Transhumanismo e a responsabilidade civil decorrente do aprimoramento dos seres humanos

25 de junho de 2024

Muito embora a revolução tecnológica tenha provocado impactos sociais outrora apenas imagináveis em obras de ficção científica, talvez a maior ruptura tecnológica da trajetória humana esteja em vias de emergir: propõe-se, por meio do movimento conhecido como transhumanismo, a superação dos limites físicos, morais e intelectuais dos seres humanos. O fenômeno em questão diz respeito a uma perspectiva de investimento na transformação da condição humana,[1] no sentido de promover seu aperfeiçoamento a partir do uso da ciência e da tecnologia, com fulcro no aumento da capacidade cognitiva e na superação de barreiras físicas, sensoriais e psicológicas, qualidades marcantemente humanas. A proposta do movimento transhumanista tem por objetivo, portanto, promover melhoramentos capazes de dotar os indivíduos de benefícios físicos, como a força e a resistência, e também psíquicos e intelectuais, como uma memória prodigiosa e uma inteligência capaz de processar informações tal qual uma máquina faria.

O propósito destas linhas é o de analisar a incidência de regras concernentes à responsabilidade civil no âmbito do transhumanismo, particularmente quanto aos seguintes problemas: i) a eventual ocorrência de danos ocasionados em indivíduos que sofram intervenções para o implante de tecnologias que visem ao seu aprimoramento; ii) o regramento jurídico aplicável aos seres transhumanos que venham a causar danos a outrem; iii) a definição do modelo de responsabilidade civil a incidir sobre pessoas transhumanas e o modo de aferir a culpabilidade em suas condutas; iv) a releitura acerca das funções desempenhadas pelo instituto da responsabilidade civil, nomeadamente a preventiva; v) o emprego de tecnologias para aprimorar as capacidades de seres humanos de gerações vindouras.

Cada um destes pontos merecerá específico tratamento.

  1.    À partida, cumpre pensar nos danos que um indivíduo que se apresente como beneficiário de técnicas transhumanistas eventualmente venha a sofrer. Imagine-se, por hipótese, que uma pessoa se apresente como voluntária para ter determinados aparatos tecnológicos incorporados ao seu organismo, com o propósito de tornar-se intelectual ou fisicamente mais evoluída. O que dizer dos danos que podem sobrevir a partir destas intervenções, que, a depender de sua gravidade, podem eventualmente levar uma pessoa à morte?

No Brasil, ainda que inexista regramento legal específico para reger atos desta natureza – eis que se cuida, enfim, de circunstância ainda incipiente –, quer parecer que o regime geral da responsabilidade civil, assente em especial no texto do Código Civil, exigirá a aplicação do seu art. 927, parágrafo único, a imputar o modelo da responsabilidade civil objetiva (isto é, independentemente de culpa) a todo agente que normalmente desenvolva atividade que implique, por sua natureza, riscos para os direitos de outrem. Neste domínio, adota o legislador brasileiro a denominada teoria do risco criado: o simples fato de se instituir novos riscos em sociedade, para além dos inúmeros outros já existentes, induz a responsabilização objetiva do agente causador do dano. No âmbito das intervenções transhumanistas, manipular equipamentos de alta tecnologia com o propósito de aperfeiçoar as condições humanas há de ser inequivocamente reconhecido como um fator de elevado risco, em especial para o voluntário, eis que qualquer desvio poderá ocasionar severos danos à saúde do lesado, que podem inclusive ser fatais.

Pouco importará, inclusive, que o ato tenha sido praticado em caráter gratuito ou oneroso: a responsabilização deriva do simples fato de um indivíduo ser lesado em intervenções de cunho transhumanista, ainda que não tenha contribuído financeiramente para que fosse submetido ao ato. Em havendo dano imputável ao comportamento do interventor, o dever de repará-lo surge como corolário imediato da verificação do nexo de causalidade.

