A associação civil e a realização de direitos fundamentais: novos rumos para o acesso aos bens comuns

7 de novembro de 2023

A ASSOCIAÇÃO CIVIL, MOVIMENTOS ASSOCIATIVOS E A CONSTRUÇÃO DE NOVOS ESPAÇOS SOCIAIS.

A associação civil é um instrumento de realização de direitos individuais fundamentais do Estado Democrático de Direito. Pretende-se, uma vez consolidada essa premissa, analisar como elas podem funcionalizar os direitos e interesses coletivos para o acesso a bens comuns na sociedade atual, pois elas têm grande responsabilidade social preconizada pela Constituição Federal de 1988.

Em 2019, o IBGE revela que foram identificadas 526,8 mil entidades sem fins lucrativos, dentro do universo de 5,5 milhões de organizações ativas no CEMPRE (Cadastro Central de Empresas).[1]

O movimento associativo brasileiro se desenvolve para uma dimensão política do associativismo, com objetivo de transformar a realidade social e normativa, através da reivindicação de direitos, da defesa da autonomia organizacional dos movimentos em relação ao Estado e a defesa de formas públicas de apresentação das demandas e de negociação com o Estado.

Elas equalizam relações assimétricas de poder que despontam numa sociedade tão desigual quanto à brasileira e conquistam espaços de discussão e voz ativa para uma camada social por vezes à margem de políticas públicas e sociais de primeira ordem. Além disso, permitem com que indivíduos deficientes com problemas de saúde, pretos, pobres, índios, imigrantes, mulheres vítimas de violência, crianças e jovens em condições de vulnerabilidade, pessoas vulneráveis e hipossuficientes em determinadas relações jurídicas e comerciais, alcancem seus direitos e tenham seus interesses atendidos pela sociedade e pelo Estado.

É justamente para fortalecer os interesses individuais isolados, porém homogêneos e marginalizados pelo Estado que surgem as associações civis, reformatando a importância dos arranjos participativos avulsos e descentralizados, organizando-se e atomizando-os para emprestar a pessoa a força da luta agrupada com vistas à consecução de fins iguais a pessoas em situações iguais.

A ASSOCIAÇÃO CIVIL E A VINCULAÇÃO A DIREITOS FUNDAMENTAIS PARA GARANTIA DE DIREITOS DOS ASSOCIADOS.

A Constituição Federal, alinhada com o Pacto São José da Costa Rica -Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 (artigo 16º) consagra o direito à liberdade de associação, no art. 5º, XVII afirmando que “é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar”, garantindo ao cidadão o direito de criar uma entidade com personalidade jurídica e capacidade para realizar atos em nome próprio e sob sua responsabilidade, desde que os fins sejam lícitos.

O Código Civil, no art. 44, I e ss. dispõe que a natureza jurídica das associações, regulamenta sua constituição e finalidade sociais. Todas as pessoas têm plena liberdade de não se associarem e nem serem obrigadas a permanecer associadas, não podendo haver discriminação nos critérios de ingresso ou de permanência na associação civil, nem ônus demasiados que indiretamente inviabilizem o exercício do direito associativo.[2]

Garante-se ao associado o direito fundamental também de se desligar da entidade voluntária e incondicionalmente. Sua exclusão da entidade somente é admissível havendo justa causa, reconhecida em procedimento que assegure direito de defesa e recurso, conforme estabelecido no estatuto e na linha do que preconiza o art. 57, do Código Civil, de modo a garantir ao associado o direito fundamental ao contraditório e da ampla defesa, graças à releitura que a constitucionalização do direito realiza atraindo novos paradigmas para as relações privatistas. As regras estatutárias materiais  (critérios de ingresso, permanência, etc) e processuais (direito de ouvir, ser ouvido, de apresentar defesa administrativa, etc) não podem violar direitos fundamentais dos associados.

A ASSOCIAÇÃO CIVIL E A REALIZAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS COLETIVOS ATRAVÉS DO ACESSO AOS BENS COMUNS.

A lei de ação civil pública – Lei n. 7.347/1985-, em 2014, foi alterada para incluir as associações como entes com legitimidade para defesa de direitos individuais homogêneos e difusos nos processos judiciais mediante os requisitos do art. 5º, inciso V.

Decisões do STJ têm reafirmado que as associações, independentemente de aprovação assemblear prévia, e através da substituição processual já podem pleitear, em nome próprio, direitos pertencentes a outras pessoas, por meio do ajuizamento de ações coletivas ou ações civis públicas, com efeitos sobre todas as pessoas envolvidas, não importando o lugar onde elas vivam, ou se são associadas ou não à entidade que entrou com a ação na Justiça.

Atualmente, e segundo entendimentos do STF e STJ, a associação, quando ajuíza ação na defesa dos interesses de seus associados, atua como representante processual e, por isso é necessária autorização individual ou assemblear dos associados (legitimidade ordinária, conforme art. 5º, XXI da CRFB/88). Todavia, se atua na defesa de direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos, assim o faz como substituta processual e não precisa dessa autorização (legitimidade extraordinária, conforme art. 5º, LXX, b da CRFB/88).

