Os polêmicos novos decretos regulamentadores do Marco Legal do Saneamento Básico

1 de junho de 2023

Foram publicados no dia 05/04/2023, em edição extra do DOU, dois novos decretos regulamentares sobre o Marco Legal do Saneamento Básico: o Decreto nº 11.466/2023 que estabelece “a metodologia para comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores de serviços públicos de abastecimento de água potável ou de esgotamento sanitário, considerados os contratos em vigor, com vistas a viabilizar o cumprimento das metas de universalização” e o Decreto nº 11.467/2023, que dispõe, dentre outros temas, sobre a prestação regionalizada dos serviços públicos de saneamento básico.

Pode se dizer que a percepção imediata acerca dos Decretos nºs 11.466 e 11.467/2023 é a de que tais regulamentos estão envoltos em polêmicas, tendo sido mal recepcionados por alguns veículos de imprensa e por políticos, chegando ambos a serem caracterizados inclusive como “retrocesso”.

A mensagem passada pela regulamentação contida nos Decretos nºs 11.466 e 11.467/2023 foi ainda especulada como responsável pela desfiliação voluntária de 3 empresas estatais (Sabesp, Copasa e Corsan) dos quadros da AESBE (Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento).

Num campo mais prático, os Decretos nºs 11.466 e 11.467/2023 já foram objeto de objeções, pois foram noticiadas tanto a possibilidade da proposição de Decretos Legislativos como a apresentação de uma ADPF em face destas novas regulamentações.

No caso da ADPF 1055, o Partido Novo alega que os Decretos nºs 11.466 e 11.467/2023 violam “os preceitos fundamentais da separação de Poderes (art. 2º da CRFB), da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, da CRFB), da redução das desigualdades regionais (art. 3.º, III, da CRFB), da prevalência dos direitos humanos (art. 4.º, II, da CRFB), da vida (art. 5.º, caput, da CRFB), da saúde (art. 6.º, caput, da CRFB), da moradia (art. 23, IX, da CRFB) do meio ambiente (art. 225, caput, da CRFB), do pacto federativo (art. 18, caput, e 25, §3.º, da CRFB) e da licitação (art. 37, XXI, e art. 175, caput, da CRFB)”.

Além disso, alega-se na ADPF que “os Decretos Regulamentares exorbitam o poder regulamentar da Presidência da República, expresso no art. 84, inc. IV, da CRFB, em afronta ao princípio da separação dos poderes”.

Por outro lado, registre-se que a edição dos Decretos nºs 11.466 e 11.467/2023 foi ao encontro de parecer do ex-Ministro do STF, Eros Roberto Grau, que, em 09/03/2023, ao responder consulta da já mencionada AESBE, entendeu que: 1) seria possível a edição de um novo regulamento que permitisse a regularização de contratos administrativos e a formalização de situações de fato; 2) seria admissível a extensão de prazo como forma de reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos (sejam de concessão ou de programa) cujo objeto seja a prestação de serviços de saneamento básico e 3) seria admissível a prestação direta de serviços públicos de saneamento básico por entidade que integra a administração de autarquia intergovernamental ou de ente federado integrado à autarquia intergovernamental.

Pois bem, analisando o Decreto nº 11.466/2023, verifica-se que no art. 1°, § 2º o “prestador poderá incluir no processo de comprovação da capacidade econômico-financeira eventuais situações de prestação dos serviços, por meio de contratos provisórios não formalizados, ou de contratos, instrumentos ou relações irregulares ou de natureza precária, hipóteses em que a prestação deverá ser regularizada junto ao titular ou à estrutura de prestação regionalizada, até 31 de dezembro de 2025, e a regularização estará condicionada à efetiva comprovação da capacidade econômico-financeira do prestador”.

Entretanto, o art. 11-B, § 1º da Lei nº 11.445/2007 estabelece clara e expressamente que os contratos em vigor que não possuírem metas de universalização terão até 31 de março de 2022 para viabilizar essa inclusão.

Bom, partindo da premissa que, nos termos do art. 84, IV da CF/88, “o regulamento não poderá alterar disposição legal, tampouco criar obrigações diversas das previstas em disposição legislativa[1]”, é possível defender que o Decreto nº 11.466/2023 inovou na ordem jurídica e trouxe prazo diverso do contido no texto legal, qual seja, o art. 11-B, § 1º da Lei nº 11.445/2007, algo que, em tese, compromete a higidez do regulamento.

E mais, o aludido regulamento, ainda estabelece que a vigência do instrumento a ser celebrado para regularização da prestação do serviço não poderá ultrapassar 31 de dezembro de 2033 (art. 3º, § 3º).

Todavia, extrai-se da literalidade dos arts. 10, §3º e 11-B, §8º da Lei nº 11.445/2007, as seguintes conclusões: a) a prestação indireta do serviço público de saneamento básico só pode se dar após a realização de licitação para celebração de contrato de concessão; b) é vedada a prestação indireta do serviço público de saneamento básico por meio de contrato de programa, convênio, termo de parceria ou outros instrumentos de natureza precária; c) os contratos de programa regulares vigentes só permanecem em vigor até o advento do seu termo contratual e d) os contratos provisórios não formalizados e os vigentes prorrogados em desconformidade com os regramentos estabelecidos no Novo Marco Legal do Saneamento Básico (NMLSB) serão considerados irregulares e precários.

Assim, o art. 3º, § 3º do Decreto nº 11.466/2023 indubitavelmente conferiu um tratamento aos contratos irregulares e precários diverso do estabelecido nos arts. 10, §3º e 11-B, §8º da Lei nº 11.445/2007.

Bom, considerando, que “a finalidade da competência regulamentar é a de produzir normas requeridas para a execução de leis quando estas demandem uma atuação administrativa a ser desenvolvida dentro de um espaço de liberdade exigente de regulação ulterior, a bem de uma aplicação uniforme da lei[2]“, também o art. 3º, § 3º o Decreto nº 11.466/2023 padece de um vício de legalidade.

Partindo para a análise do Decreto nº 11.467/2023, um primeiro destaque é o art. 6º, IV, que estabelece que a prestação regionalizada do serviço público de saneamento básico poderá ser estruturada em: Região Integrada de Desenvolvimento – RIDE[3] – unidade análoga às regiões metropolitanas, porém, situada em mais de uma unidade federativa, instituída por lei complementar federal.

Por seu turno, perceba-se que o art. 3º, VI da Lei nº 11.445/2007 prevê apenas que a prestação regionalizada pode ser estruturada em: região metropolitana; unidade regional de saneamento básico e bloco de referência. Não havendo, desta forma, menção à Região Integrada de Desenvolvimento – RIDE.

Ora, considerando que um decreto “não pode inovar na ordem jurídica, criando direitos, obrigações, proibições, medidas punitivas, até porque ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, conforme artigo 5º, II, da Constituição; ele tem que se limitar a estabelecer normas sobre a forma como a lei vai ser cumprida pela Administração[4]”, o art. 6º, IV do Decreto nº 11.467/2023 traria uma previsão ultra legem com relação à Lei nº 11.445/2007 e, portanto, ilegal.

Outros dispositivos do art. 6º do Decreto nº 11.467/2023 que também merecem destaque são os parágrafos 16 e 17, que estabelecem que desde que autorizado pela entidade de governança interfederativa e pela entidade reguladora, será permitida a prestação do serviço de saneamento básico por parte de entidade que integre a administração pública estadual a município da estrutura de prestação regionalizada de serviços de saneamento estruturada em região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião.

Em outros termos, como bem definiu a nota técnica da Associação Livres[5], os parágrafos 16 e 17 do art. 6º do Decreto nº 11.467/2023 “permitem que os Municípios que fazem parte de uma unidade de prestação regionalizada deleguem às empresas estatais controladas pelos respectivos Estados a execução dos serviços de saneamento básico sem licitação”.

De outra banda, é preciso levar em consideração duas coisas: 1ª) o fato de que o art. 8°, II da Lei nº 11.445/2007 preconiza que exercem a titularidade dos serviços públicos de saneamento básico o Estado, em conjunto com os Municípios que compartilham efetivamente instalações operacionais integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, instituídas por lei complementar estadual, no caso de interesse comum e, 2ª) que o caput do art. 10 da Lei nº 11.445/2007 deixa consignado que a prestação dos serviços públicos de saneamento básico por entidade que não integre a administração do titular depende da celebração de contrato de concessão, mediante prévia licitação.

E aqui, neste ponto específico temos um grande problema, pois, ao contrário das hipóteses anteriores até aqui analisadas, não estamos diante de situações em que é possível afirmar categoricamente que houve uma evidente extrapolação regulamentar por parte do Decreto nº 11.467/2023.

O Decreto nº 11.467/2023 conferiu uma interpretação aos arts. 8°, II e 10 da Lei nº 11.445/2007 no sentido de autorizar a atribuição da prestação do serviço de saneamento básico por parte de empresas estatais estaduais, pois a titularidade de tal serviço também seria dos Estados, vez que a licitação só é a regra se o prestador não for integrante da estrutura administrativa do titular, o que não se aplicaria nos casos de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, onde a titularidade dos serviços de saneamento seria dos Municípios em conjunto com o respectivo Estado.

E diga-se mais, a interpretação contida no Decreto nº 11.467/2023 vem sendo debatida desde 2021, conforme se extrai de resposta a uma consulta feita pela CAGEPA – Companhia de Água e Esgotos da Paraíba ao advogado Wladimir António Ribeiro: “Pode autarquia interfederativa compulsória, por sua instância colegiada, da qual faça parte o Estado-membro, deliberar que o prestador dos serviços é companhia de saneamento controlada pelo indigitado Estado-membro? Em caso positivo, haverá prestação direta? Em tal hipótese, seria necessária a celebração de instrumento contratual? Tal prestação pode possuir prazo determinado? Considerando que autarquia metropolitana ou microrregional assume a posição de titular, poderá, nessa condição, por seu órgão colegiado, deliberar que o prestador dos serviços seja empresa controlada por quaisquer dos entes da Federação que integre o colegiado, inclusive empresa controlada pelo Estado-membro, configurando a prestação direta dos serviços públicos enquanto permanecer essa deliberação”.

