“Poder” Regulamentar Ante o Princípio da Legalidade

31 de agosto de 2017

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Por Celso Antônio Bandeira de Mello,
professor titular de Direito Administrativo e professor emérito da PUC/SP.
Artigo publicado na edição 64 da Revista Trimestral de Direito Público – RTDP.
Referência:
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. “Poder” regulamentar ante o Princípio da Legalidade. Revista Trimestral de Direito Público – RTDP, ano 8, n. 64, p. 145-152, jan./mar. 2016.

 

1. O Texto Constitucional brasileiro, em seu art. 5o, II, expressamente estatui que: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

Em estrita harmonia com tal dis­positivo e travando um quadro cerrado dentro do qual se há de circunscrever a Administração, o art. 84, III, ao se referir à competência do Chefe do Poder Execu­tivo para expedir decretos e regulamentos, explicita que suas emissões destinam-se à “fiel execução” das leis. Litterim; “sancio­nar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”.

Ambos os preceptivos respondem com precisão capilar a objetivos funda­mentais do Estado de Direito e exprimem com rigor o ideário e as preocupações que nele se substanciaram. Ambos firmam o chamado princípio da legalidade da Administração, o qual, de resto, também está expressamente referido na cabeça do art. 37 da Lei Magna.

2. Com efeito, por meio das disposições mencionadas cumpre-se o projeto de outorgar às pessoas a garantia consti­tucional de que suas liberdades não serão de nenhum modo coartadas (nem por proibições, nem por imposições) senão em decorrência de mandamento proveninente do corpo legislativo; isto é: do colégio representativo dos cidadãos, fórum no qual se processa o contemperamento das diferenças entre as várias tendências e grupos que ali se sintetizam.

Com isto firma-se, igualmente, o princípio da garantia da liberdade como regra, em prol da autonomia da vontade, segundo o qual “o que não está proibido aos particulares está, ipso facto, permiti­do”. Ante os termos dos preceptivos cons­titucionais citados, entende-se: “o que não está por lei proibido, está juridicamente permitido”.

É este aspecto que o art. 5o, II, en­fatiza, conquanto seja certo que também se encontra retratado no art. 84, III. Além disto, na esfera das liberdades econômicas o mesmo princípio está reiterado, agora em sua feição específica traduzida tanto no enunciado do art. 170, caput e inc. III, que proclamam, respectivamente, a “livre iniciativa”, como um dos pilares da ordem econômica, e a livre concorrência, como um dos princípios que a governam, quanto na dicção do parágrafo único do mesmo artigo, segundo o qual: “E assegurado a todos o livre exercício de qualquer ativi­dade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.

3. Por outro lado, nos aludidos versí­culos constitucionais se estampa o cuidado que engendrou a tripartição do exercício do Poder, isto é, o de evitar que se concen­trem os poderes públicos em um “mesmo homem ou corpo de principais”, para usar das expressões do próprio Montesquieu, cautela indispensável, porquanto, no dizer deste iluminado teórico: “é uma experiên­cia eterna a de que todo homem que tem poder é levado a abusar dele; ele vai até que encontre limites”. Nisto, aliás, justifi­cou sua postulação de que aquele que faz as leis não as execute nem julgue; que o que julga não faça as leis nem as execute e que aquele que as executa não faça as leis nem julgue (De L’Esprit des Lois, Paris, Garnier Frères, Libraires Éditeurs, 1869, pp. 142 e 143).

É esta preocupação que, embora já abrigada no art. 5o, II, vem a ser particu­larmente encarecida no art. 84, III, dispo­sitivo pelo qual se interdita ao Executivo expedir decretos e regulamentos senão para executar fielmente a lei. Seu desi­derato, pois, é impedir que sob o rótulo de regulamentar se expeçam disposições de caráter legislativo, vale dizer, normas constitutivas de direitos e obrigações (imposições de fazer ou não fazer) não previstas em lei. Dessarte, com tal pre­ceito, firma-se cânone basilar de nosso Direito Público — oposto ao da autonomia da vontade — segundo o qual o que, por lei, não está antecipadamente permitido à Administração está, ipso facto, proibido.