Além disso, o STJ, no tocante à execução de julgados coletivos, decidiu que:

 “em Ação Civil Pública proposta por associação, na condição de substituta processual de consumidores, possuem legitimidade para a liquidação e execução da sentença todos os beneficiados pela procedência do pedido, independentemente de serem filiados à associação promovente”.[3]

Desde 2021, a associação civil reforça seu papel como instrumento de efetivação de direitos fundamentais coletivos indo muito além dos interesses particulares, ou seja, alcança pessoas além de seus vínculos estatutários.

A associação civil alcança reconhecimento público de que pode assegurar direitos comuns, com repercussão no direito ao acesso a bens comuns. Nesse passo, questiona-se: a entidade associativa passa a ter responsabilidade de viabilizar ou instrumentalizar o acesso aos bens comuns?

Bens comuns são aqueles aos quais todos os brasileiros, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, devem ter acesso, como saúde, educação, habitação, assistência social, trabalho, cultura, lazer, como elementos propulsores e imanentes à condição de pessoa humana com vida digna e plena.

Gustavo Tepedino cita dois julgados do STJ[4] em que se desenvolveu a ideia subjacente à teoria dos bens comuns, os quais, são entendidos como bens de acesso universal, sem titularidade proprietária, como a água, por exemplo e o acesso à internet porque vem a ser mais do que um recurso facultativo, porquanto na era de relações jurídicas virtuais, numa sociedade digital, o acesso à internet de qualidade torna-se uma necessidade e o bem comum de impostergável reconhecimento e garantia, sob pena de alijar o cidadão dos processos produtivos e do conhecimento.[5]

A associação civil hoje tem legitimidade processual (ação civil pública, mandado de segurança coletivo, etc) para lutar pelo acesso aos bens comuns, com efeitos amplos, já que através dela é possível garantir aos indivíduos, associados ou não, o acesso a bens que sem ela não seria possível.

Paulo Lôbo defende a necessidade de regulação do mercado e de intervenção legislativa no sentido de efetivação crescente do acesso das pessoas aos bens da vida essenciais à existência da pessoa nas suas várias dimensões.[6]

Everilda Guilhermino Brandão esclarece que bem comum “é o que pertence a todos e a nenhum exclusivamente, cuja experiência de pertencimento está no compartilhamento, estando ele ligado a uma titularidade difusa. Ele inaugura uma lógica não proprietária e é administrado pelo princípio da solidariedade.”[7]

A releitura da função da associação civil perante as novas necessidades da sociedade, com o consequente o redimensionamento de sua responsabilidade social à luz dos paradigmas da solidariedade, da fraternidade e da igualdade, permite-nos concluir sua relevância para garantia de acesso aos bens comuns.

As mais recentes decisões dos Tribunais Superiores vêm regulando a legitimação processual das associações civis, num claro reconhecimento de sua força coletiva como veículo catalisador e propulsor de interesses difusos e coletivos, para além da histórica luta por interesses de categoria meramente particularistas.

Elas estão em sintonia direta com os postulados valorativos presentes no art. 3º, inciso I da CF que trata dos objetivos da República brasileira, que endossam a missão democrática do Brasil em ser “uma democracia requintadamente estruturada para garantir ao País a melhor qualidade de vida política, econômico-social e fraternal.”[8]

A associação civil desponta como um instrumento vocacionado a realizar na sociedade os objetivos constitucionais e universais imanentes aos princípios da fraternidade e da solidariedade, momento em que soçobra seu viés individualista que a estruturou durante séculos.

Esse novo papel que se alinha com a ideia de uma nova função social das entidades civis associativas, abre caminhos para novas responsabilidades dos movimentos associativos. Elas podem realizar direitos fundamentais que vão além do indivíduo associado e podem viabilizar, através de suas lutas e sua força, o acesso a bens e direitos comuns, beneficiando assim uma quantidade maior de indivíduos independentemente de estarem associados ou não.


Referências bibliográficas

BRITTO, Carlos Ayres. O humanismo como categoria constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 111.

CARLOS, Euzineia et al. Associativismo, participação e políticas públicas. Política & Sociedade, v. 5, n. 9, p. 163-194, 2006.

DO NASCIMENTO, Artur Gustavo Azevedo; PINHEIRO, Rodolfo Ferreira; DA SILVA, Rogerio Luiz Nery. O direito de associação: um instrumento de efetivação dos direitos fundamentais. Revista Brasileira de Direito Civil em Perspectiva, v. 8, n. 1, 2022.

KAUFMANN, Rodrigo de Oliveira. Novo capítulo no tema das associações autoras de ações coletivas. In: Revista Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-ago-20/observatorio-constitucional-capitulo-tema-associacoes-autoras-acoes-coletivas Acesso em 07 de maio de 2023.

LÔBO, Paulo Luiz Neto. Coisas. Saraiva: São Paulo, 2017.

MACEDO, Manuel Vilar de. As associações no direito civil. Coimbra: Coimbra editora, 2007.

GOLDHAR, Tatiane Gonçalves Miranda. Direito fundamental à associação e a exclusão do associado. 2009. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2009.

