Quando prestados por concessionárias (sejam estatais ou empresas privadas) os serviços públicos de saneamento encontram-se submetidos ao controle por parte do poder concedente; de agências reguladoras; dos órgãos e entidades do SNVS (Sistema Nacional de Vigilância Sanitária); dos órgãos e entidades do SISNAMA (Sistema Nacional do Meio Ambiente); dos Tribunais de Contas e do Ministério Público.
Diante dessa grande quantidade de atores podendo atuar no polo controlador, é grande o risco de sobrecarga/superposição de instâncias de controle sobre a ação das concessionárias, risco esse que recebe a alcunha de “accountability overload”.
Para Marianna Willeman, o fenômeno da accountability overload nada mais é do que a “superposição de instâncias de controle sobre a ação administrativa, que, não raro, chega a comprometer a própria eficiência da gestão pública em decorrência de seus excessos e de suas patologias[1]”.
Na accountability overload, com o excesso de instituições e de mecanismos de controle e supervisão, engessa-se a atividade administrativa (que, aqui no caso do texto, é a atividade delegada à concessionária para prestar serviços públicos sob o regime de concessão), determinando ou dando uma margem quase nula para tomada de decisões, eliminando graus de discricionariedade próprios de burocracias estatais (que, mais uma vez trazendo para a realidade debatida aqui no artigo, é a margem de discricionariedade da concessionária na exploração econômica da atividade de prestação de serviços públicos), que atrasam o desenvolvimento e o dinamismo, fundamentais para o desenvolvimento econômico e social.
A accountability overload causa patologias organizacionais e perversos efeitos colaterais, afetando a produtividade, a eficiência da gestão, a responsividade e a qualidade dos serviços públicos, conforme anota Arie Halachmi[2]: “The paradox is that the accountability fervor meant to assure performance can have direct and indirect consequences that undermine it. The direct dysfunctions manifest themselves in various ways – such as delays or red tape from the perspective of service recipients; dwelling too long on short term success; excessive use of resources when compared with private organizations; slowness in or lack of responsiveness; interference with the execution of other programs; siphoning of critical resources from operation to underwrite the overhead cost of accountability; and the discouragement of innovation and improvisation to address rapidly changing circumstances. Extreme cases of accountability overload may dissuade innovation in other organizations that consider alternatives for addressing a public need. Such deterrence may have adverse effects on the polity’s welfare”. Tradução livre: “O paradoxo é que o fervor da accountability destinado a garantir o desempenho pode ter consequências diretas e indiretas que o prejudicam. As disfunções diretas manifestam-se de diversas formas – como atrasos ou burocracia na perspectiva dos destinatários dos serviços; insistir muito no sucesso de curto prazo; uso excessivo de recursos quando comparado com organizações privadas; lentidão ou falta de capacidade de resposta; interferência na execução de outros programas; desvio de recursos críticos da operação para cobrir os custos indiretos da responsabilização; e o desencorajamento da inovação e da improvisação para enfrentar circunstâncias em rápida mudança. Casos extremos de sobrecarga de accountability podem dissuadir a inovação noutras organizações que considerem alternativas para responder a uma necessidade pública. Essa dissuasão pode ter efeitos adversos no bem-estar do sistema político”.
A existência e o prejuízo advindo de tal “modelo de múltiplas chibatas[3]” inclusive vem sendo reconhecido pelos próprios Tribunais de Contas brasileiros, como é o caso do TCE/RJ no Acórdão nº 90272/2023: “Havendo coincidência entre a matéria tratada em processo perante o Tribunal de Contas e o objeto de Mandado de Segurança com decisão de mérito, ainda que prevaleça a independência entre a instância judicial e este Tribunal, forçoso reconhecer a ausência do critério de oportunidade para se prosseguir com o exame de mérito (…) evitando-se os efeitos adversos da sobrecarga/superposição de instâncias de controle sobre a ação administrativa (accountability overload), de forma a prevenir eventuais decisões conflitantes e resguardar a segurança jurídica” (TCE/RJ, Acórdão nº 90272/2023-PLENV, Processo TCE-RJ nº 229.118-8/23).
Num país em que, por exemplo, a judicialização e a pulverização de agências reguladoras são dificuldades notórias que afetam as concessionárias da área de saneamento, é fundamental que a sobrecarga/superposição de instâncias de controle passe a ser mais estudada e debatida, evitando-se assim que a accountability se torne um problema ao invés de um elemento inafastável para a boa prestação de serviços públicos.
Autor: Aldem Johnston Barbosa Araújo, advogado de Mello Pimentel Advocacia.
E-mail: aldem.johnston@mellopimentel.com.br.
Notas
[1] Willeman, Marianna Montebello, Accountability democrática e o desenho institucional dos Tribunais de Contas no Brasil, Belo Horizonte: Fórum, 2017, pág. 293.
[2] Halachmi, Arie. Accountability overload. In: BOVENS, Mark; GOODIN, Robert E.; SCHILLEMANS, Thomas (Coord.). The Okford handbook of public accountability. Nova Iorque: Oxford University Press, 2014, pág. 561)
[3] Alves, Maria Fernanda Colaço. Múltiplas Chibatas? Institucionalização da Política de Controle da Gestão Pública Federal 1988-2008. Dissertação (Mestrado em Administração) – Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Ciência da Informação e Documentação, Universidade de Brasília, Brasília, 2009, pág. 01.
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