Uma análise dos efeitos jurídicos decorrentes da multiparentalidade sob a ótica do princípio da afetividade

3 de outubro de 2022

Coluna Direito Civil

O Direito das Famílias atual experimentou profundas alterações com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Os valores introduzidos pela atual Carta Magna representaram um verdadeiro giro de Copérnico quer neste segmento, quer no Direito Civil. A aplicação dos direitos fundamentais às relações inter privadas proporcionou uma leitura dos institutos do direito privado sob o filtro da Constituição da República, destacando-se, de imediato, a eleição do princípio da dignidade da pessoa humana como pedra angular do ordenamento jurídico brasileiro.

O instituto da filiação não ficou imune ao novo cenário. Abandonar o ideal da legitimidade filiatória baseada no “pater is est” foi inevitável às relações parentais. Mesmo a filiação biológica, paulatinamente difundida, tornou-se inapta a fundamentar os vínculos paterno-filiais, perceptivelmente regidos por outros valores. Esse modelo científico desprezava uma verdade fundamental: a construção permanente dos laços afetivos.

Ao passar por essas transformações a família valorou um aspecto anteriormente relegado ao esquecimento: a afetividade. O afeto passou a servir de parâmetro para a definição dos vínculos parentais, um verdadeiro elemento identificador das entidades familiares. Segundo Calderón (2013), no decorrer da modernidade, o espaço conferido à afetividade alargou-se e verticalizou-se a tal ponto que já era possível sustentá-la como vetor das relações pessoais.

Deste modo, não foi raro observar nas relações paterno/materno-filiais a paulatina ocorrência da concomitância entre as filiações biológica e a socioafetiva, alicerçada na posse de estado de filho. Ante a possibilidade de coexistência entre ambas, é que surgiu a multiparentalidade, um fenômeno jurídico com fundamento nas concepções da socioafetividade, constituído por múltiplos pais, isto é, a relação de paternidade ou maternidade múltipla impulsionada pela dinâmica das novas relações parentais.

O estabelecimento de dois vínculos parentais representa uma quebra de paradigmas no direito de filiação na medida em que equipara os vínculos familiares e enseja a simultaneidade do exercício de direitos e deveres parentais, acarretando, deste modo, uma série de questionamentos, entre eles: quais são os efeitos jurídicos aplicáveis ao reconhecimento da multiparentalidade? Qual a principiologia aplicável à espécie? Todos esses questionamentos são respondidos a partir de uma análise crítica do instituto e do leading case decidido pelo Supremo Tribunal Federal.

Anteriormente, os tribunais brasileiros entendiam que a coexistência de duas filiações (socioafetiva e biológica) obrigavam a preponderância de uma sobre a outra, rejeitando-se a sua concomitância. Como bem expõe Karina Barbosa Franco (2021, p. 83), de um lado tínhamos “uma corrente que indicava a prevalência da relação parental afetiva, vivenciada pelas partes, sobre o vínculo biológico”, e a outra corrente “sustentava que, mesmo diante de uma relação socioafetiva consolidada, deveria predominar o vínculo parental biológico sobre o socioafetivo”.

Essa rígida posição pode ser claramente observada no julgamento da Apelação Cível nº 70027112192, pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na qual se afirmou como juridicamente impossível o pedido do autor de ser reconhecida a paternidade socioafetiva sem afastar o liame parental em relação ao pai biológico. Na oportunidade, o tribunal consignou que “ninguém poderia ser filho de dois pais” (TJRS; Apelação Cível 70027112192, Oitava Câmara Cível, Rel. Des. Claudir Fidélis Faccenda, julgado em 02.04.2009).

No entanto, a discussão da temática passou a crescer nos tribunais pátrios até chegar ao Supremo Tribunal Federal no ano de 2016. O acórdão de origem reconheceu a dupla parentalidade com o consequente reconhecimento dos efeitos jurídicos decorrentes, o que ensejou a interposição do Recurso Extraordinário 898.060/SC, que teve a sua repercussão geral reconhecida (Tema nº 622).

O Excelso Pretório reconheceu a multiparentalidade no julgamento do recurso extraordinário e fixou a seguinte tese de repercussão geral: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento de vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.

