Os “populismos tarifários” como uma Falha da Regulação | Coluna Direito da Infraestrutura

31 de agosto de 2022

Não é novidade que os contratos de concessão são lastreados na segurança jurídica, o que justifica a atração de investimentos privados para a exploração de um cometimento público, por longos prazos. É que os investimentos realizados, pelos concessionários, podem ser equiparados a um financiamento do particular ao Poder Concedente. O particular aporta os recursos para a aquisição, construção ou reforma dos bens, com investimentos próprios ou de terceiros (financiadores), sendo, posteriormente, remunerado, pelas receitas da concessão (que equivalem ao “pagamento” do Poder Concedente). Assim é que, caso o valor que foi investido, pelo particular, não possa ser, integralmente, ressarcido (amortizado) pelas receitas recebidas durante a vigência contratual, o Poder Público tem o dever de “quitar” o saldo ainda não foi pago (ou seja, as parcelas não amortizadas).

Todo esse racional é, simplesmente, desconsiderado, às vésperas do sufrágio eleitoral. De uma forma de financiamento de utilidades públicas, os contratos de concessão passam a ser utilizados como um móvel para plataformas políticas de ocasião. Assim, por exemplo, cite-se o represamento do reajuste tarifário das concessionárias de rodovias, em São Paulo, que foi anunciado no meio do ano – o que motivou a celebração de um acordo entre as partes, no âmbito do qual o Poder concedente se compromete a reajustar os pedágios, em 16 de dezembro (depois das eleições), e indenizar as concessionárias por ter congelado as tarifas em 1º de julho (quando deveriam ter sido reajustadas em 10,72%, nos contratos atrelados ao IGP-M, ou 11,73%, nos atrelados ao IPCA).

Malgrado se trate de prática costumeira, tal expediente desafia questões estruturais do regime jurídico dos contratos de concessão e da função reguladora. Como é de conhecimento convencional, quando o licitante formula a sua proposta comercial, em projetos de infraestrutura, ele precifica a sua remuneração pelos investimentos realizados e/ou previstos (Capex Capital Expenditure – CAPEX) e pelos custos operacionais incorridos e/ou previstos (Operational Expenditure – OPEX) para a exploração de um ativo, de acordo com o custo de oportunidade do negócio, ou seja, o WACC (Weighted Average Cost of Capital ou Custo Médio Ponderado de Capital). Acontece que tal valor provisionado, na proposta comercial do licitante, máxime em contratos de longo prazo, sofre os efeitos econômico-financeiros da inflação. Razão pela qual os pactos concessórios preveem que o reajuste é uma cláusula obrigatória em tais ajustes (art. 18, VII e 23, IV, da Lei n° 8.987/1995).

Com a estabilização da economia experimentada, pelo advento do Plano Real, a Lei n° 10.192/2001 explicitou que: (i) é admi­ti­da esti­pu­la­ção de cor­re­ção mone­tá­ria ou de rea­jus­te por índi­ces de pre­ços ­gerais, seto­riais ou que refli­tam a varia­ção dos cus­tos de pro­du­ção ou dos insu­mos uti­li­za­dos nos con­tra­tos de prazo de dura­ção igual ou supe­rior a um ano; (ii)  é nula de pleno direi­to qual­quer esti­pu­la­ção de rea­jus­te ou cor­re­ção mone­tá­ria de perio­di­ci­da­de infe­rior a um ano; e (iii) a perio­di­ci­da­de anual nos con­tra­tos dos contratos administrativos será con­ta­da a par­tir da data limi­te para apre­sen­ta­ção da pro­pos­ta ou do orça­men­to a que essa se refe­rir (art. 2º e 3°).

Logo e em termos diretos: a ausência do reajuste, sob o aspecto econômico, simplesmente, incrementa, no tempo, o valor do “empréstimo” realizado pelo poder público junto aos concessionários. Nesse sentido, André Martins Bogossian[1] leciona que, em situações como esta, “o Poder Concedente e os usuários possivelmente acumularão uma dívida mais cara ainda com a concessionária, tendo em vista a aplicação da taxa de desconto contratual para o cálculo do reequilíbrio devido”.