4. Na doutrina, quer nacional, quer alienígena, acotações do mesmo jaez podem ser colhidas aos racimos. Assim, entre nós, Hely Lopes Meirelles anotou: “Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permi­tido fazer o que a lei autoriza” (Direito Administrativo Brasileiro, 15a ed., Ed. RT, 1990, p. 78). Cirne Lima, com sua incontendível autoridade, prelecionou: “Supõe, destarte, a atividade administra­tiva a preexistência de uma regra jurídica, reconhecendo-lhe uma finalidade própria. Jaz, conseqüentemente, a Administração Pública debaixo da legislação que deve enunciar e determinar a regra de Direito” (Princípios de Direito Administrativo, 5a ed., Ed. RT, 1982, p. 22). O nunca assaz pranteado Seabra Fagundes, expressão pinacular do Direito Público brasileiro, resumiu tudo em frase lapidar, por sua exatidão e síntese, ao dizer que administrar é aplicar a lei de ofício (O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judi­ciário, 5a ed., Forense, 1979, pp. 4 e 5). Nós mesmos, inúmeras vezes, averbamos que: “A legalidade na Administração não se resume à ausência de oposição à lei, mas pressupõe autorização dela, como condição de sua ação” (Curso de Direito Administrativo, 4a ed., Malheiros Editores, 1993, p. 25).

Entre os publicistas estrangeiros encontram-se aos bolhões enunciados da mesma força. Sirva de exemplo o seguinte esclarecimento de Fritz Fleiner: “Administração legal significa, pois: Administração posta em movimento pela lei e exercida nos limites de suas dispo­sições” (Principes Généraux du Droit Administratif Allemand, 1933, p. 87). O eminente Professor de Coimbra, Afonso Rodrigues Queiró proferiu os seguintes preciosos ensinamentos: “A atividade ad­ministrativa é uma atividade de subsunção dos fatos da vida real às categorias legais” (Reflexões sobre a Teoria do Desvio de Poder, Coimbra Editora, 1940, p. 19); ou “o Executivo é a longa manus do legisla­dor” (Estudos de Direito Administrativo, Coimbra, Atlântida, 1968, p. 9). Renato Alessi indica que a atividade administra­tiva subordina-se à legislativa tanto em um sentido negativo (proibições concernentes a atividades, finalidades, meios e formas de ação) quanto em um sentido positi­vo, significando este último não apenas que a lei pode vincular positivamente a atividade administrativa a determinadas finalidades, meios ou formas, mas que, sobretudo no que concerne a atividades de caráter jurídico, a Administração “pode fazer tão-somente o que a lei consente” (Sistema Istituzionale del Diritto Ammi­nistrativo Italiano, 3a ed., Giuffrè, 1960, p. 9). Michel Stassinopoulos cunhou esta admirável frase para descrever a inevitável dependência administrativa da lei no Esta­do de Direito: “Em um Estado de Direito, a Administração encontra-se não apenas na impossibilidade de agir contra legem ou extra legem, mas é obrigada a agir sempre secundum legem” (Traité des Actes Administratifs, Athènes, Librairie Sirey, 1954, p. 69). Ernst Forsthoff encarece as relações entre o princípio da legalidade e a liberdade individual, ao esclarecer que isto se dá por uma dupla maneira: por um lado, através do expresso reco­nhecimento de liberdades determinadas, tanto pela Constituição como pelas leis ordinárias, e, de outro, graças ao princípio da legalidade da Administração “que não admite maiores intervenções na liberdade e propriedade além das que se acham legalmente permitidas. Este princípio se baseia na divisão de Poderes e pressupõe que a Administração age embasada na lei e que o legislador não expede, sob forma de leis, atos administrativos” (Traité de Droit Administratif Allemand, trad. da 9ª ed. alemã, de 1966, por Michel Fromont, Bruxelles, Établissements Émile Bruylant, 1969, p. 282).

É, pois, livre de qualquer dúvida ou entredúvida que os precitados dispositivos constitucionais brasileiros (arts. 5o, II, 84, III, e 37) consagram, com luminosa explicitude, esta enérgica proteção — a que aludem os doutrinadores referidos — contra eventuais pretensões do Executivo de disciplinar, ele próprio e segundo seus próprios critérios, a liberdade e a proprie­dade dos administrados, mediante impo­sição de obrigações de fazer ou não fazer radicadas meramente em regulamentos.*

5. Convém registrar, ainda, que o fato de a lei ser geral e abstrata — con­correndo, então, para prestigiar os valores de impessoalidade e da igualdade, na medida em que tal estrutura normativa embaraça naturalmente as perseguições e favoritismos — não é a única razão que justificaria confiar-se ao Poder Legislativo o delicado mister de disciplinar a liberdade e a propriedade das pessoas.