Tal a interpretação adotada pelo Decreto nº 11.467/2023 já vem sendo adotada pelo Estado da Paraíba com relação à CAGEPA, tendo sido alvo das seguintes críticas por parte de Mauricio Portugal Ribeiro[6]: “A justificativa utilizada para a institucionalização da Cagepa como prestadora dos serviços sem licitação nos 39 municípios com os quais ela não tem contrato válido se baseia na ideia de que o estado da Paraíba compartilha a titularidade dos serviços com os municípios e, por isso, poderia descentralizar a prestação dos serviços para a Cagepa. O problema é que o Supremo Tribunal Federal já decidiu na ADI 1842/RJ que a titularidade dos serviços é da entidade regional nos casos de interesse comum, ou dos municípios, na hipótese de interesse local. O estado da Paraíba não é, portanto, titular ou cotitular dos serviços, de maneira que não é viável a prestação dos serviços pela Cagepa sem licitação”.

Registre-se que a Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (ABCON/SINDCON) ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7335 para questionar dispositivos de lei paraibana que preveem a prestação direta de serviços de saneamento básico pela Companhia de Água e Esgotos da Paraíba (Cagepa), uma sociedade de economia mista, em microrregiões do estado.

Ou seja, de forma indireta, a interpretação adotada pelo Decreto nº 11.467/2023 está pendente de análise pelo Supremo Tribunal Federal.

Feita esta análise dos Decretos nºs 11.466 e 11.467/2023, cumpre alertar que o STF[7] não reconhece a possibilidade de controle concentrado de atos que consubstanciam mera ofensa reflexa à Constituição, como é caso de decretos regulamentares (v.g. ADPF 169 AgR), razão pela qual o êxito da ADPF proposta pelo Partido Novo em face das novas regulamentações do marco legal do saneamento básico é bastante incerto.

Para finalizar, é preciso pontuar, de forma bem pragmática, e sem prejuízo da análise feita nas linhas anteriores, que os Decretos nºs 11.466 e 11.467/2023 devem ser analisados sob o prisma do princípio maior do saneamento que é a universalização para a população ao acesso à água e esgoto tratados.

Assim, se, na prática, aumentam as chances de universalização, há espaço sim, porque não, para uma ou outra interpretação mais “arrojada” por assim dizer. Do contrário, havendo uma medida que, na prática, revele-se como um empecilho à universalização, é preciso repeli-la.

Aldem Johnston Barbosa Araújo
Advogado em Mello Pimentel Advocacia,
pós-graduado em Direito Público,
integrante da Comissão de Direito Administrativo da OAB/PE

Referências:
[1] Moraes, Alexandre de, Direito constitucional, 33ª. ed. rev. e atual. até a EC nº 95, de 15 de dezembro de 2016, São Paulo: Atlas, 2017, pág. 350.
[2] Mello, Celso Antônio Bandeira de, Curso de direito administrativo, 21ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, pág. 336.
[3] Existem apenas 3 RIDEs no Brasil criadas por Lei Complementar: RIDE-DF (LC 94/1998); RIDE Teresina (LC 112/2001) e RIDE Petrolina-Juazeiro (LC 113/2001).
[4] Di Pietro, Maria Sylvia Zanella, Direito administrativo, 27ª. ed., São Paulo: Atlas, 2014, pág. 92.
[5] Disponível em https://www.eusoulivres.org/publicacoes/decreto-ilegal-do-governo-lula-ameaca-acesso-ao-saneamento-basico/. Acesso em 10/04/023.
[6] https://www.agenciainfra.com/blog/infradebate-o-maior-descumprimento-do-novo-marco-legal-do-saneamento-o-caso-da-regionalizacao-do-estado-da-paraiba/ acesso em 10/04/2023.
[7] Para a nossa Suprema Corte: “Se a interpretação administrativa da lei, que vier a consubstanciar-se em decreto executivo, divergir do sentido e do conteúdo da norma legal que o ato secundário pretendeu regulamentar, quer porque tenha este se projetado ultra legem, quer porque tenha permanecido citra legem, quer, ainda, porque tenha investido contra legem, a questão caracterizará, sempre, típica crise de legalidade, e não de inconstitucionalidade, a inviabilizar, em consequência, a utilização do mecanismo processual da fiscalização normativa abstrata. O eventual extravasamento, pelo ato regulamentar, dos limites a que materialmente deve estar adstrito poderá configurar insubordinação executiva aos comandos da lei. Mesmo que, a partir desse vício jurídico, se possa vislumbrar, num desdobramento ulterior, uma potencial violação da Carta Magna, ainda assim estar-se-á em face de uma situação de inconstitucionalidade reflexa ou oblíqua, cuja apreciação não se revela possível em sede jurisdicional concentrada”. (ADI 996 MC e ADI 4.176 AgR)

 

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