Partilha de bens digitais nos regimes comunheiros

17 de setembro de 2024

O desenvolvimento das tecnologias da informação tem proporcionado significativas transformações sobre as relações humanas, sobretudo com a popularização do uso da Internet como importante meio de comunicação.[1] A rede foi, aos poucos, se tornando um locus de constituição e desenvolvimento de relações sociais e econômicas, acarretando o aumento do fluxo de informações entre os sujeitos e, também, o incremento da contratação pelo meio eletrônico. Além disso, a coexistência de conteúdos inseridos em momentos diversos e de locais distintos no ambiente digital promoveu o redimensionamento da percepção de espaço-tempo, desafiando a normativa jurídica existente, elaborada sob a perspectiva analógica.

Músicas, livros, fotos, documentos, jogos e até mesmo a moeda, passaram a compor o ambiente digital e a serem compartilhados cotidianamente, modificando-se muitas vezes o suporte por meio do qual os indivíduos obtêm e armazenam esses conteúdos, sejam aqueles com relevância afetiva, sejam os que possuem expressiva valoração econômica.

As redes sociais, como o Orkut, o Facebook, o Instagram, o WhatsApp, dentre outros, potencializaram esse compartilhamento, constituindo verdadeiras comunidades digitais, e viabilizaram a utilização dos perfis com finalidades diversas, seja com viés pessoal, seja com proposta comercial.

O crescimento da chamada economia do compartilhamento também indica uma mudança na forma como os indivíduos se relacionam com os bens, modificando-se a própria percepção a respeito da ideia de propriedade, a exemplo de aplicativos como o Uber, o Airbnb, e dos espaços de coworking e coliving,[2] que flexibilizam a concepção proprietária clássica, baseada na lógica exclusiva e absoluta.

De outro lado, no âmbito jurídico, o movimento de constitucionalização do direito civil, permeado pela migração, para o âmbito privado, de princípios constitucionais, gerou um movimento de despatrimonizalização do direito civil, promovendo a releitura dos três pilares do direito privado – propriedade, família e contrato.

Ademais, a aplicação das normas do Código Civil, elaborado sob a perspectiva analógica, às relações estabelecidas no mundo digital não pode desconsiderar as peculiaridades desse novo meio, sendo necessário, em alguns casos, um processo de releitura das normas civis para adaptá-las – na maior medida possível – às inovações tecnológicas, considerando, ademais, que mesmo aquelas atividades que ainda não sejam reguladas devem ser exercidas em conformidade com o sistema jurídico.[3]

Diante desse cenário, a análise jurídica a respeito dos denominados bens digitais deve considerar (i) que as transformações promovidas pelo desenvolvimento das novas tecnologias impactam de uma forma geral a forma como os indivíduos se relacionam com os bens; (ii) que novas realidades se apresentam a partir do uso da Internet e desafiam o intérprete quanto à aplicação das normas jurídicas elaboradas sob a perspectiva analógica às situações que se estabelecem no ambiente digital.

A discussão a respeito da possibilidade ou não de partilha de bens digitais em decorrência da dissolução da sociedade conjugal envolve o enfrentamento de alguns problemas, com a definição e o estabelecimento de critérios para o enquadramento de um bem como bem digital, a possibilidade de quantificação econômica, ou seja, de conversão dos bens digitais em uma cifra econômica, a definição do regime jurídico aplicável, a determinação da titularidade, e, por fim, a possibilidade ou não de divisão de tais bens.

Deve-se lembrar, sob este aspecto, que classicamente se considera como bens jurídicos tanto aqueles de natureza patrimonial quanto aqueles que insuscetíveis de valoração econômica, não sendo a materialidade ou a patrimonialidade elementos essenciais para a caracterização do que se compreende juridicamente como bem.

Bens digitais podem ser configurados como todos aqueles conteúdos constantes na rede, passíveis ou não de valoração econômica, que proporcionem alguma utilidade para o seu titular. [4] Assim, os perfis de redes sociais, os e-books, as contas de e-mail, jogos virtuais, etc. poderiam ser enquadrados como bens digitais, sendo ou não suscetíveis de apreciação econômica.

Tem-se reconhecido três categorias centrais de bens digitais: (i) os bens digitais patrimoniais; (ii) os bens digitais existenciais; e (iii) os bens digitais híbridos, devendo-se considerar que o enquadramento em uma ou outra categoria demanda uma análise acerca da função que o bem desempenha na relação jurídica, o que vai impactar também na determinação da titularidade sobre o bem e sobre a possibilidade ou não de divisão de tais bens, a partir da possibilidade de quantificação econômica.

Assim, a definição do regime jurídico aplicável irá depender da identificação da funcionalidade relacionada ao bem, lógica, inclusive, que vem sendo proposta no debate em torno da herança digital, quanto à possibilidade ou não de transmissão a título sucessório de bens digitais.[5]

Ao contrário da herança digital, não se tem notícia de que os termos de uso dos provedores contenham previsões a respeito de eventual partilha da conta por força do regime de bens adotado pelo titular. Além disso, depara-se com a ausência de previsão legislativa específica quanto às consequências da dissolução da sociedade conjugal ou da união estável sobre os bens digitais.