Note-se: para além de violar um direito subjetivo do concessionário, cuida-se da criação de um evento desequilibrante, que será suportado pelos usuários da via concessionada. Não se trata de uma política tarifária, que teria lastro no art. 175, parágrafo único, inciso III, da CRFB. A aplicação do princípio da isonomia entre os usuários justifica diferenciações tarifárias (v.g. Descontos de Usuários Frequentes, Fluxos Livres, Subsídios cruzados), mas não a expropriação do patrimônio das concessionárias, o que viola, na ponta, o art. 5°, inciso XXIV, da CRFB.

Outro exemplo recente de populismo tarifário vem do setor elétrico. Em 02 de outubro de 2017, o Supremo Tribunal Federal – STF, ao apreciar o Recurso Extraordinário n° 574.706[2], deixou assentado o entendimento segundo o qual “se o art. 3º, § 2º, inc. I, in fine, da Lei n. 9.718/1998 excluiu da base de cálculo daquelas contribuições sociais o ICMS transferido integralmente para os Estados, deve ser enfatizado que não há como se excluir a transferência parcial decorrente do regime de não cumulatividade em determinado momento da dinâmica das operações”. Em prosseguimento, em 27 de junho de 2022, foi editada a Lei n° 14.385, que altera a Lei nº 9.427, de 26 de dezembro de 1996, para disciplinar a devolução de valores de tributos recolhidos a maior pelas prestadoras do serviço público de distribuição de energia elétrica.

Cuida-se, igualmente, de uma investida que subverte a função da entidade reguladora. Isto porque a nota característica da regulação é o equilíbrio entre os diversos interesses enredados no subsistema regulado (políticos, de Estado, do Poder Concedente, dos concessionários e dos usuários dos serviços públicos). Sob este prisma, a defesa dos usuários de serviços públicos é, apenas, parte de um devido processo de ponderação regulatório com outros interesses que não podem ser afastados. Por isso, o que não deve ser admitido é que, sob o argumento de tutela usuário, o regulador embarace o equilíbrio sistêmico do mercado regulado.

Claro que tal agência reguladora tem papel fundamental na regulação tarifária, no segmento de distribuição de energia elétrica.  Mas isso não importa dizer que ela detenha competência irrestrita para, ao argumento de que estaria repassando benefícios aos consumidores, turbar o regime jurídico do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de distribuição energia elétrica. A entidade reguladora não é um órgão de defesa do consumidor. Se o for, não subsistirá a função reguladora. Razão pela qual, para além de não poder tutelar apenas o interesse de uma parte (o usuário, por exemplo), seu dever é buscar a ponderação e, consequentemente, o equilíbrio entre os diversos interesses que lhes são cometidos. E entre estes figuram, por certo, a manutenção da higidez do mercado de distribuição de energia elétrica.

A intervenção política, no setor elétrico, com consequências sistemáticas desastrosas, não é propriamente novidadeira. Em 11 de setembro de 2012, a Medida Provisória 579, posteriormente convertida na Lei nº 12.783/2013, dispôs sobre os contratos de concessões de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, outorgados anteriormente à Lei nº 8.987/1995, e estabeleceu o regime de comercialização da energia gerada por usinas elétricas, em complemento ao instituído pela Lei nº 10.848/2004.

Não obstante os objetivos plasmados para a edição da norma, a sua aplicação prática revelou distorções regulatórias e concorrenciais graves, como reconhecido, inclusive, em auditoria operacional realizada pelo Tribunal de Contas da União. A auditoria teve o objetivo de avaliar a atuação gerencial e regulatória do Ministério de Minas e Energia (MME), da ANEEL, da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) e da Eletrobrás, assim como verificar a estrutura tarifária e os reflexos da Medida Provisória nº 579/2012 no setor elétrico brasileiro.[3] O Tribunal de Contas constatou que a redução de 20% das tarifas de energia elétrica decorrente da Medida Provisória nº 579/2012 estaria ultrapassada no final do ano de 2015. Além disso, no que tange aos custos da Conta de Desenvolvimento Energético, na projeção do biênio 2013-2014, constatou-se que, para sustentar as mudanças advindas pela medida provisória, foram gastos R$ 25 bilhões, em 2013, e R$ 36 bilhões, em 2014, totalizando R$ 61 bilhões.