Com efeito, os regulamentos também são, normalmente, gerais e abstratos. Contudo, há diferenças extremamente relevantes entre eles e as leis. Estas dife­renças, a seguir referidas, ensejam que as leis ofereçam aos administrados garantias muitas vezes superiores às que poderiam derivar unicamente das características de abstração e generalidade também encon­tradiças nos regulamentos.

6. Deveras, as leis provêm de um órgão colegial — o Parlamento — no qual se congregam várias tendências ideológi­cas, múltiplas facções políticas, diversos segmentos representativos do espectro de interesses que concorrem na vida social, de tal sorte que o Congresso se constitui em verdadeiro cadinho onde se mesclam distintas correntes. Daí que o resultado de sua produção jurídica, as leis — que irão configurar os direitos e obrigações dos cidadãos — necessariamente terminam por ser, quando menos em larga medida, fruto de algum contemperamento entre as variadas tendências. Até para a articulação de uma maioria são necessárias transigên­cias e composições, de modo que a matéria legislada resulta como o produto de uma interação, ao invés da mera imposição rígida das conveniências de uma única linha de pensamento.

Com isto, as leis ganham, ainda que em medidas variáveis, um grau de proxi­midade em relação à média do pensamento social predominante muito maior do que o que ocorreria caso fossem a simples expressão unitária de uma vontade indivi­dual, embora representativa, também ela, de uma das facções sociais. É que, afinal, como bem observou o insuspeito Kelsen, o Legislativo, formado segundo o critério de eleições proporcionais, ensejadoras, justamente, da representação de uma plu­ralidade de grupos, inclusive de minorias, é mais democrático que o Executivo, ao qual se acede por eleição majoritária.

Se fosse possível, mediante simples regulamentos expedidos por presidente, governador ou prefeitos, instituir deveres de fazer ou não fazer, ficariam os cidadãos à mercê, se não da vontade pessoal do un­gido no cargo, pelo menos, da perspectiva unitária, monolítica, da corrente de pen­samento de que este se fizesse porta-voz.

Mas não só isto, entretanto. Ainda há mais.

7. O próprio processo de elaboração das leis, em contraste com o dos regula­mentos, confere às primeiras um grau de controlabilidade, confiabilidade, imparcia­lidade e qualidade normativa muitas vezes superior ao dos segundos, ensejando, pois, aos administrados um teor de garantia e proteção incomparavelmente maiores.

É que as leis se submetem a um trâ­mite graças ao qual é possível o conheci­mento público das disposições que estejam em caminho de serem implantadas. Com isto, evidentemente, há uma fiscalização social, seja por meio da imprensa, de órgãos de classe, ou de quaisquer setores interessados, o que, sem dúvida, dificulta ou embarga eventuais direcionamentos incompatíveis com o interesse público em geral, ensejando a irrupção de tempestivas alterações e emendas para obstar, corrigir ou minimizar tanto decisões precipitadas quanto propósitos de favorecimento, ou, reversamente, tratamento discriminatório, gravoso a grupos ou segmentos sociais, econômicos ou políticos. Demais disto, proporciona, ante o necessário trâmi­te pelas Comissões e o reexame pela Casa Legislativa revisora, aperfeiçoar tecnicamente a normatização projetada, embargando a possibilidade de erros grosseiros, ilogismos ou inconveniências mais flagrantes. Finalmente, propicia um quadro normativo mais estável, a bem da segurança e certeza jurídicas, sem as quais é impossível um planejamento razoável da atividade econômica das pessoas e empresas e até dos projetos individuais de cada qual. E, até mesmo para garantir o desfrute de todas as vantagens men­cionadas, o constituinte brasileiro teve o cuidado de regular minuciosamente o processo legislativo, obstando a que, por disposições infraconstitucionais, se pudes­se estabelecer um rito menos prudente na elaboração das leis.

8. Já, os regulamentos carecem de todos estes atributos e, pelo contrário, propiciam as mazelas que resultariam da falta deles, motivo pelo qual, se são perfeitamente prestantes e úteis para a simples delimitação mais minudente das providências necessárias ao cumprimento dos dispositivos legais, seriam gravemente danosos — o que é sobremodo claro em país com as características políticas do Brasil — se pudessem, por si mesmos, instaurar direitos e deveres, impondo obrigações de fazer ou não fazer.