A fixação da tese possibilitou a extração das seguintes consequências: a adoção da afetividade como princípio, tendo em vista as novas concepções das relações sociais; a proibição de redução do conceito de família a um modelo preestabelecido e o próprio reconhecimento da multiparentalidade como instituto jurídico.

Indubitavelmente, a decisão do Supremo Tribunal Federal tem fundamento na nova ordem constitucional inaugurada, principalmente em razão do protagonismo fundamental atribuído à Constituição Federal que verdadeiramente alçou os direitos fundamentais a filtro do sistema jurídico, propiciando uma nova roupagem ao ordenamento jurídico brasileiro, especialmente ao direito privado.

A posição assumida pelos julgadores no RE 898.060/SC demonstra que eles encetaram uma interpretação à luz dos vetores axiológicos da dignidade da pessoa humana, da paternidade responsável e da afetividade, atribuindo ao direito de família um novo florescer, despindo-o do modelo de caráter patrimonializado das relações civis anteriormente adotado para revestir-se de novos valores advindos do princípio da dignidade da pessoa humana.

Do cerne da dignidade humana, o direito à busca da felicidade se apresenta de suma importância, pois compele o Estado a se abster de adotar qualquer medida que vise tão somente às suas finalidades, mas priorize o bem-estar e os objetivos de vida pessoal de cada indivíduo em detrimento do querer estatal. Como bem destacam Luiz Edson Fachin e Christine Peter “esses vetores devem tanto informar a hermenêutica constitucional quanto a interpretação conforme a constituição” (2022, p. 34).

Além do mais, o decisum deu enfoque à juridicidade da afetividade, escolhendo-a como coadjuvante da constituição das relações familiares e parentais. O elemento intersubjetivo do afeto assume o lugar da verdade biológica, que tinha posição quase absoluta, restabelecendo e atribuindo um novo significado à parentalidade, denominando-a de parentalidade socioafetiva, em que tem como precípuo elemento configurador a afetividade. A definição da posse de estado de filho e da parentalidade socioafetiva têm substrato na afetividade, visto que à verdade social se atribui uma consequência no mundo jurídico.

Após apresentarmos um recorte rápido da principiologia aplicada à multiparentalidade, é imprescindível frisarmos que, embora tenha sido de grande importância e relevância social, a decisão do STF não conseguiu delimitar os efeitos e os limites da multiplicidade de vínculos filiatórios. Quais são os efeitos jurídicos decorrentes do reconhecimento da multiparentalidade?

Os efeitos jurídicos, delimitados no âmbito do direito das famílias e sucessões, podem ser divididos em dois grupos: de ordem pessoal e de ordem patrimonial. São da primeira ordem os direitos e deveres relativos ao nome e ao exercício da guarda e convivência; por outro lado, são da segunda ordem os relativos à obrigação alimentar e ao direito sucessório. Analisar-se-ão, um por um, logo a seguir.

A atribuição do patronímico é direito fundamental, decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana. Desta forma, aplicando o princípio da isonomia entre a parentalidade biológica e socioafetiva, não há impedimento à utilização de mais de um nome no registro de nascimento do filho afetivo.

A obrigação alimentar, por sua vez, tem regulamentação expressa no art. 1.694 do CC e tem na relação de parentesco o fato gerador para o cumprimento da obrigação. No entanto, no modelo pluriparental de filiação, alguns questionamentos a respeito do cumprimento da obrigação alimentar surgem naturalmente: com a coexistência dos vínculos filiatórios (biológico e socioafetivo), a quem se deve pedir os alimentos? O valor da prestação alimentar pode ser fracionado, atribuindo-se a cada genitor uma quota-parte?

Ao admitir o reconhecimento da multiparentalidade, a Suprema Corte brasileira consignou de forma clara que não há hierarquia entre os vínculos filiatórios. Por esta razão, não há que se pensar em preferência no momento de pleitear a prestação alimentar, tenha o vínculo a origem biológica ou socioafetiva. Aliás, ressalte-se que não há no ordenamento jurídico qualquer vedação ao acúmulo de prestações alimentares, desde que o seu pleito esteja fundamentado nos pressupostos de necessidade x possibilidade e avaliado, no caso concreto, a real necessidade do filho em receber as pensões.