Também não parece correto supor que o fato de o voluntário ter prestado seu consentimento seja suficiente para afastar a potencial responsabilidade civil dos agentes que operam tecnologias transhumanistas. Ainda que requerida pelo próprio indivíduo a intervenção transhumanista, se ela vier a gerar danos ao interessado em se tornar um ser transhumano, caberá analisar as circunstâncias do caso concreto e verificar, afinal, se houve algum desvio no ato da intervenção, ou mesmo se ocorreu algum vício no processo de informar ao voluntário sobre os riscos da medida. No primeiro caso, a responsabilidade civil se manifestará pelo erro no procedimento; no segundo caso, mesmo que não tenha ocorrido falha no processo de intervenção corporal, ainda assim caberá cogitar da responsabilidade civil do agente, por ter sido imprecisa a prestação de informações claras acerca dos riscos da intervenção, que devem ser adequadamente mensurados antes mesmo que se coloquem em prática as medidas de caráter transhumanista.

Com efeito, por se tratar de atuação sobre a integridade psicofísica de seres humanos, é necessário proceder a uma criteriosa e antecipada ponderação sobre a incidência dos princípios bioéticos da beneficência e da não maleficência, somente sendo admitidas as experiências transhumanistas com seres humanos – se é que serão de fato aceitáveis – se a assunção dos riscos a elas inerentes se justificar pela magnitude das vantagens esperadas. É de se esperar, portanto, que os atos praticados com técnicas de alta tecnologia ofereçam uma razoável garantia de segurança, sob pena de se sujeitar o agente que os conduz à responsabilização pelos danos deles derivados.

  1. Quanto ao regramento jurídico aplicável aos seres transhumanos que venham a causar danos a outrem, cumprirá reconhecer que, por mais que o indivíduo se transforme em um ser dotado de capacidades extraordinárias – sejam cognitivas ou motoras –, não deixará de ser uma pessoa, ainda que ostente a condição de ser um híbrido entre máquina e ser humano. Assim, o indivíduo submetido a intervenções de cunho transhumanista responderá pessoalmente pelos danos causados a terceiros, mesmo que eventualmente se deva cogitar da edição de novas regras na seara da responsabilidade civil, mormente porque, na mais extrema das hipóteses, a sociedade passará a ser dividida entre seres humanos e transhumanos, cumprindo reconhecer a vulnerabilidade daqueles e a superioridade física e intelectual destes.
  2. O postulado acabado de referir coloca em causa um problema consequente: a definição do modelo de responsabilidade civil a incidir sobre as pessoas transhumanas e o modo de aferir a culpabilidade em suas condutas.  

À primeira questão, caberá insistir na premissa assente: os indivíduos aprimorados, à partida, serão pessoas para o Direito, cidadãos integrados à sociedade como os demais (meros) humanos. Em princípio, portanto, ao se comportarem no meio social, responderão subjetivamente pelos danos causados a terceiros, a não ser que estejam a desempenhar atividades de risco ou que haja alguma regra legal específica a imputar-lhes responsabilidade sem culpa. Daí decorre que os indivíduos aprimorados por técnicas transhumanistas somente devem reparar danos, em tese, se adotarem comportamentos intencionais (dolosos) ou descuidados (culposos).

Tal assertiva, todavia, desafia novos dilemas. Os indivíduos aprimorados ostentariam uma condição de superioridade física e/ou intelectual em relação aos demais. Caberia conceber, então, que os atos, fatos e relações jurídicas que os envolvam mereçam idêntico tratamento legal? Uma pessoa que detém condições físicas ou mentais aperfeiçoadas em função do emprego de tecnologias de ponta não deveria, por isso mesmo, atuar com diligência mais acurada que os demais? Caberia aferir o comportamento culposo do agente transhumano a partir da análise da conduta que se deveria esperar do “homem médio”, sabendo-se de antemão que tal indivíduo ostenta uma condição que o segrega do termo mediano da sociedade?

A averiguação da culpa pressupõe que uma pessoa, por negligência, imprudência ou imperícia, deixe de cumprir com um dever geral de cautela que a todos se impõe. Em relação a indivíduos dotados de excepcionais habilidades físicas ou de aptidões intelectuais invulgares, não seria de se esperar que tenham melhores condições de agir cautelosamente e, consequentemente, de evitar lesões a terceiros? Em um primeiro momento, a resposta se afigura positiva; caberá, portanto, averiguar conforme as circunstâncias do caso concreto qual a verdadeira condição do indivíduo transhumano causador do dano e apurar, enfim, de que modo se pode caracterizar a adoção de comportamento que, dada a sua particular situação de vantagem, deveria ter sido evitado.  

  1. Cumprirá, ainda, fazer valer a função preventiva da responsabilidade civil e evitar que o emprego da tecnologia para fins transhumanistas se dê de modo indiscriminado, potencializando não apenas o suposto aprimoramento das capacidades humanas, como também a ocorrência de danos enormes em sociedade. Neste domínio, à medida em que as técnicas transhumanistas forem implementadas, cumprirá estabelecer normas de cautela, com o propósito de impor limites éticos, jurídicos e biológicos ao plano de superação das condições humanas. Parece salutar, quando menos, que sejam criados comitês de ética que tenham a atribuição de fiscalizar e autorizar ou rechaçar práticas transhumanistas que, de algum modo, venham a colocar em risco não apenas a integridade psicofísica dos seus voluntários como também direitos e interesses sociais dignos de tutela.
  2. Finalmente, e ainda como decorrência das ideias desenvolvidas no item antecedente, cabe refletir cuidadosamente sobre o emprego de tecnologias transhumanistas para aprimorar as condições físicas e intelectuais de gerações vindouras. Por meio de modificações genéticas, seria viável alçar crianças por nascer a patamares biológicos e psíquicos superiores aos de seus antepassados. O que dizer, entretanto, dos possíveis danos que podem ser sofridos por estes bebês geneticamente manipulados?

A respeito das edições gênicas da linhagem germinativa, Graziella Clemente[2] cuida de apontar seus possíveis benefícios, seja em curto prazo, como importante instrumento para o tratamento de doenças monogenéticas, seja a longo prazo, como ferramenta apta a combater doenças poligênicas, multifatoriais e infecciosas.

As intervenções genéticas que tenham a finalidade de evitar enfermidades não podem, todavia, ser confundidas com a manipulação genética que vise não a impedir doenças – isto é, preservando-se as condições naturais do indivíduo ainda por nascer –, mas a aprimorar as capacidades de um nascituro, com vistas à geração pré-natal de um indivíduo transhumano. Neste derradeiro caso, os riscos de danos assumidos são intensos, não apenas porque pode haver erro na manipulação provocada, mas também em razão de potenciais danos futuros, cuja verificação é desconhecida no momento da intervenção.

De todo modo, nos casos em que houver intervenções genéticas de caráter transhumanista, caberá recorrer, uma vez mais, à cláusula geral de responsabilidade objetiva contemplada no aludido art. 927, parágrafo único, do Código Civil brasileiro, cumprindo ao agente interventor a assunção do dever de reparar todo e qualquer dano oriundo de seu comportamento. Afinal, tratar-se-á de conduta que, em sua essência, implica a assunção de elevados riscos de danos, que podem colocar em xeque o futuro de toda uma geração de seres transhumanos.


Referências

CLEMENTE, Graziella Trindade. Responsabilidade civil: edição gênica e o CRISPR. In: ROSENVALD, Nelson et al (Coord.). Responsabilidade civil: novos riscos. Indaiatuba: Foco, 2019.

VILAÇA, Murilo Mariano; DIAS, Maria Clara Marques. Transumanismo e o futuro (pós-) humano. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de janeiro, v. 24, n. 2, 2014.


Notas

[1] VILAÇA, Murilo Mariano; DIAS, Maria Clara Marques. Transumanismo e o futuro (pós-) humano. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de janeiro, v. 24, n. 2, 2014, p. 341-362.

[2] CLEMENTE, Graziella Trindade. Responsabilidade civil: edição gênica e o CRISPR. In: ROSENVALD, Nelson et al (Coord.). Responsabilidade civil: novos riscos. Indaiatuba: Foco, 2019, p. 303.


Adriano Marteleto Godinho

Professor dos cursos de graduação e pós-graduação (Mestrado e Doutorado) da Universidade Federal da Paraíba. Pós-doutor em Direito pela Universidade de Coimbra. Doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa. Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: adrgodinho@hotmail.com.

Deixar uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *