O Regime Constitucional dos Tribunais de Contas

21 de setembro de 2018

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Carlos Ayres Britto, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal

1 – A natural diversidade de interpretação dos dispositivos jurídicos

1.1 Sempre que participo de um ritual católico (embora seja verdade que não participo sempre), nunca deixo de rezar o “Pai Nosso”. E é de longa data que verifico ser o substantivo feminino “tentação”, ali, encarado como um pedaço de mau caminho. Um afasta de mim esse cálice, pois é isso que deduzo do trecho “não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal, amém”. Entretanto, eu me remeto para Epicuro (341/270 a.C.), na Grécia antiga, e vou identificar sobre o mesmo tema (a tentação) um juízo de valor diametralmente diferenciado, porquanto expresso neste aconselhamento: “quando a tentação chegar, ceda logo antes que ela vá embora”.

1.2 Trago à baila esta comparação prosaica para lembrar o fato de que, nos domínios da Ciência Jurídica, os mesmos dispositivos-objeto se prestam a interpretações diferentes e até mesmo contrárias. Tal como se dá com o Evangelho de Cristo, a suscitar nos evangelistas posturas interpretativas que vão da descoincidência lateral à oposição frontal. Com o que já antecipo minhas escusas pela discrepância de entendimento entre o que já se escreveu (e bem) sobre os Tribunais de Contas e as breves notas que, nesta exposição, levam a minha assinatura.

1.3 Como de remansoso conhecimento, a lei em sentido material quer valer para todas as ações a que se refere e por isso é que se dota do atributo da generalidade. Quer valer para todos os sujeitos a quem se destina e por esse motivo se confere a característica da impessoalidade. Quer valer para sempre (enquanto não for revogada, lógico) e daí o seu traço ontológico da abstratividade. Ora, querendo-se assim genérica, impessoal e abstrata, é dizer, querendo-se válida para tudo, para todos e para sempre, a lei não tem como fugir do discurso esquemático ou clicherizador da realidade; que é um discurso eminentemente simplista, reducionista. Do que decorre ter que pagar um preço por essa linguagem-rótulo e o preço que a lei paga por incidir nesse tipo de comunicação verbal contracta é a abertura dos seus flancos para o dissenso interpretativo.

 

2 – O Tribunal de Contas da União enquanto órgão não-integrante do Congresso Nacional

2.1 Feita a ressalva, começo por dizer que o Tribunal de Contas da União não é órgão do Congresso Nacional, não é órgão do Poder Legislativo. Quem assim me autoriza a falar é a Constituição Federal, com todas as letras do seu art. 44, litteris: “O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal” (negrito à parte). Logo, o Parlamento brasileiro não se compõe do Tribunal de Contas da União. Da sua estrutura orgânica ou formal deixa de fazer parte a Corte Federal de Contas e o mesmo é de se dizer para a dualidade Poder Legislativo/Tribunal de Contas, no âmbito das demais pessoas estatais de base territorial e natureza federada.

2.2 Não que a função de julgamento de contas seja desconhecida das Casas Legislativas.1 Mas é que os julgamentos legislativos se dão por um critério subjetivo de conveniência e oportunidade, critério, esse, que é forma discricionária de avaliar fatos e pessoas. Ao contrário, pois, dos julgamentos a cargo dos Tribunais de Contas, que só podem obedecer a parâmetros de ordem técnico-jurídica; isto é, parâmetros de subsunção de fatos e pessoas à objetividade das normas constitucionais e legais.

2.3 A referência organizativo-operacional que a Lei Maior erige para os Tribunais de Contas não reside no Poder Legislativo, mas no Poder Judiciário. Esta a razão pela qual o art. 73 da Carta de Outubro confere ao Tribunal de Contas da União, “no que couber”, as mesmas atribuições que o art. 96 outorga aos tribunais judiciários. Devendo-se entender o fraseado “no que couber” como equivalente semântico da locução mutatis mutandis; ou seja, respeitadas as peculiaridades de organização e funcionamento das duas categorias de instituições públicas (a categoria do Tribunal de Contas da União e a categoria dos órgãos que a Lei Maior da República eleva à dignidade de um tribunal judiciário).