A última reflexão trata sobre a possibilidade de fracionamento do pedido de prestação alimentar: cada genitor é responsável por sua quota-parte? Bem, o Código Civil permite que o alimentando opte por buscar o cumprimento da obrigação alimentar de forma fracionada ou, sendo viável, demandar apenas um coobrigado e este chamar os outros devedores para integrar a lide.

Apesar da permissão, a doutrina especializada se posiciona contrariamente a essa modalidade de cumprimento da obrigação alimentar, visto que

Embora seja possível o fracionamento da obrigação alimentar, na prática, não se recomenda a divisão das necessidades do alimentado entre várias pessoas, pois, em tese, poder-se-ia aumentar o risco de inadimplemento, em seu prejuízo. Assim, convém rememorar o caráter de fundamentalidade que envolve o direito aos alimentos. De fato, havendo possibilidade de algum dos pais arcar com a obrigação em sua integralidade, sem prejuízo ao seu próprio sustento e de sua família, com o fim de que esta não seja fracionada, podendo gerar, pela parte dos outros, inadimplemento e pela parte do alimentado, insegurança e imprevisibilidade, deverá fazê-lo.” (MATOS; SANTOS, 2019, p. 42).

Tratar sobre a guarda e o direito de convivência na multiparentalidade, igualmente, não é um estorvo. O regime de convivência a ser designado deve ser sempre o compartilhado, sendo o seu fundamento primordial o princípio do melhor interesse da criança ou adolescente.

A vertente supramencionada não é uníssona na doutrina, encontrando em Fabíola Albuquerque Lobo o posicionamento dissonante quando se trata de multiplicidade de vínculos parentais. Para a autora, “se o número de litígios biparentais abarrotam as varas de família, imagine-se a potencialização de demandas judiciais, provenientes dos vínculos pluriparentais concorrentes”, ao que conclui que “a guarda compartilhada na multiparentalidade se apresenta inadequada diante das condições fáticas e desarrazoadas que podem advir com a medida” (2021, p. 89-90).

A biparentalidade não está imune à alta litigiosidade e a inevitável ausência de diálogo entre os componentes. Destoando do posicionamento da doutrinadora, entendemos que o exercício da autoridade parental pelos pais, sejam afetivos ou biológicos, atende ao que dispõe o princípio da afetividade e o melhor interesse da criança, pois respeita a continuidade das relações da criança com ambas as filiações, porventura encontrando na disseminação do estímulo ao diálogo, se assim for necessário, a solução para sanar os empecilhos que surgem no caso concreto.

Recai, por fim, a análise dos efeitos sucessórios aplicados aos múltiplos vínculos parentais. A sucessão causa mortis, nestes casos, impulsionou um novo olhar a temática, visto que a codificação civil, instituída para um modelo biparental, precisa se adequar à situação fática da pluriparentalidade, resultando, deste modo, a busca por soluções as demandas que daí surgirem.

As seguintes hipóteses merecem especial atenção: a divisão da herança na concorrência do de cujus com ascendentes de primeiro grau (pai/mãe); a divisão do espólio quando o falecido não deixar descendentes, observando-se, neste caso, a ordem de vocação hereditária.

Imagine, neste último caso, que José faleceu e deixou uma farta herança. O falecido não tinha filhos nem cônjuge ou companheira, restando apenas três ascendentes de primeiro grau (Rosalina, João e Francisco). A codificação civil atual não previu solução legal para esta configuração, cabendo à doutrina solucionar o impasse.

De um lado, doutrinadores como Carvalho e Coelho (2017) entendem que nesta hipótese deve ser aplicado o que dispõe o §2º do art. 1.836 do Código Civil, ou seja, a partilha ocorreria em linhas: caberia 50% à linha paterna e 50% à linha materna. No exemplo citado, caberia metade para Rosalina e a outra metade para João e Francisco, cabendo 25% para cada ascendente.

Contudo, há posicionamento dissonante. Outra parte da doutrina entende que deve ser aplicada a regra disposta no art. 1.835 do Código Civil, cabendo a divisão por cabeças. Neste caso, Rosalina, João e Francisco receberiam, individualmente, um terço da herança a ser partilhada. Franco e Calderón afirmam “que hodiernamente não é mais recomendável falar-se em linhas paternas e maternas, posicionamento amplamente adotada pela maior parte da doutrina” (2021, p. 96).

Por outro lado, em se tratando da partilha do cônjuge com os ascendentes de primeiro grau, dispõe o art. 1.837 do Código Civil que ao cônjuge tocará um terço da herança, cabendo-lhe a metade deste se houver um só ascendente, ou se maior for aquele grau.

Em filiações pluriparentais há doutrinadores, como SCHREIBER e LUSTOSA (2016, p. 862), que entendem que a herança deve ser repartida em parte iguais, cabendo ao cônjuge e aos descendentes o recebimento de partes iguais. Em sentido diverso, Karina Barbosa Franco defende que ao cônjuge ou companheiro deve ser mantida a quota diferenciada, conforme o disposto no art. 1.837 do Código Civil, posição também nos filiamos, por entendermos que com isto não caracterizaria nenhuma forma de tratamento discriminatório, mas ao contrário, o pleno cumprimento do dispositivo legal (2019, p. 269).

Caro leitor, como visto, as implicações decorrentes do reconhecimento da filiação socioafetiva se apresentam de extrema relevância científica, uma vez que a ausência de normatização legal e a complexidade da vida impõem ao operador do direito uma verificação mais apurada e cuidadosa de cada caso em concreto a ele posto para análise.

Apesar da ressalva, ao vínculo socioafetivo não se impõe nenhum traço hierárquico ou diferenciador, assegurando-se igualdade em direitos e deveres decorrentes do reconhecimento dessa forma de filiação, sejam de ordem pessoal ou patrimonial, cumprindo, portanto, o mandamento constitucional da igualdade.

 


Jardel Ribeiro Ferreira
Advogado;
Pós-graduado em
Direito das Famílias e Sucessões
(CESMAC)

 


Karina Barbosa Franco
Mestre em Direito Público (UFAL);
Advogada, Professora de Direito das Famílias e Sucessões.
Membro-Associado do Instituto Brasileiro de Direito de Famílias (IBDFAM);
Pesquisadora do CONREP/UFPE

 

 

 

 

REFERÊNCIAS
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível 70027112192, Oitava Câmara Cível, Rel. Des. Claudir Fidélis Faccenda, julgado em 02.04.2009).
CALDERÓN, Ricardo. Princípio da afetividade no direito de família. Rio de Janeiro: Renovar, 2013.
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de; COELHO, Luiz Cláudio Guimarães. Multiparentalidade e herança: alguns apontamentos. Revista IBDFAM: famílias e sucessões, Belo Horizonte, n. 19, p. 11-24, jan./fev. 2017.
FACHIN, Luiz Edson; SILVA, Christine Peter da. A constituição do Direito Civil da coexistência: ideias reunidas a partir de um reflexo da jurisdição constitucional em direito de família. In: EHRHARDT JÙNIOR, Marcos (Coord.). Direito Civil: Futuros Possíveis. Belo Horizonte: Fórum, 2022.
FRANCO, Karina Barbosa. Multiparentalidade: uma análise dos limites e efeitos jurídicos práticos sob o enfoque do princípio da afetividade. Belo Horizonte: Fórum, 2021.
FRANCO, Karina Barbosa; CALDERÓN, Ricardo. Multiparentalidade e efeitos sucessórios: efeitos, possibilidades, limites. In: TEXIEIRA, Ana Carolina Brochado; NEVARES, Ana Luiza. Direito das sucessões: problemas e tendências. Indaiatuba: Editora Foco, 2022.
MATOS, Ana Carla Harmatiuk; SANTOS, Gabriel Percegona. Efetividade dos alimentos na multiparentalidade. Revista IBDFAM, Belo Horizonte, IBDFAM, v. 32, mar./abr. 2019.
LOBO, Fabíola Albuquerque. Multiparentalidade: efeitos no direito de família. Indaiatuba, São Paulo: Foco, 2021.
SCHREIBER, Anderson; LUSTOSA, Paulo Franco. Efeitos jurídicos da multiparentalidade. Pensar Revista de Ciência Jurídicas, Fortaleza, v. 21, n. 3, p. 847-873, set./dez. 2016.

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