Gustavo Alexandre Magalhães
é mestre e Doutor em Direito pela UFMG,
advogado especialista em infraestrutura,
sócio do escritório Fialho Salles Advogados
Julia Gontijo Avelar
é advogada especialista em infraestrutura
no escritório Fialho Salles Advogados
Com o objetivo de dar efetividade ao Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico, instituído pela Lei Federal nº 14.026, de 15 de julho de 2020, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) deu início à edição de normas de referência para o saneamento básico, com vistas a uniformizar a regulação setorial na busca de maior segurança jurídica.
Após amplos debates com agentes setoriais e a realização da Consulta Pública nº 03/2020 para obter contribuições da sociedade, em março de 2021 a Agência editou a Resolução nº 64, que define os temas prioritários que serão objeto da regulação no horizonte 2021/2022.
Entre os temas prioritários inseridos na Agenda Regulatória da ANA está a definição de diretrizes para o reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos em curso, tema de grande importância já que em muitos casos haverá a necessidade de aditamento de contratos para contemplar novos investimentos para atendimento às metas de universalização estabelecidas pelo Novo Marco Regulatório. Também será editada norma de referência que tratará da forma de cálculo da indenização dos ativos e investimentos não amortizados, muito aguardada pelas companhias estaduais de saneamento diante da perspectiva de encerramento de contratos de programa.
Ainda em março foi iniciada a Consulta Pública nº 04/2021, cujo período de contribuições se encerrou em 18/04/2021, para obtenção de contribuições para a Norma de Referência nº 1, que dispõe sobre parâmetros da cobrança pela prestação do serviço de manejo de resíduos sólidos, de modo a assegurar a sustentabilidade econômico-financeira da prestação desses serviços.
Dessa forma, após vários anos o Governo Federal reassume um papel de protagonismo na centralização e uniformização da regulação do saneamento básico. Na década de 1970, o Governo Federal era responsável pela orientação e centralização da política pública de saneamento básico, a quem foi atribuído o papel de fornecer recursos financeiros para a realização de investimentos, com recursos provenientes do Banco Nacional de Habitação (BNH), e também de regular a prestação dos serviços pelas companhias estaduais de saneamento, mediante fixação de tarifas, definição das remunerações máximas das concessionárias e aprovação de seus planos de investimentos. A política de apoio federal, consolidada no Plano Nacional de Saneamento (PLANASA), pressupunha a associação entre os Municípios e os Estados, por meio de suas companhias estaduais de saneamento básico, para prestação dos serviços segundo os critérios estabelecidos pela União.
Com o desmantelamento do PLANASA a partir de meados da década de 1980, em decorrência de terem minguado os recursos provenientes do BNH, o Governo Federal deixou de atuar na regulação do setor de saneamento básico.
A Constituição de 1988 fixou que a titularidade dos serviços de saneamento básico é dos Municípios, com fundamento no interesse local (art. 30, inciso I), ressalvados os casos de Municípios inseridos em regiões metropolitanas, conforme reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADI 1842. Assim, os Municípios assumiram o papel de protagonismo no planejamento dos serviços de saneamento básico, com definição sobre a forma de prestação, regulação e fiscalização.
Foi nesse contexto em que foi editada a Lei Federal nº 11.445, de 05 de janeiro de 2007, que estabeleceu o Marco Regulatório do Saneamento Básico em âmbito nacional, e determinou que os Municípios, na condição de titulares dos serviços de saneamento básico, poderiam optar por exercer a atividade de regulação diretamente por meio de agências municipais ou delegá-la a agências reguladoras regionais ou estaduais.
À época, a importância dada para a adequada regulação dos serviços de saneamento foi tamanha que a existência de normas de regulação, bem como a indicação de órgão ou entidade reguladora foram colocadas como condições de validade dos contratos que tivessem por objeto a delegação da prestação de serviços de saneamento básico.
Nesse contexto, após a edição da Lei nº 11.445/2007 houve um avanço significativo na regulação do setor de saneamento básico, inclusive com a criação de várias entidades de regulação no âmbito estadual e municipal[1]. Contudo, o exercício das atividades de regulação e fiscalização de forma descentralizada gerou disparidades e ineficiências.
Na prática, a existência de normas de regulação pulverizadas, editadas por entidades muitas vezes destituídas de quadro técnico especializado ou sujeitas a interferências políticas, acabou comprometendo a almejada universalização do acesso e a qualidade dos serviços disponibilizados à população. Além disso, a inexistência de normas regulatórias uniformes editadas por entidade com reconhecida capacidade técnica criou um cenário de insegurança jurídica que reflete em serviços mais caros, na medida em que o risco regulatório é sempre precificado pelos potenciais investidores e financiadores.
Dessa forma, desde 2018, há uma tentativa de alteração o Marco Regulatório do Saneamento com o objetivo de uniformizar as diretrizes gerais para a regulação do saneamento básico, visando simplificar a gestão do setor como um todo, obter uma regulação mais técnica e contribuir para um ambiente com maior segurança jurídica para atrair investidores. Foi nesse contexto que a Medida Provisória nº 844, de 6 de julho de 2018 (vigência encerrada em novembro de 2018) e a Medida Provisória nº 868, de 27 de dezembro de 2018 (vigência encerrada em junho de 2019) incluíram no rol de competências da ANA a uniformização da regulação do saneamento básico. Finalmente, a competência da ANA para instituição das normas de referência para a regulação da prestação dos serviços públicos de saneamento básico foi definitivamente estabelecida com a Lei Federal nº 14.026/2020.
Portanto, a ANA é atualmente responsável pela edição de diretrizes de referência para as agências reguladoras municipais, estaduais e regionais (“agências infranacionais”), atendendo ao anseio do mercado por maior segurança jurídica na prestação dos serviços de saneamento básico e pela uniformidade regulatória.
Contudo, como os serviços de saneamento básico são de titularidade municipal, a União não pode impor a observância das normas de referência da ANA. Ou seja, a adesão das agências infranacionais às normas de referência da ANA é facultativa.
A solução encontrada pela Lei nº 14.026/2020 para garantir a efetividade do Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico e estimular a adesão das agências infranacionais aos padrões regulatórios a serem estabelecidos pela ANA foi determinar que a adesão às normas de referência é uma das condições para o acesso aos recursos públicos federais ou para a contratação de financiamentos com recursos da União ou com recursos geridos ou operados por órgãos, ou entidades da administração pública federal.
Assim, os titulares dos serviços têm um incentivo à delegação das funções de regulação e fiscalização a entidades reguladoras que adotam as normas de referência nacionais para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico, sob pena de inviabilizar o acesso a recursos federais.
Nesse contexto, o mercado vem aguardando com grande expectativa a edição destas normas de referência pela ANA para os temas considerados prioritários e estratégicos, inclusive para avaliar se haverá de fato a esperada melhoria do ambiente regulatório e maior segurança jurídica para atrair investimentos no setor.
[1] Segundo levantamento realizado pela ANA, existem no Brasil 63 agências reguladoras municipais, intermunicipais e estaduais que já regulam os serviços de saneamento. Disponível em: https://www.gov.br/ana/pt-br/assuntos/saneamento-basico/agencias-infranacionais
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