direta ou indireta da rede mundial de computadores. (INSPER. Mundo se Aproxima da Marca de 5 Bilhões de Usuários de Internet, 63% da População. Disponível em <https://www.insper.edu.br/noticias/mundo-se-aproxima-da-marca-de-5-bilhoes-de-usuarios-de-internet-63-da-p opulacao>. Acesso em 04 fev 2024).

[2] GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil, volume 4 : contratos / Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho. – 2. ed. unificada. – São Paulo : Saraiva Educação, 2019. p. 83.

[3] Idem. p. 84.

[4] TEPEDINO, Gustavo. O Papel da Vontade na Interpretação dos Contratos. Revista Interdisciplinar de Direito 16.1 (2018): Revista Interdisciplinar de Direito, 2018, Vol.16 (1). Disponível em https://revistas.faa.edu.br/FDV/article/view/492/369 Acesso em 04 fev 2024.

[5] Idem, p. 177.

[6] BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento – 2. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 250.

[7] CORDEIRO, Eros Belin de Moura; PAGANINI, Juliano Marcondes. Contratos de Adesão no Código Civil: A Tutela Material do Equilíbrio à Luz do Princípio da Proporcionalidade. Apontamentos Críticos Para o Direito Civil Contemporâneo./ Eroulths Cortiano Junior, Jussara Maria Leal de Meirelles, Luiz Edson Fachin, Paulo Nadin (coords.) – Curitiba: Juruá, 2008. p. 84.

[8] PARCHEN, Charles Emmanuel; FREITAS, Cinthia Obladen De Almendra; MEIRELES, Jussara Maria Leal De. As Técnicas de Neuromarketing nos Contratos Eletrônicos e o Vício do Consentimento na Era Digital. Novos Estudos Jurídicos 23.2 (2018): 521. Disponível em <https://periodicos.univali.br/index.php/nej/article/view/13408/7617>. Acesso em 04 fev. 2024.

[9] BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento – 2. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 250.

[10] “[…] concedes-nos pelo presente uma licença não exclusiva, isenta de royalties, transmissível, passível de sublicenciamento e de aplicação mundial para alojar, utilizar, distribuir, modificar, executar, copiar, reproduzir ou exibir de forma pública, traduzir e criar obras derivadas dos teus conteúdos (de acordo com as tuas definições de privacidade e da app)”. INSTAGRAM. Termos de Utilização. Disponível em <https://help.instagram.com/581066165581870/?locale=pt_PT&hl=pt>. Acesso em 05 fev. 2024.

[11] […] Contudo, ao fornecer Conteúdo de Usuário(a) para a Uber, Você outorga a Uber e suas Afiliadas uma licença dos direitos autorais sobre o Conteúdo de Usuário(a) em nível mundial, perpétua, irrevogável, transferível, isenta de royalties, e com direito a sublicenciar, usar, copiar, modificar, criar obras derivadas, distribuir, publicar, exibir, executar em público e, de qualquer outro modo, explorar esse Conteúdo de Usuário(a) em todos os formatos e canais de distribuição hoje conhecidos ou desenvolvidos no futuro (inclusive em conexão com os Serviços e com os negócios da Uber e em sites e serviços de terceiros), sem ulterior aviso a Você ou Seu consentimento, e sem necessidade de pagamento a Você ou a qualquer outra pessoa ou entidade. UBER. Termos Gerais de Uso. Disponível em <https://www.uber.com/legal/pt-br/document/?country=brazil&lang=pt-br&name=general-terms-of-use>. Acesso em 05 fev. 2024.

[12] LÔBO, Paulo. Contratos. – Coleção Direito civil volume 3 – 6. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

João Pedro Bastos de Oliveira

Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (FDA/UFAL). Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito Público da Universidade Federal de Alagoas (PPGD – FDA/UFAL). Advogado.

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