Para melhor analisar a questão, principia-se por se verificar qual a função desempenhada pelo bem digital: existencial, patrimonial ou híbrida.[6] A priori, o perfil funcional é o mais importante a ser verificado para qualificar a situação jurídica, pois se busca o concreto papel desempenhado pela situação no âmbito das relações sociojurídicas. Assim, é preciso analisar o contexto em que o bem digital se insere naquela família, para qualificá-lo adequadamente e, então, verificar se ele é ou não partilhável, segundo os critérios que ora se propõe, a fim de se evitar a patrimonialização das situações existenciais.

As situações existenciais são aquelas que tutelam de forma direta a dignidade da pessoa humana e o livre desenvolvimento da personalidade não apenas da pessoa como núcleo isolado, mas inserida na sociedade, em determinado contexto; tem como escopo a concretização de direitos da personalidade segundo o projeto de vida eleito por cada um. Já as patrimoniais realizam a livre iniciativa como elemento fundante da ordem econômica – e, assim, acabam por ter uma função social – e se concretizam, na maioria das vezes, por meio do contrato e da propriedade.

Nesse sentido, faz-se importante a verificação concreta da função de determinado bem no estatuto patrimonial dos cônjuges: se uma função de realização direta da dignidade humana (existencial) ou se gera proveito econômico (patrimonial) e, em casos híbridos, deve-se verificar a função exercida pelo bem na situação específica do casal para então, definir se o bem deverá ou não ser partilhado.

A fim de estabelecer critérios funcionais para definir se os bens digitais são comuns ou particulares, sugerem-se os seguintes parâmetros:

(i) Se o bem digital desempenhar função existencial, independentemente do regime de casamento, ele é particular. Serve como exemplo um perfil em rede social em que um dos cônjuges posta fotos de alguns momentos da sua vida e/ou de sua família e retrata sua história pessoal/familiar, servindo como registro de suas memórias. É claro seu caráter personalíssimo; embora as postagens de cunho familiar abranjam aspectos existenciais do outro cônjuge, o objetivo principal é um registro pessoal e os aspectos de terceiros são coadjuvantes e compõem o cenário da caracterização da vida do titular do perfil. Nesse caso, não teria sentido se pensar na partilha desse bem, que funciona como um diário ou livro de recordações. Se o bem é particular, não é objeto de partilha em nenhum dos regimes de bens.

(ii) se o bem digital tiver funcionalidade patrimonial, é comum ao casal e, por consequência, se atendidas as regras de comunicabilidade dos regimes comunheiros (data e forma de aquisição), fica sujeito à partilha. Verifica-se se desempenha uma função patrimonial quando for passível de mensuração econômica e/ou ter proveito econômico, gerando lucro para os cônjuges/companheiros. Se se tratar de sites que são e-commerce, por exemplo, estamos diante de um bem que produz renda e é passível de partilha, raciocínio que se aplica a moedas virtuais (tais como bitcoins, criptomoedas) e instrumentos financeiros que circulam eletronicamente, aplicativos, milhas e cupons eletrônicos.

Em relação ao modo de se fazer a partilha, é necessário se averiguar a possibilidade de que a partilha seja realizada em substância (por meio da divisão do próprio bem) ou por indenização da meação correspondente. As moedas virtuais e milhas são exemplos de bens que comportam partilha em substância: basta verificar a quantidade desses itens e dividi-los para cada um dos cônjuges/companheiros que ela estará feita.

Há outros, no entanto, que não são passíveis de partilha do bem propriamente dito, como é o caso de sites e aplicativos. Nesse caso, na ausência das normas específicas e de um acordo, sugerem-se algumas diretrizes hermenêuticas:

a) caso algum dos cônjuges tenha uma ligação direta com o bem, por exemplo, se é programador e tiver a propriedade intelectual do site, ele teria a preferência para permanecer com o bem. Nessa hipótese, é necessário fazer sua avaliação econômica para indenizar aquele que não tem essa ligação tão direta com o patrimônio. Pode-se adotar como parâmetro interpretativo o que dispõe o direito societário, para as hipóteses em que as quotas sociais forem comunicáveis, mas o cônjuge não seja sócio direto da sociedade, pois não tem affectio com os demais sócios. Nesse caso, ele tem direito à indenização relativa ao correspondente financeiro de 50% (cinquenta por cento) do valor da quota, além de poder perceber os lucros/frutos que o bem comum gera até a efetiva partilha de bens, como se verifica do art. 1.027 do Código Civil. Assim, uma vez avaliado, o cônjuge que permanecerá titular do bem digital indenizará o outro por sua meação.

