O Direito das Famílias atual experimentou profundas alterações com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Os valores introduzidos pela atual Carta Magna representaram um verdadeiro giro de Copérnico quer neste segmento, quer no Direito Civil. A aplicação dos direitos fundamentais às relações inter privadas proporcionou uma leitura dos institutos do direito privado sob o filtro da Constituição da República, destacando-se, de imediato, a eleição do princípio da dignidade da pessoa humana como pedra angular do ordenamento jurídico brasileiro.
O instituto da filiação não ficou imune ao novo cenário. Abandonar o ideal da legitimidade filiatória baseada no “pater is est” foi inevitável às relações parentais. Mesmo a filiação biológica, paulatinamente difundida, tornou-se inapta a fundamentar os vínculos paterno-filiais, perceptivelmente regidos por outros valores. Esse modelo científico desprezava uma verdade fundamental: a construção permanente dos laços afetivos.
Ao passar por essas transformações a família valorou um aspecto anteriormente relegado ao esquecimento: a afetividade. O afeto passou a servir de parâmetro para a definição dos vínculos parentais, um verdadeiro elemento identificador das entidades familiares. Segundo Calderón (2013), no decorrer da modernidade, o espaço conferido à afetividade alargou-se e verticalizou-se a tal ponto que já era possível sustentá-la como vetor das relações pessoais.
Deste modo, não foi raro observar nas relações paterno/materno-filiais a paulatina ocorrência da concomitância entre as filiações biológica e a socioafetiva, alicerçada na posse de estado de filho. Ante a possibilidade de coexistência entre ambas, é que surgiu a multiparentalidade, um fenômeno jurídico com fundamento nas concepções da socioafetividade, constituído por múltiplos pais, isto é, a relação de paternidade ou maternidade múltipla impulsionada pela dinâmica das novas relações parentais.
O estabelecimento de dois vínculos parentais representa uma quebra de paradigmas no direito de filiação na medida em que equipara os vínculos familiares e enseja a simultaneidade do exercício de direitos e deveres parentais, acarretando, deste modo, uma série de questionamentos, entre eles: quais são os efeitos jurídicos aplicáveis ao reconhecimento da multiparentalidade? Qual a principiologia aplicável à espécie? Todos esses questionamentos são respondidos a partir de uma análise crítica do instituto e do leading case decidido pelo Supremo Tribunal Federal.
Anteriormente, os tribunais brasileiros entendiam que a coexistência de duas filiações (socioafetiva e biológica) obrigavam a preponderância de uma sobre a outra, rejeitando-se a sua concomitância. Como bem expõe Karina Barbosa Franco (2021, p. 83), de um lado tínhamos “uma corrente que indicava a prevalência da relação parental afetiva, vivenciada pelas partes, sobre o vínculo biológico”, e a outra corrente “sustentava que, mesmo diante de uma relação socioafetiva consolidada, deveria predominar o vínculo parental biológico sobre o socioafetivo”.
Essa rígida posição pode ser claramente observada no julgamento da Apelação Cível nº 70027112192, pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na qual se afirmou como juridicamente impossível o pedido do autor de ser reconhecida a paternidade socioafetiva sem afastar o liame parental em relação ao pai biológico. Na oportunidade, o tribunal consignou que “ninguém poderia ser filho de dois pais” (TJRS; Apelação Cível 70027112192, Oitava Câmara Cível, Rel. Des. Claudir Fidélis Faccenda, julgado em 02.04.2009).
No entanto, a discussão da temática passou a crescer nos tribunais pátrios até chegar ao Supremo Tribunal Federal no ano de 2016. O acórdão de origem reconheceu a dupla parentalidade com o consequente reconhecimento dos efeitos jurídicos decorrentes, o que ensejou a interposição do Recurso Extraordinário 898.060/SC, que teve a sua repercussão geral reconhecida (Tema nº 622).
O Excelso Pretório reconheceu a multiparentalidade no julgamento do recurso extraordinário e fixou a seguinte tese de repercussão geral: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento de vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.
A fixação da tese possibilitou a extração das seguintes consequências: a adoção da afetividade como princípio, tendo em vista as novas concepções das relações sociais; a proibição de redução do conceito de família a um modelo preestabelecido e o próprio reconhecimento da multiparentalidade como instituto jurídico.
Indubitavelmente, a decisão do Supremo Tribunal Federal tem fundamento na nova ordem constitucional inaugurada, principalmente em razão do protagonismo fundamental atribuído à Constituição Federal que verdadeiramente alçou os direitos fundamentais a filtro do sistema jurídico, propiciando uma nova roupagem ao ordenamento jurídico brasileiro, especialmente ao direito privado.