Ambas as investidas políticas sobre as tarifas se configuram como uma falha regulatória denominada, por Cass Sunstein, Erros de diagnóstico e análises superficiais. De acordo com Sunstein, exemplo de erros de diagnósticos seriam “os casos em que o Legislador ou regulador, instado a se manifestar por conta de eventos singulares – que dificilmente se repetirão – ou fortes anseios populares momentâneos, edita normas sem submetê-las a exames mais apurados que indiquem os possíveis efeitos negativos gerados pelas mesmas [4].Alexandre Santos de Aragão[5] denomina essa influência de “voluntarismo regulatório”. Trata-se de medida regulatória levada a efeito não por fundamentos jurídico-econômicos, mas por paixões e pelo sentimento de impor a visão pessoal daqueles que se encontram em uma posição privilegiada para a tomada de decisões.

Atropelos dessas ordens subvertem a regulação. Maculam o compromisso regulatório (regulatory commitment) de estabilização do setor regulado e dos contratos de concessão. Produzem a seleção adversa de concessionários que alvitrem se valer de contatos políticos pouco republicanos no devir da execução dos contratos de concessão. As externalidades negativas são suportadas por todos os setores de infraestrutura. É uma falha da regulação que custa caro.

Rafael Véras
É coordenador da Coluna Direito da Infraestrutura. Professor do LLM em Infraestrutura e Regulação da FGV Direito Rio. Doutorando e Mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.

Você por dentro do assunto

Para que você fique ainda mais informado, separamos em nossa Loja Virtual algumas referências sobre o tema. Entre elas, destacamos “Direito da Infraestrutura”, obra coordenada por Marçal Justen Filho e Marco Aurélio de Barcelos Silva.

Dos autores Bruno Dantas e Sérgio Guerra, selecionamos a obra “Direito da Infraestrutura – Regulação e Controle do TCU”.

Direito da Infraestrutura – Temas de Organização do Estado, Serviços Públicos e Intervenção Administrativa”, de Emerson Gabardo e Guilherme de Salles Gonçalves.

Sebastião Botto de Barros Tojal e Jorge Henrique de Oliveira Souza são os coordenadores da obra “Direito e Infraestrutura – Portos e Transporte Aquaviário – 20 anos da Lei nº 10.233/2001” e “Direito e Infraestrutura – Rodovias e Ferrovias – 20 anos da Lei nº 10.233/2001”.

“Regulação e Infraestrutura” é uma obra coordenada por Alexandre Santos de Aragão, Anna Carolina Migueis Pereira e Letícia Lobato Anicet Lisboa.

Caso seu interesse seja especificamente por economia e infraestrutura, conheça o livro “Direito e Economia da Infraestrutura”, de Marcos Nóbrega.

Nossas revistas científicas também são ricas fontes de conteúdo atualizado  sobre o tema. Algumas publicações estão nos links abaixo.

REVISTA BRASILEIRA DE INFRAESTRUTURA – RBINF

REVISTA DE CONTRATOS PÚBLICOS – RCP

Notas
[1] BOGOSSIAN, André Martins. Riscos regulatórios e cumprimento de contratos. Disponível em https://regulacaoemnumeros-direitorio.fgv.br/post/riscos-regulatorios-e-cumprimento-de-contratos
[2] (STF – Recurso Extraordinário (RE) 574706/PR – Tribunal Pleno – Relatora Ministra Cármen Lúcia – Julgado em 15/03/2017 – Dje 02/10/2017).
[3] TCU. Acórdão nº 2.565/2014 – Plenário, rel. Min. José Jorge, j. 1º out. 2014.
[4] SUNSTEIN, Cass. After Rights Revolution: Reconceiving the Regulatory State. Massachustts: Harvard University Press, 1993. p. 86.
[5] ARAGÃO, Alexandre Santos de. Análise de Impacto Regulatório: Instrumento de Uma Regulação Mais Eficiente e Menos Invasiva. Revista Justiça e Cidadania, nº 129, Rio de Janeiro 2012. Disponível em: <http://www.editorajc.com.br/2012/07/analise-de-impacto-regulatorio-instrumento-de-uma-regulacao-mais-eficiente-e-menos-invasiva-2/> Acesso em: 27 jun. 2022.

Deixar uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *