De início, as sociedades de economia mista não faziam jus à imunidade tributária ou ao regime de precatórios em razão da qualificação jurídica. Havia o consenso de que, diante da personalidade jurídica de direito privado, existia a exploração de atividade econômica e o intuito lucrativo.
Porém, houve uma mudança na interpretação no que tange às sociedades de economia mista em geral e, posteriormente, em relação às companhias estaduais de saneamento. O Supremo Tribunal Federal (STF) passou, de fato, a estender-lhes algumas prerrogativas próprias da Fazenda Pública, nomeadamente a imunidade tributária recíproca e o regime de precatórios para pagamento das condenações judiciais.
Em sede das ADPF nºs 556/RN, 387/PI e 437/CE e da ACO 2730, o STF, considerando as balizas do julgamento do RE 253.472, definiu a possibilidade de se conferir às referidas sociedades essas prerrogativas, desde que haja a prestação do serviço público (em oposição à exploração de atividade econômica), sem intuito lucrativo e a empresa esteja atuando em um ambiente não concorrencial.
No entanto, essa posição foi firmada antes do advento da Lei nº 14.026/2020, conhecida como Novo Marco Legal do Saneamento Básico. Com efeito, esse marco legal, dentre outras modificações no regime jurídico do saneamento, trouxe mudanças no modelo que prestigiava a execução de serviços pelas companhias estatais sem concorrência, através da celebração de contratos de programa com os respectivos municípios.
A celebração dos contratos de programa é agora expressamente proibida, como se observa da atual redação do artigo 8º, §1º, I e II, e artigo 10, caput, e §3º, da Lei nº 11.445/2007, bem como o artigo 13, § 8º, da Lei nº 11.107/2005, com as alterações introduzidas pelo marco legal. É necessário, a partir de então, que o serviço de fornecimento de água e esgotamento sanitário, para ser concedido às empresas estatais ou à iniciativa privada, seja objeto de prévia licitação, na forma do artigo 175 da Constituição Federal.
Sobre o assunto, eis as lições dos professores Alexandre Santos de Aragão e Rafael Daudt D´Oliveira[1]:
A disciplina até então vigente era a da possibilidade genérica de prestação do serviço de saneamento por meio de contratos de programa celebrados entre os titulares e empresas estatais estaduais sem licitação.
A nova lei impõe aos titulares dos serviços a necessidade de celebração de contrato de concessão, pela licitação, para a prestação dos serviços públicos de saneamento básico por entidade que não integre a administração do titular, sendo “vedada a sua disciplina mediante contrato de programa, convênio, termo de parceria ou outros instrumentos de natureza precária” (novo art. 10 da Lei nº 11.445/2007). É uma mudança de paradigma: a lei prevê agora a obrigatoriedade de concorrência, por meio da licitação, para a seleção da proposta mais vantajosa para a prestação dos serviços de saneamento básico, obrigando as empresas estatais do setor a competir em igualdade de condições com as empresas privadas por esses contratos. (original sem destaques).
Pois bem. Além de vedar a celebração de contratos de programa e impor a realização de licitação (disputa entre os interessados na execução do serviço), o Marco Legal do Saneamento também prestigiou, em diversas ocasiões, a concorrência e a competitividade na escolha do prestador dos serviços, na definição da regulação setorial e na política federal de saneamento, conforme alterações da Lei nº 14.026/2020 (art. 2º, X; art. 4º-A, § 3º, II; art. 22, III; e art. 49, XV, da Lei nº 11.445/2007).
Inclusive, no julgamento da ADI 6.492/DF pelo STF, que reconheceu a constitucionalidade do Marco Legal do Saneamento, deixou-se claro que houve uma verdadeira mudança de paradigma para um modelo concorrencial. O Ministro Luiz Fux, quanto a esse aspecto, explicou que a nova legislação instituiu um regime de concorrência para o mercado e não de concorrência no mercado, senão vejamos:
Reitero: concorrência para os mercados, uma vez que a concorrência nos mercados – correspondente ao senso comum de “livre concorrência” – é indesejável para o setor de monopólio natural. Nesse particular, o processo de licitação corresponde ao momento em que o Poder Público interessado pode analisar as variáveis tecnológicas, a evolução dos fatores de produção e a relação de custo-benefício de cada player que se habilita. (original sem destaques).
Tendo em conta que o saneamento básico é um monopólio natural[2], a competição entre os agentes do mercado deve se dar, realmente, antes da prestação dos serviços, através de uma disputa (licitação) para obtenção da concessão do serviço, na qual poderá se consagrar vencedor aquela empresa que oferecer a melhor proposta, como, por exemplo, aquela que garanta a menor tarifa dos usuários (modicidade tarifária), o que, inclusive, já ocorre há décadas com o serviço público de transmissão de eletricidade.
Embora a transmissão de energia elétrica seja um monopólio natural, o artigo 17 da Lei nº 9.074/95, de maneira similar ao Marco Legal do Saneamento, estabeleceu que as instalações de transmissão de energia elétrica componentes da rede básica serão objeto de concessão, mediante licitação, na modalidade de concorrência ou de leilão. Este modelo foi responsável por grandes deságios em benefício dos usuários (modicidade tarifária) e incorpora o pensamento crítico do professor de economia Harold Demsetz, em artigo intitulado “Why Regulate Utilities?”, publicado no Journal of Law and Economics da Universidade de Chicago[3],que parece que também serviu de inspiração ao legislador no Marco Legal do Saneamento (Lei nº 14.026/2020). Tem-se, portanto, a instituição da regulação contratual (regulation by contract) que estabelece um ambiente competitivo (competition for the market) na fase antecedente (ex ante) à concessão do serviço público monopolista.
Perceba-se que, independentemente de se estar diante do setor elétrico ou de saneamento, o fato é que a jurisprudência, ao conferir às sociedades de economia mista benefícios não extensíveis aos demais competidores na disputa pelo mercado, cria uma posição de vantagem competitiva inaceitável e, assim, afasta a igualdade de condições. Isso porque a proposta apresentada pela companhia estatal deixará de considerar os custos com impostos abrangidos pela imunidade sobre suas receitas e ativos, bem como levará em conta a postergação de pagamentos, em razão do regime de precatórios, o que, em última análise, significa menor impacto no fluxo de caixa e uma maior disponibilidade de recursos. Tem-se, portanto, uma evidente desvantagem na concorrência para os demais atores do mercado de saneamento básico ao apresentarem uma proposta numa eventual licitação.
No entanto, não se pode ignorar a alteração trazida pelo Marco Legal do Saneamento e, desse modo, continuar adotando uma interpretação firmada quando as empresas estaduais de saneamento ainda não disputavam com a iniciativa privada o mercado de saneamento. Portanto, a partir do advento da Lei nº 14.026/2020, a possibilidade de as companhias estaduais de água e esgoto usufruírem dos benefícios da Fazenda Pública deve ser afastada pela jurisprudência, uma vez que um dos requisitos exigidos pelo próprio STF não está mais presente no modelo setorial, que é justamente a atuação em um ambiente sem concorrência com outros players, sob pena de criar uma desigualdade de competição.
É de se referir, igualmente, que até mesmo a atuação normativa do agente regulador (ANA) fica comprometida se for mantida a orientação quanto à aplicação das prerrogativas da Fazenda Pública às companhias estaduais. Isso porque o Marco Legal do Saneamento estabelece que as normas de referência para a regulação dos serviços públicos deverão “estimular a livre concorrência, a competitividade, a eficiência e a sustentabilidade econômica na prestação dos serviços” (art. 4º-A, § 3º, II, da Lei nº 11.445/2007). Essas imposições legais que recaem sobre o regulador (ANA), entretanto, “somente poderão ser cumpridas por meio do estabelecimento de tratamento tributário semelhante entre os interessados, o que não ocorre, por exemplo, nas diferenças na aplicação da imunidade tributária, na linha da jurisprudência do STF”.[4]
Nem se diga que é possível equalizar as propostas apresentadas pelos diferentes participantes da licitação ou neutralizar as prerrogativas da Fazenda Pública, porque não se pode antever com precisão quais serão os ativos necessários à expansão do sistema de saneamento ou quais serão as receitas obtidas pelas empresas e, consequentemente, a carga tributária. E pior ainda seria a tentativa de equalizar o benefício do pagamento via precatórios. É evidente que qualquer expressão matemática não refletiria a realidade e o impacto dessa medida na disputa pela concessão pública, diante da enorme quantidade de variáveis aplicáveis.
Há, ainda, uma presunção que precisa ser melhor explorada e eventualmente enfrentada nos julgados que estendem os benefícios do erário às companhias estaduais de saneamento. Trata-se da ideia de que a maioria das companhias estaduais presta serviço público sem intuito primário de obter lucro. No entanto, muitas dessas companhias possuem resultados bastante positivos e incrementam o patrimônio do Estado, dos demais acionistas e de seus administradores. Ora, o simples fato de o maior acionista ser o Poder Público[5], não afasta, em todos os casos, o intuito lucrativo. Inclusive, é no mínimo questionável essa percepção, que parte do pressuposto de que os Estados ainda hoje seriam levados ou forçados a prestar o serviço público, quando há inúmeros interessados na disputa (competição) pelo mercado de saneamento.
Enfim, a eventual existência de um ambiente sem concorrência não pode ser analisada apenas sob a ótica do monopólio natural (exclusividade na prestação dos serviços). É preciso também observar se as benesses decorrentes da supremacia do interesse público produzem desigualdades de condições numa competição pelo mercado, que agora o Poder Público deverá disputar de igual para igual com a iniciativa privada.
Nota-se, desse modo, que é exigido ao operador do direito um cuidado redobrado na aplicação dos precedentes da Suprema Corte, estando atento à nova realidade do setor de saneamento até que a jurisprudência reflita criticamente sobre a mudança de paradigma mediante a técnica de overriding[6], assegurando, assim, que o regime concorrencial (competition for the market) não se torne letra morta, por meio de uma negativa de vigência da legislação federal.
Alcino Luís Souto Martins
Advogado com mais de 10 anos de atuação no setor de energia e infraestrutura.
Pós-graduado em Direito da Energia Elétrica pela Uniceub e
Mestre em Economia e Gestão Ambiental pela Faculdade de Economia do Porto (FEP/UPorto).
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Notas
[1] DE ARAGÃO, Alexandre Santos; D´OLIVEIRA, Rafael Daudt. Considerações Iniciais sobre a Lei nº 14.026/2020 – Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico. In: GUIMARÃES, Fernando Vernalha (Coord.). O novo direito do saneamento básico: estudos sobre o novo marco legal do saneamento básico no Brasil (de acordo com a Lei nº 14.026/2020 e respectiva regulamentação). Belo Horizonte: Fórum, 2022, ISBN 978-65-5518-299-6.
[2] No monopólio natural, um único agente consegue produzir ou prestar os serviços a custos inferiores do que se houver vários agentes a produzir ou prestar os serviços. Portanto, a representativa economia de escala e de escopo em relação ao mercado explicam a existência de monopólios naturais. Isso significa que os custos são decrescentes (economia de escala) e há a impossibilidade física de existir mais de uma empresa na prestação do serviço.
[3] DEMSETZ, H. ‘Why Regulate Utilities?‘, Journal of Law and Economics, XI, April, 55-65. INTERNATIONAL LIBRARY OF CRITICAL WRITINGS IN ECONOMICS, 1998, 94: 229-239. Acesso em 05/06/2020 e disponível em: https://www.sfu.ca/~wainwrig/Econ400/documents/demsetz68-JLE-utilities.pdf
[4] SOUZA, Clara Rocha et al. O novo Marco Legal do Saneamento e seus potenciais efeitos tributários: Uma primeira análise a partir da Lei nº 14.026/2020. Acesso em 05/09/2022 e disponível em: https://www.jota.info/login?redirect_url=https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-novo-marco-legal-do-saneamento-e-seus-potenciais-efeitos-tributarios-04082020
[5] Inclusive, em regra, o maior acionista é justamente um Ente da Federação que não detém a titularidade do serviço público e, portanto, não estaria constitucionalmente obrigado a executá-lo.
[6] O overriding ocorre quando o “tribunal apenas deseja limitar o âmbito de incidência de um precedente em razão da superveniência de outra regra ou princípio legal. Aqui não há revogação por completo ou substituição por outro precedente” (DONIZETTI, Elpídio. Curso Didático de Direito Processual Civil. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 1290).
Pedro Silvestre Pereira disse:
Excelente artigo !