Deveras, opostamente às leis, os re­gulamentos são elaborados em gabinetes fechados, sem publicidade alguma, liber­tos de qualquer fiscalização ou controle da sociedade ou, mesmo, dos segmentos sociais interessados na matéria. Sua pro­dução se faz apenas em função da vontade, isto é, da diretriz estabelecida por uma pessoa, o Chefe do Poder Executivo, sen­do composto por um ou poucos auxiliares diretos seus ou de seus imediatos. Não necessita passar, portanto, nem pelo em­bate de tendências políticas e ideológicas diferentes, nem mesmo pelo crivo técnico de uma pluralidade de pessoas instrumen­tadas por formação ou preparo profissional variado ou comprometido com orientações técnicas ou científicas discrepantes. Sobre mais, irrompe da noite para o dia, e assim também pode ser alterado ou suprimido.

São visíveis, pois, a natural inade­quação e os imensos riscos que adviriam para os objetivos essenciais do Estado de Direito — sobreposse, repita-se, em um país ainda pouco afeito a costumes polí­ticos mais evoluídos — de um poder re­gulamentar que pudesse definir, por força própria, direitos ou obrigações de fazer ou não fazer imponíveis aos administrados.

9. Tudo isto certamente explica o caráter cortante dos arts. 5o, II, e 84, III, da Constituição brasileira, por força dos quais é iniludivelmente claro que só por lei se regula liberdade e propriedade; só por lei se impõem obrigações de fazer ou não fazer, e só para cumprir dispositivos legais é que o Executivo pode expedir decretos e regulamentos. Também por tudo isto se explica o redobrado cuidado do constituinte ao reiterar, no âmbito das liberdades econômicas, a absoluta inteireza e valia destas colunas mestras de nosso sistema, conforme resulta do art. 170 — encarecedor da liberdade de iniciativa — de seu inc. III — encarecedor da livre concorrência — e do § 1o deste preceptivo, que, uma vez mais, renova a submissão total dos atos administrativos à lei e a diretriz básica de que só por lei é possível restringir a liberdade econômica. O aludido versículo, repita-se, dispõe ser livre o exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autori­zação dos órgãos públicos, salvo os casos previstos em lei.

Segue-se que os regulamentos não podem aportar à ordem jurídica direito ou obrigação que já não estejam, na lei, previamente caracterizados e de modo su­ficiente, isto é, nela delineados, ao menos pela indicação dos critérios e balizamentos indispensáveis para o reconhecimento de suas composturas básicas.

Foi o que de outra feita averbamos, apostilando que “há inovação proibida sempre que seja impossível afirmar-se que aquele específico direito, dever, obrigação, limitação ou restrição já estavam estatuí­dos e identificados na lei regulamentada. Ou, reversamente: há inovação proibida quando se possa afirmar que aquele espe­cífico direito, dever, obrigação, limitação ou restrição incidentes sobre alguém não estavam já estatuídos e identificados na lei regulamentada. A identificação refe­rida não necessita ser absoluta, mas deve ser suficiente para que se reconheçam as condições básicas de sua existência em vista de seus pressupostos, estabelecidos na lei e nas finalidades que ela protege” (Ato Administrativo e Direitos dos Admi­nistrados, Ed. RT, 1981, p. 98).

10. De resto, novidade alguma existe no trecho mencionado. Advertências do mesmo tom têm sido feitas, a cotio e a sem-fins, por doutores da máxima suposi­ção. Não é demais pôr em curso cita literal de algumas passagens colhidas nestes dou­trinadores. Pontes de Miranda bordou com pena de ouro os seguintes comentos: “Se o regulamento cria direitos ou obrigações novas, estranhas à lei, ou faz reviverem direitos, deveres, pretensões, obrigações, ações ou execuções que a lei apagou, é inconstitucional. Tampouco pode ele li­mitar, modificar, ampliar direitos, deveres, pretensões, obrigações ou exceções” (Co­mentários à Constituição de 1967, com a Emenda 1169, 2a ed. revista, t. III/316, Ed. RT, 1970, — grifos nossos).

E mais: “Onde se estabelecem, alteram ou extinguem direitos, não há regulamentos — há abuso do poder re­gulamentar, invasão de competência do Poder Legislativo. O regulamento nada mais é que auxiliar das leis, auxiliar que sói pretender, não raro, o lugar delas, sem que possa, com tal desenvoltura, justifi­car-se e lograr que o elevem à categoria de lei” (ob. cit., p. 314 — grifos nossos).