GUILHERMINO, Everilda Brandão. A Tutela das Multititularidades: repensando os limites do direito de propriedade. Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2018.

JABORANDY, Clara Cardoso Machado. A efetivação de direitos fundamentais transindividuais e o princípio jurídico da fraternidade. In: MACHADO, Carlos Augusto Alcântara; JABORANDY, Clara Cardoso Machado; BARZOTO, Luciene Cardoso. Direito e fraternidade. Aracaju: EDUNIT: 2018

STAZIN, Rachel. Associações e sociedades. Revista de direito mercantil, industrial, econômico e financeiro, n. 128, ano 41, out.-dez. São Paulo: Malheiros, 2002.

TEPEDINO, Gustavo. Direitos fundamentais e acesso aos bens: entram em cena os Commons. Revista Brasileira de Direito Civil, Belo Horizonte, vol. 15, p. 11-14, jan./mar. 2018.

WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Tradução: Antônio Manuel Hespanha. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2004.

PESQUISA INDICA EXISTIR 290 MIL ASSOCIAÇÕES E FUNDAÇÕES NO BRASIL. Federação Nacional dos empregados em instituições beneficentes, filantrópicas e religiosas.com.br. 2023. Disponível em: https://fenatibref.org.br/posts/pesquisa-indica-existir-290-mil-associacoes-e-fundacoes-no-brasil#:~:text=Das%20quase%20291%20mil%20associa%C3%A7%C3%B5es,%2C6%25%20%2D%2042.463) . Acesso 08 de maio de 2023.

Número de ONGs e associações no Brasil cai 16,5% entre 2010 e 2016, diz IBGE. G1globo.com. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/04/05/numero-de-ongs-e-associacoes-no-brasil-cai-165percent-entre-2010-e-2016-diz-ibge.ghtml  Acesso em 07 de maio de 2023.

PESQUISA DETALHA PERFIL DAS FUNDAÇÕES SOCIAIS E ASSOCIAÇÕES BRASILEIRAS. Nexo.is/blog. 2019. Disponível em: https://nexo.is/blog/pesquisa-detalha-perfil-das-fundacoes-sociais-e-associacoes-brasileiras/ Acesso em 07 de maio de 2023.

STF reafirma jurisprudência sobre alcance de mandado de segurança impetrado por associações. Portal.jus.stf.gov. 2021. https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=458130&ori Acesso em 08 de maio de 2023.


Notas

[1] https://nexo.is/blog/pesquisa-detalha-perfil-das-fundacoes-sociais-e-associacoes-brasileiras/

[2] O Superior Tribunal de Justiça reconheceu a tutela das diversas formas de família no seio das associações “RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E CONSTITUCIONAL. CLUBE SOCIAL. PROIBIÇÃO DE FREQUÊNCIA. EX-COMPANHEIRO. ISONOMIA. VIOLAÇÃO. UNIÃO ESTÁVEL. COMPROVAÇÃO. EQUIPARAÇÃO A EX-CÔNJUGE. EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA IGUALDADE MATERIAL. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados e de terceiros (RE nº 201.819-8). 3. A recusa de associação, no caso um clube esportivo, baseada exclusivamente em cláusula protetiva apenas a excônjuge de sócio proprietário de título, excluindo o benefício a ex-companheiro, viola a isonomia e a proteção constitucional de todas as entidades familiares, tais como o casamento, a união estável e as famílias monoparentais. 4. Recurso especial não provido” (STJ. REsp Nº 1.713.426 – PR (2017/0307936-5). Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva – DJe: 07/06/2019)

[3] STJ – REsp: 1800726 MG 2018/0054195-0, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 02/04/2019, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 04/04/2019 REVPRO vol. 294 p. 477

[4] STJ. 3ª T. REsp nº 1.616.038/RS. Rel. Min. Nancy Andrighi. Julg. em 27.9.2016 e STJ. 2ª T. REsp nº 1.135.807/RS. Rel. Min. Herman Benjamin. Julg. em 15.4.2010.

[5] Rodotá defende a necessidade de se transformar a internet num bem comum e também em um direito fundamental da pessoa humana, em texto traduzido e citado por Everilda Guilhermino Brandão.

[6] LÔBO, Paulo Luiz Neto. Coisas. Saraiva: São Paulo, 2017, p. 3.

[7] GUILHERMINO, Everilda Brandão. A Tutela das Multititularidades: repensando os limites do direito de propriedade. Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2018, p. 81

[8] BRITTO, Carlos Ayres. O humanismo como categoria constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 111.


Tatiane Gonçalves Miranda Goldhar

Advogada. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Especialista em Processo Civil. Professora Universitária de Graduação e Pós-Graduação. Membro do IBDFAM Sergipe e Nacional. Presidente da Comissão de Alienação Parental do IBDFAM/SE. Ex-Conselheira Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Coach pelo Instituto Brasileiro de Coaching – IBC. PNL Pratictioner pelo Instituto ELSERVER. Formada pela Dale Carnegie. Facilitadora de Justiça Restaurativa pelo convênio da Universidade Federal de Sergipe, OABSE e Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe.


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