A posição assumida pelos julgadores no RE 898.060/SC demonstra que eles encetaram uma interpretação à luz dos vetores axiológicos da dignidade da pessoa humana, da paternidade responsável e da afetividade, atribuindo ao direito de família um novo florescer, despindo-o do modelo de caráter patrimonializado das relações civis anteriormente adotado para revestir-se de novos valores advindos do princípio da dignidade da pessoa humana.
Do cerne da dignidade humana, o direito à busca da felicidade se apresenta de suma importância, pois compele o Estado a se abster de adotar qualquer medida que vise tão somente às suas finalidades, mas priorize o bem-estar e os objetivos de vida pessoal de cada indivíduo em detrimento do querer estatal. Como bem destacam Luiz Edson Fachin e Christine Peter “esses vetores devem tanto informar a hermenêutica constitucional quanto a interpretação conforme a constituição” (2022, p. 34).
Além do mais, o decisum deu enfoque à juridicidade da afetividade, escolhendo-a como coadjuvante da constituição das relações familiares e parentais. O elemento intersubjetivo do afeto assume o lugar da verdade biológica, que tinha posição quase absoluta, restabelecendo e atribuindo um novo significado à parentalidade, denominando-a de parentalidade socioafetiva, em que tem como precípuo elemento configurador a afetividade. A definição da posse de estado de filho e da parentalidade socioafetiva têm substrato na afetividade, visto que à verdade social se atribui uma consequência no mundo jurídico.
Após apresentarmos um recorte rápido da principiologia aplicada à multiparentalidade, é imprescindível frisarmos que, embora tenha sido de grande importância e relevância social, a decisão do STF não conseguiu delimitar os efeitos e os limites da multiplicidade de vínculos filiatórios. Quais são os efeitos jurídicos decorrentes do reconhecimento da multiparentalidade?
Os efeitos jurídicos, delimitados no âmbito do direito das famílias e sucessões, podem ser divididos em dois grupos: de ordem pessoal e de ordem patrimonial. São da primeira ordem os direitos e deveres relativos ao nome e ao exercício da guarda e convivência; por outro lado, são da segunda ordem os relativos à obrigação alimentar e ao direito sucessório. Analisar-se-ão, um por um, logo a seguir.
A atribuição do patronímico é direito fundamental, decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana. Desta forma, aplicando o princípio da isonomia entre a parentalidade biológica e socioafetiva, não há impedimento à utilização de mais de um nome no registro de nascimento do filho afetivo.
A obrigação alimentar, por sua vez, tem regulamentação expressa no art. 1.694 do CC e tem na relação de parentesco o fato gerador para o cumprimento da obrigação. No entanto, no modelo pluriparental de filiação, alguns questionamentos a respeito do cumprimento da obrigação alimentar surgem naturalmente: com a coexistência dos vínculos filiatórios (biológico e socioafetivo), a quem se deve pedir os alimentos? O valor da prestação alimentar pode ser fracionado, atribuindo-se a cada genitor uma quota-parte?
Ao admitir o reconhecimento da multiparentalidade, a Suprema Corte brasileira consignou de forma clara que não há hierarquia entre os vínculos filiatórios. Por esta razão, não há que se pensar em preferência no momento de pleitear a prestação alimentar, tenha o vínculo a origem biológica ou socioafetiva. Aliás, ressalte-se que não há no ordenamento jurídico qualquer vedação ao acúmulo de prestações alimentares, desde que o seu pleito esteja fundamentado nos pressupostos de necessidade x possibilidade e avaliado, no caso concreto, a real necessidade do filho em receber as pensões.
A última reflexão trata sobre a possibilidade de fracionamento do pedido de prestação alimentar: cada genitor é responsável por sua quota-parte? Bem, o Código Civil permite que o alimentando opte por buscar o cumprimento da obrigação alimentar de forma fracionada ou, sendo viável, demandar apenas um coobrigado e este chamar os outros devedores para integrar a lide.
Apesar da permissão, a doutrina especializada se posiciona contrariamente a essa modalidade de cumprimento da obrigação alimentar, visto que
Embora seja possível o fracionamento da obrigação alimentar, na prática, não se recomenda a divisão das necessidades do alimentado entre várias pessoas, pois, em tese, poder-se-ia aumentar o risco de inadimplemento, em seu prejuízo. Assim, convém rememorar o caráter de fundamentalidade que envolve o direito aos alimentos. De fato, havendo possibilidade de algum dos pais arcar com a obrigação em sua integralidade, sem prejuízo ao seu próprio sustento e de sua família, com o fim de que esta não seja fracionada, podendo gerar, pela parte dos outros, inadimplemento e pela parte do alimentado, insegurança e imprevisibilidade, deverá fazê-lo.” (MATOS; SANTOS, 2019, p. 42).
Tratar sobre a guarda e o direito de convivência na multiparentalidade, igualmente, não é um estorvo. O regime de convivência a ser designado deve ser sempre o compartilhado, sendo o seu fundamento primordial o princípio do melhor interesse da criança ou adolescente.
A vertente supramencionada não é uníssona na doutrina, encontrando em Fabíola Albuquerque Lobo o posicionamento dissonante quando se trata de multiplicidade de vínculos parentais. Para a autora, “se o número de litígios biparentais abarrotam as varas de família, imagine-se a potencialização de demandas judiciais, provenientes dos vínculos pluriparentais concorrentes”, ao que conclui que “a guarda compartilhada na multiparentalidade se apresenta inadequada diante das condições fáticas e desarrazoadas que podem advir com a medida” (2021, p. 89-90).
A biparentalidade não está imune à alta litigiosidade e a inevitável ausência de diálogo entre os componentes. Destoando do posicionamento da doutrinadora, entendemos que o exercício da autoridade parental pelos pais, sejam afetivos ou biológicos, atende ao que dispõe o princípio da afetividade e o melhor interesse da criança, pois respeita a continuidade das relações da criança com ambas as filiações, porventura encontrando na disseminação do estímulo ao diálogo, se assim for necessário, a solução para sanar os empecilhos que surgem no caso concreto.
Recai, por fim, a análise dos efeitos sucessórios aplicados aos múltiplos vínculos parentais. A sucessão causa mortis, nestes casos, impulsionou um novo olhar a temática, visto que a codificação civil, instituída para um modelo biparental, precisa se adequar à situação fática da pluriparentalidade, resultando, deste modo, a busca por soluções as demandas que daí surgirem.
As seguintes hipóteses merecem especial atenção: a divisão da herança na concorrência do de cujus com ascendentes de primeiro grau (pai/mãe); a divisão do espólio quando o falecido não deixar descendentes, observando-se, neste caso, a ordem de vocação hereditária.
Imagine, neste último caso, que José faleceu e deixou uma farta herança. O falecido não tinha filhos nem cônjuge ou companheira, restando apenas três ascendentes de primeiro grau (Rosalina, João e Francisco). A codificação civil atual não previu solução legal para esta configuração, cabendo à doutrina solucionar o impasse.
De um lado, doutrinadores como Carvalho e Coelho (2017) entendem que nesta hipótese deve ser aplicado o que dispõe o §2º do art. 1.836 do Código Civil, ou seja, a partilha ocorreria em linhas: caberia 50% à linha paterna e 50% à linha materna. No exemplo citado, caberia metade para Rosalina e a outra metade para João e Francisco, cabendo 25% para cada ascendente.
Contudo, há posicionamento dissonante. Outra parte da doutrina entende que deve ser aplicada a regra disposta no art. 1.835 do Código Civil, cabendo a divisão por cabeças. Neste caso, Rosalina, João e Francisco receberiam, individualmente, um terço da herança a ser partilhada. Franco e Calderón afirmam “que hodiernamente não é mais recomendável falar-se em linhas paternas e maternas, posicionamento amplamente adotada pela maior parte da doutrina” (2021, p. 96).
Por outro lado, em se tratando da partilha do cônjuge com os ascendentes de primeiro grau, dispõe o art. 1.837 do Código Civil que ao cônjuge tocará um terço da herança, cabendo-lhe a metade deste se houver um só ascendente, ou se maior for aquele grau.
Em filiações pluriparentais há doutrinadores, como SCHREIBER e LUSTOSA (2016, p. 862), que entendem que a herança deve ser repartida em parte iguais, cabendo ao cônjuge e aos descendentes o recebimento de partes iguais. Em sentido diverso, Karina Barbosa Franco defende que ao cônjuge ou companheiro deve ser mantida a quota diferenciada, conforme o disposto no art. 1.837 do Código Civil, posição também nos filiamos, por entendermos que com isto não caracterizaria nenhuma forma de tratamento discriminatório, mas ao contrário, o pleno cumprimento do dispositivo legal (2019, p. 269).
Caro leitor, como visto, as implicações decorrentes do reconhecimento da filiação socioafetiva se apresentam de extrema relevância científica, uma vez que a ausência de normatização legal e a complexidade da vida impõem ao operador do direito uma verificação mais apurada e cuidadosa de cada caso em concreto a ele posto para análise.
Apesar da ressalva, ao vínculo socioafetivo não se impõe nenhum traço hierárquico ou diferenciador, assegurando-se igualdade em direitos e deveres decorrentes do reconhecimento dessa forma de filiação, sejam de ordem pessoal ou patrimonial, cumprindo, portanto, o mandamento constitucional da igualdade.
Jardel Ribeiro Ferreira
Advogado;
Pós-graduado em
Direito das Famílias e Sucessões
(CESMAC)
Karina Barbosa Franco
Mestre em Direito Público (UFAL);
Advogada, Professora de Direito das Famílias e Sucessões.
Membro-Associado do Instituto Brasileiro de Direito de Famílias (IBDFAM);
Pesquisadora do CONREP/UFPE