b) se os cônjuges tiverem igual vínculo com o bem, (i) eles podem continuar com o patrimônio em condomínio; mas, se não mais desejarem a manutenção de vínculos, (ii) devem avaliá-lo para que um adquira a parte do outro (direito de preferência), ou (iii) devem alienar o bem, seguindo as regras previstas para o condomínio, depois de decretada a partilha ideal do bem (Capítulo VI do Título III do Livro III do Código Civil).

iii) caso o bem digital tenha uma funcionalidade híbrida ou dúplice – existencial e patrimonial – deve-se verificar na situação específica o que prepondera. No entanto, a funcionalidade dúplice implica em se analisar a partilha apenas das repercussões patrimoniais do bem. Assim, no caso de um perfil de um digital influencer que preencha os requisitos de data e forma de aquisição para comunicabilidade exigida pelo regime de bens, por exemplo, que tenha um número significativo de seguidores e que possa ser monetizado, deve-se resguardar o aspecto existencial ali contido, o que impede na prática a partilha do perfil em si, mas, quanto ao aspecto patrimonial, referente aos rendimentos originados daquela página, deve ser reconhecido o direito à meação, seguindo-se a lógica aplicável aos frutos (art. 1.660, V, do Código Civil).

Além dessas reflexões, também se deve ter em mente como critério os bens que repercutem na esfera jurídica de terceiros, cujos interesses precisam ser resguardados, como é o caso de lista de contatos/relacionamento e carteira de clientes. Nesse caso, a privacidade de terceiros deve ser necessariamente garantida, sob pena de se violar seus interesses e cometer danos. Assim, na hipótese de o bem digital ser partilhável, a solução é fazer a avaliação econômica do bem, para que um dos cônjuges seja indenizado em sua meação, tendo preferência para ficar com o bem aquele que tiver uma ligação mais direta com o patrimônio, isto é, trabalhe diretamente com o bem, tenha construído a carteira de relacionamento, seja referência pessoal para os clientes.

Esses são alguns dos desafios relacionados à partilha dos bens digitais por força do divórcio ou da dissolução de união estável, ressaltando-se que se torna cada vez mais necessário o aprofundamento do tema.


Notas

[1] Ressalta-se que a Internet foi desenvolvida, inicialmente, com fins militares, sendo, posteriormente, popularizada no uso cotidiano. A respeito do tema, ver: LEMOS, André. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea. 7. ed. Porto Alegre: Sulina, 2015, p. 116.

[2] GUILHERMINO, Everilda Brandão. Acesso e compartilhamento: A nova base econômica e jurídica dos contratos e da propriedade. Migalhas. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/311569/acesso-e-compartilhamento-a-nova-base-economica-e-juridica-dos-contratos-e-da-propriedade>. Acesso em: 20 abr. 2020.

[3] TEPEDINO, Gustavo. Liberdades, tecnologia e teoria da interpretação. Revista Forense, vol. 419, ano 110, jan/jun 2014, Rio de Janeiro: Forense, 2014.

[4] LACERDA, Bruno Torquato Zampier. Bens digitais. Indaiatuba: Foco Jurídico, 2017, p. 74.

[5] “Assim, em relação a páginas e contas protegidas por senha, deve-se verificar o caráter do conteúdo ali contido e a funcionalidade da aplicação. Tratando-se de aplicações com fundo estritamente patrimonial, como contas de instituições financeiras, ou ligadas a criptomoedas, por exemplo, a conta e a senha poderiam ser transferidas para os herdeiros. Contudo, em relação a aplicações de caráter pessoal e privado, como é o caso de perfis de redes sociais e dos aplicativos de conversas privadas, não se deve permitir, a princípio, o acesso dos familiares, exceto em situações excepcionalíssimas, diante de um interesse existencial que prepondere no caso concreto. Nesses casos, a senha vai proteger os dados recebidos, enviados e armazenados pelo usuário, inclusive em face do acesso indevido pelos familiares após a morte”. LEAL, Livia Teixeira. Internet e morte do usuário: a necessária superação do paradigma da herança digital. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 16, p. 181-197, abr./jun. 2018, p. 195.

[6] Aprofundamos os requisitos para essa classificação e separação em KONDER, Carlos Nelson; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. O enquadramento dos bens digitais sob o perfil funcional das situações jurídicas. In: LEAL, Lívia Teixeira; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado (coords.). Herança digital: controvérsias e alternativas. Tomo 1. 2ª ed. Indaiatuba: Foco, 2022, p. 25-47.


Ana Carolina Brochado Teixeira

Doutora em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Direito Privado pela PUC/MG.Especialista em DirittoCivile pela Università degli Studi di Camerino, Itália. Professora de Direito Civil e advogada.

Livia Teixeira Leal

Doutora em Direito Civil pela UERJ. Pós-Graduada pela EMERJ. Professora da PUC-Rio, da EMERJ e da ESAJ. Assessora no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro–TJRJ.

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