Taís Mariana Lima Pereira
é mestranda em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
Especialista em Direito Administrativo pelo
Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar (Curitiba). Advogada.
Vladmir Oliveira da Silveira
é professor titular da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)
e Docente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Advogado.
A premência da expansão e melhoria dos serviços públicos de saneamento básico no Brasil já eram objeto de reivindicações e debates há alguns anos, mas este movimento se intensificou com a recente entrada em vigor do Novo Marco Legal do Saneamento (Lei nº 14.026/2020).[i]
Todavia, o crescente interesse nas questões sobre saneamento básico não se deu apenas em âmbito nacional. Esse breve artigo tem como objetivo chamar a atenção dos leitores – especialmente daqueles que se dedicam ao direito administrativo – sobre um fato muitas vezes esquecido: a construção de conceitos, paradigmas e metas de que se vale o direito interno também se dá na esfera internacional.
O saneamento é objeto de estudos e esforços de diversos órgãos da Organização das Nações Unidas (ONU) há quase duas décadas. Por meio de resoluções do Conselho de Direitos Humanos e da Assembleia Geral da ONU, a comunidade internacional logrou estabelecer standards de proteção em matéria de saneamento e reconhecer este serviço como essencial à dignidade humana e, portanto, um direito humano.[ii]
O Novo Marco Legal do Saneamento brasileiro dialoga parcialmente com a normativa internacional sobre a matéria. Os princípios e objetivos do saneamento básico dispostos nos artigos 2º e 49 da Lei nº 14.026/2020 são os pontos de maior conexão e diálogo entre as fontes nacionais e internacionais. Nesse sentido, nota-se que a universalização dos serviços de saneamento básico é um dos princípios norteadores da política pública brasileira de saneamento, e é também o grande objetivo estabelecido pela comunidade internacional quanto a esta matéria (Objetivo de Desenvolvimento Sustentável – ODS 6).[iii]
O legislador brasileiro, entretanto, descuidou ao deixar de inserir algum dispositivo na Lei nº 14.026/2020 que de forma expressa e indene de dúvidas assegurasse o acesso ao saneamento como um direito transindividual. Assim, o saneamento no Brasil segue sendo tratado exclusivamente pela perspectiva dos serviços públicos, quando dada a sua importância também deveria ser analisado pelo viés dos direitos transindividuais e fundamentais – não se olvidando, obviamente, que neste caso seria necessária uma emenda constitucional.[iv]
A pretensão de reconhecimento de um status normativo superior ao direito ao saneamento em âmbito nacional, tal como se deu no internacional, não consiste num mero detalhe supérfluo. Tal reconhecimento de forma expressa tem o potencial para influenciar de modo decisivo a interpretação sobre diversas questões recorrentes nessa seara: descontinuidade do fornecimento do serviço no caso de não pagamento das tarifas, regiões e tipos de investimento que devem ser priorizados, padrões de qualidade e todos os aspectos da relação entre o poder público concedente e a concessionária do serviço, seja pública ou privada.
Por outro lado, é merecedora de destaque positivo a preocupação externada na Lei nº 14.026/2020 com a dimensão ambiental na prestação dos serviços de saneamento, em consonância com compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.[v] O Novo Marco Legal, portanto, trouxe importantes inovações nesse sentido, a exemplo do incentivo à pesquisa para desenvolvimento de tecnologias mais apropriadas, fomento ao reúso de efluentes sanitários e aproveitamento das águas da chuva.
Pensar o saneamento para além das fronteiras brasileiras, no intuito de estabelecer um efetivo diálogo internacional, consiste em tarefa da qual não podemos nos furtar. A importância do saneamento para a saúde humana e ambiental, ainda mais presente num contexto de globalização de êxitos e de riscos para a humanidade[vi] – a exemplo da pandemia do Covid-19 –, demanda a busca por soluções conjuntas num verdadeiro espírito cooperativo entre nações. [vii]
[i] BRASIL. Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020. Atualiza o marco legal do saneamento básico […]. Brasília: Diário Oficial da União, 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L14026.htm#art7>. Acesso em: 05 set. 2020.
[ii] Nesse sentido ver a Resolução A/RES/74/141 da Assembleia Geral da ONU, bem como o histórico de resoluções anteriores nela constante (ONU, Organização das Nações Unidas. Resolución aprobada por la Asamblea General el 18 de diciembre de 2019 74/141: Los derechos humanos al agua potable y al saneamiento. Nova Iorque: ONU, 2020. Disponível em: <https://digitallibrary.un.org/record/3848951?ln=en>. Acesso em: 25 jan. 2021).
[iii] ONU, Organização das Nações Unidas. Objetivo 6: Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas e todos. ONU, [s.d.]. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/pos2015/ods6/>. Acesso em: 25 jan. 2021.
[iv] MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito de acesso à água. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 24.
[v] SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; PEREIRA, Taís Mariana Lima. Uma nova compreensão dos direitos humanos na contemporaneidade a partir dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Revista Jurídica Cesumar, Maringá, v. 18, n. 3, p. 909-931, set./dez. 2018. Disponível em: <https://periodicos.unicesumar.edu.br/index.php/revjuridica/article/view/6942/3322>. Acesso em: 25 jan. 2021.
[vi] BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. São Paulo: 34, 2011, p. 23-61.
[vii] HÄBERLE, Peter. Estado constitucional cooperativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 70-71.