É que, como disse Geraldo Ataliba: “Sua função é facilitar a execução da lei, é especificá-la de modo praticável e, sobre­tudo, acomodar o aparelho administrativo para bem observá-la” (“Decreto regula­mentar no sistema brasileiro”, RDA 97/23).

Daí haver este último mestre incluído entre as conclusões do referido estudo a de que o regulamento “nada cria de novo; apenas dá disposições administrativas, tendentes à fiel execução da lei; não erige norma nova; apenas adequa os órgãos administrativos para bem cumprirem ou permitirem o cumprimento da lei” (loc. cit., p. 32 — grifos nossos).

Seabra Fagundes, de seu turno, ano­tou que o regulamento: “Prende-se em essência ao texto legal. O seu objetivo é tão-somente facilitar, pela especificação do processo executório e pelo desdobra­mento minucioso do conteúdo sintético da lei, a execução da vontade do Estado expressa em ato legislativo” (O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Ju­diciário, 5a ed., Forense, 1979, p. 24, nota de rodapé 2).

E disse, logo adiante: “Não lhe cabe alterar situação jurídica anterior, mas apenas pormenorizar as condições de modificação originária de outro ato (a lei). Se o fizer, exorbitará, significando uma invasão pelo Poder Executivo da competência legislativa do Congresso” (ob. e loc. cits.).

Em suma: entre a lei e o regulamento não existem apenas diferenças de origem ou de posição na hierarquia da norma jurídica. Como bem ressaltara Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ponto de supino relevo para distingui-los está em que, no que atina à força jurídica que pos­suem: “… a lei inova originariamente na ordem jurídica, enquanto o regulamento não a altera”, pois esta, como diz o mes­mo mestre: “E fonte primária, ao passo que o regulamento é fonte secundária, inferior” (Princípios Gerais de Direito Administrativo, 2a ed., v. I/316, Forense, 1979 — grifos nossos), de tal forma que os regulamentos: “… hão de ter por conteúdo regras orgânicas e processuais destinadas a pôr em execução os princípios institucio­nais estabelecidos em lei, ou normas em desenvolvimento dos preceitos constantes da lei, expressos ou implícitos, dentro da órbita por ela circunscrita, isto é, das diretrizes, em pormenor, por ela determi­nadas” (ob. e v. cits., p. 314).

11. Esta diferente força jurídica, a de inovar originariamente (lei) ou, tão-só, a de especificar o que já foi objeto de dis­ciplina, portanto, o que já sofreu, por lei, caracterização e delineamento anterior (regulamento), é que oferece deslinde para outro problema cuja solução seria tormentosa não fora a diretriz fornecida pela distinção em apreço. A saber: o pro­blema dos limites de liberdade passíveis de serem deferidos pela lei ao regulamento sem incorrer em delegação de poderes disfarçada, ou, mesmo ingenuamente, procedida em descompasso com o Texto Constitucional.

Com efeito, a questão é transcenden­te, pois de nada adiantariam aturadas cau­telas para acantonar o regulamento em seu campo de expressão próprio se, por força da própria obra legislativa, fosse possível, indiretamente, dilatar-lhe a esfera de ação e ensejar, por meio transverso, infiltração do Executivo em área que se quer defen­dida contra suas eventuais incursões. Vale dizer: de nada adiantariam os arts. 5o, II, e 84, III, se, ulteriormente, o legislador pudesse entregar, de mão beijada, a esfera da liberdade e da propriedade dos admi­nistrados para ser disciplinada por via de regulamento.

Fora isto possível e a garantia cons­titucional de que “ninguém poderá ser obrigado a fazer ou deixar de fazer al­guma coisa senão em virtude de lei”, a segurança de que os regulamentos seriam meramente executivos, a certeza de que o livre exercício de qualquer atividade econômica seria livre e independente de autorização de órgãos públicos, “salvo nos casos estabelecidos em lei”, deixariam de se constituir em proteção constitucional, convertendo-se em preceitos que vigora­riam se e na medida do amor ou desamor do legislador ordinário pela Lei Magna. Em suma: não mais haveria a garantia constitucional aludida, pois os ditames ali insculpidos teriam sua valia condicionada às decisões infraconstitucionais, isto é, às que resultassem do querer do legislador ordinário.

É dizer: se à lei fosse dado dispor que o Executivo disciplinaria, por regu­lamento, tal ou qual liberdade, o ditame assecuratório de que ninguém será obri­gado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei perderia o caráter de garantia constitucional, pois o administrado seria obrigado a fazer ou dei­xar de fazer alguma coisa ora em virtude de regulamento, ora de lei, ao líbito do Legislativo, isto é, conforme o legislador ordinário entendesse de decidir. É óbvio, entretanto, que, em tal caso, este último es­taria se sobrepondo ao constituinte e sub­vertendo a hierarquia entre Constituição e lei, evento juridicamente inadmissível em regime de Constituição rígida.

Aliás, note-se, nem mesmo por “lei delegada” seria possível ao Executivo re­gular direitos individuais, ante a vedação explícita do art. 68, III, o qual embarga que tal matéria seja objeto da referida espécie legislativa.

12. Por tudo quanto se expôs, resulta óbvio que são inconstitucionais as dis­posições regulamentares produzidas na conformidade de delegações disfarçadas, resultantes de leis que meramente transfe­rem ao Executivo o encargo de disciplinar o exercício da liberdade e da propriedade das pessoas. Tal perigoso vício é especial­mente vitando e contra ele adverte Pontes de Miranda, ao averbar: “Se o Poder Le­gislativo deixa ao Poder Executivo fazer lei, delega; o poder regulamentar é o que se exerce sem criação de regras jurídicas que alterem as leis existentes e sem alte­ração da própria lei regulamentada… Nem o Poder Executivo pode alterar regras jurídicas constantes de lei, a pretexto de editar decretos para a sua fiel execução, ou regulamentos concernentes a elas, nem tal atribuição pode provir de permissão ou imposição legal de alterar regras legais ou estendê-las ou limitá-las … Onde o Exe­cutivo poderia conferir ou não direitos, ou só os conferir segundo critério seu ou parcialmente seu, há delegação de poder” (ob. e v. cits., pp. 312 e 313).

Mesmo que não o faça com precisão capilar, a lei tem que caracterizar o direito ou a obrigação, limitação, restrição que nela se contemplem, tanto como o enun­ciado dos pressupostos para sua irrupção e os elementos de identificação dos desti­natários da regra, de sorte que, ao menos, a compostura básica, os critérios para seu reconhecimento estejam de antemão fornecidos. Assim, o espaço regulamentar conter-se-á dentro destas balizas professa­damente enunciadas na lei.

Na delegação feita indiretamente justamente faltam estas especificações, pois se pretende, ao arrepio da Constitui­ção, liberar o Executivo para compô-las, ficando-lhe concedido como que um cheque em branco, a ser preenchido por via regulamentar. E isto, evidentemente, não é tolerado pela Constituição. Seria de absoluta inanidade o preceituado nos artigos insistentemente referidos se houvesse tolerância para com práticas do gênero, e os objetivos do Estado de Direito, que foram tão zelosamente res­guardados na Lei Magna, soçobrariam por inteiro. Interpretação que ignorasse as limitações mencionadas contrariaria a sábia advertência de Carlos Maximilia­no, o sumo mestre brasileiro em tema de hermenêutica, assim expressada: “Deve o Direito ser interpretado inteligentemente, não de modo a que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou im­possíveis” (Interpretação e Aplicação do Direito, 2a ed., Ed. da Livraria do Globo, 1933, p. 183).

Com efeito, seria um absurdo e afrontoso à inteligência supor que a Constituição estabeleceu mecanismos tão cautelosos para defesa de valores ciosamente postos a bom recato os quais, entretanto, seriam facilmente reduzidos a nada graças ao expediente singelo das delegações procedidas indiretamente. É que, como disse o precitado Geraldo Ataliba, em frase altamente sugestiva: “Ninguém construiria uma fortaleza de pedra, colocando-lhe portas de papelão”.

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* Nas Constituições dos países do Continente europeu não há dispositivos de equivalente amplitude. Por razões históricas e por tradição constitucional, neles, os regulamentos têm um âmbito de disposição muitíssimo maior do que no Direito brasileiro. É que nossa feição constitucional, a partir de 1891, não se inspirou nas Constituições dos países europeus continentais, permissivos de maior latitude das competências regulamentares do Executivo, mas no modelo norte-americano, refletindo, pois, em última instância, tal como este, a mesma preocupação do Direito inglês, notoriamente defensiva da liberdade e propriedade dos indivíduos. Daí resulta que estas só por lei podem ser afetadas. Então, não é difícil perceber que as citações colhidas em doutrinadores da Europa Continental aplicam-se com muito maior exatidão ao caso brasileiro do que aos países de origem dos doutrinadores alienígenas colacionados.

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