2.4 Mas não se esgota nas atribuições dos tribunais judiciários o parâmetro que a Lei das Leis estabelece para o Tribunal de Contas da União, mutatis mutandis. É que os ministros do Superior Tribunal de Justiça também comparecem como referencial (em igualdade de condições, averbe-se) para “garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens” dos ministros do TCU, tudo conforme os expressos dizeres do x 3° do art. Constitucional de n° 73.2

3 – O Tribunal de Contas da União como instituição não-subalterna ao Congresso Nacional

3.1 Diga-se mais: além de não ser órgão do Poder Legislativo, o Tribunal de Contas da União não é órgão auxiliar do Parlamento Nacional, naquele sentido de inferioridade hierárquica ou subalternidade funcional. Como salta à evidência, é preciso medir com a trena da Constituição a estatura de certos órgãos públicos para se saber até que ponto eles se põem como instituições autônomas e o fato é que o TCU desfruta desse altaneiro status normativo da autonomia. Donde o acréscimo de idéia que estou a fazer: quando a Constituição diz que o Congresso Nacional exercerá o controle externo “com o auxílio do Tribunal de Contas da União” (art. 71), tenho como certo que está a falar de “auxílio” do mesmo modo como a Constituição fala do Ministério Público perante o Poder Judiciário. Quero dizer: não se pode exercer a jurisdição senão com a participação do Ministério Público. Senão com a obrigatória participação ou o compulsório auxílio do Ministério Público. Uma só função (a jurisdicional), com dois diferenciados órgãos a servi-la. Sem que se possa falar de superioridade de um perante o outro.

3.2 As proposições se encaixam. Não sendo órgão do Poder Legislativo, nenhum Tribunal de Contas opera no campo da subalterna auxiliaridade. Tanto assim que parte das competências que a Magna Lei confere ao Tribunal de Contas da União nem passa pelo crivo do Congresso Nacional ou de qualquer das Casas Legislativas Federais (bastando citar os incisos III, VI e IX do art. 71). O TCU se posta é como órgão da pessoa jurídica União, diretamente, sem pertencer a nenhum dos três Poderes Federais. Exatamente como sucede com o Ministério Público, na legenda do art. 128 da Constituição, incisos I e II.

3.3 Toda essa comparação com o Ministério Público é, deveras, apropriada. Assim como não se pode exercer a jurisdição com o descarte do Parquet, também é inconcebível o exercício da função estatal de controle externo sem o necessário concurso ou o contributo obrigatório dos Tribunais de Contas. Mas esse tipo de auxiliaridade nada tem de subalternidade operacional, vale a repetição do juízo. Traduz a co-participação inafastável de um dado Tribunal de Contas no exercício da atuação controladora externa que é própria de cada Poder Legislativo, no interior da respectiva pessoa estatal-federada.

3.4 O que se precisa entender é muito simples. No âmbito da função legislativa, que é a função mais típica do Parlamento ou a função que empresta seu nome ao Poder que dela se encarrega, o prestígio que a Lei Maior confere ao Parlamento mesmo é o maior possível: ele é quem dá a última palavra a respeito de todo e qualquer ato legislativo (mesmo quando se trate da edição de “medidas provisórias”). Mas não é assim que ocorre no círculo da função de controle externo, pois algumas atividades de controle nascem e morrem do lado de fora das Casas Legislativas. A partir da consideração de que as próprias unidades administrativas do Poder Legislativo Federal são fiscalizadas é pelo Tribunal de Contas da União (inciso IV do art. 71 da CF). Como poderia, então, o Poder administrativamente fiscalizado sobrepairar sobre o órgão fiscalizante?

3.5 Se bem observar o analista jurídico, o Congresso Nacional, em matéria de controle externo, ficou adstrito ao exercício das seguintes competências constitucionais: a) “julgar anualmente as contas prestadas pelo Presidente da República e apreciar os relatórios sobre a execução dos planos de governo”; b) “fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer das suas Casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta” (incisos IX e X do art. 49 da C.F, sem os caracteres em negrito). Do lado de fora restaram, então, contas, relatórios e atos que não têm a protagonizá-los o Poder Executivo, quer por modo direto, quer indireto, exatamente porque a respectiva competência controladora cai sob a alçada do Tribunal de Contas da União (TCU). Não do Congresso Nacional, propriamente.

3.6 Mas é de todo óbvio que o Parlamento Federal, agindo por si ou por qualquer de suas Casas ou ainda por Comissão específica, é de todo óbvio que ele não fica impedido de sindicar sobre as unidades administrativas, agentes públicos e até pessoas privadas que atuem externamente ao Poder Executivo. Só que, nestas suposições, tem que recorrer aos préstimos do TCU para saber: a) da legalidade de despesas e receitas públicas; b) da regularidade de contas, sob os aspectos orçamentário, financeiro, patrimonial, contábil e operacional. Logo, tem que usar o TCU como ponte e para isso é que a Magna Lei fez embutir nas competências desse órgão (o TCU):

realizar, por iniciativa própria, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Comissão técnica ou de inquérito, inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e demais entidades referidas no inciso II. (art. 71, inciso IV, sem grafia negritada).
3.7 De todos esses aspectos do controle externo, dois preponderam nitidamente:

I – a verificação da compatibilidade da receita e da despesa com a lei orçamentária, por ser a lei orçamentária, no cotidiano da Administração Pública, o mais importante dos diplomas normativos infraconstitucionais. Tanto assim que o art. 85 do Texto Magno, inciso VI, categoriza como crime de responsabilidade os atentados contra ela;

II – a gestão propriamente operacional da res publica, por ser o controle operacional aquele que busca saber até que ponto os atos de aplicação administrativa da lei homenagearam os princípios constitucionais da impessoalidade, moralidade, eficiência, publicidade e mais os princípios da economicidade, igualdade (que não se confunde com a impessoalidade) e eficácia.3

4 – A independência e harmonia entre o TCU e o Congresso Nacional

4.1 Por este modo de ver as coisas, avulta a indispensabilidade ou a rigorosa essencialidade do papel institucional das Cortes de Contas. De uma parte, não é o Tribunal de Contas da União um aparelho que se acantone na intimidade estrutural do Congresso Nacional. De outra banda, não opera essa mesma Corte de Contas como órgão meramente auxiliar do Congresso Nacional. Sua atuação jurídica se dá a latere do Congresso, junto dele, mas não do lado de dentro.

4.2 Em rigor de exame teórico ou apreciação dogmática, Poder Legislativo e Tribunal de Contas são instituições que estão no mesmo barco, em tema de controle externo, mas sob garantia de independência e imposição de harmonia recíproca. Independência, pelo desfrute de competências constitucionais que se não confundem (o que é de um não é do outro, pois dizer o contrário seria tornar inócua a própria explicitação enumerativa que faz a Constituição para cada qual dos dois órgãos públicos). Harmonia, pelo fim comum de atuação no campo do controle externo, que é um tipo contábil, financeiro, orçamentário, operacional e patrimonial de controle sobre todas as pessoas estatais-federadas e respectivos agentes, ou sobre quem lhes faça as vezes.4

4.3 Tudo fica mais claro quando se faz a distinção inicial entre competências e função. A função de que nos ocupamos é a mesma, pois outra não é senão o controle externo. As competências, no entanto, descoincidem. As do Congresso Nacional estão arroladas nos incisos IX e X do art. 49 da Constituição, enquanto as do TCU são as que desfilam pela comprida passarela do art. 71 da mesma Carta Magna. Valendo anotar que parte dessas competências a Corte Federal de Contas desempenha como forma de auxílio ao Congresso nacional, enquanto a outra parte sequer é exercida sob esse regime de obrigatória atuação conjugada.

4.4 Se, por um lado, há uma zona de interseção operacional (o TCU a lavrar em seara preparatória da atuação congressual, como sucede ao nível das contas anualmente prestadas pelo Presidente da República), de outra parte esse campo de labor conjunto deixa de existir; quer dizer: o TCU não faz plantio para outro colher, pois se coloca ao mesmo tempo na linha de largada e na linha de chegada dos respectivos processos (verbi gratia, o julgamento das contas dos próprios deputados federais e senadores da República, na condição de administradores públicos).

5 – A distinção entre função, competências e atribuições

5.1 Realmente, nem toda função de controle externo, a cargo do TCU, é compulsoriamente partilhada com o Congresso Nacional. Além disso, é preciso conceituar função e competência como coisas distintas, pois a função é uma só e as competências é que são múltiplas. A função é unicamente a de controle externo e tudo o mais já se traduz em competências, a saber: competência opinativa, competência judicante, competência consultiva e informativa, competência sancionadora, competência corretiva, etc.

5.2 Primeiro, lógico, vem a função, que é a atividade típica de um órgão. Atividade que põe o órgão em movimento e que é a própria justificativa imediata desse órgão (atividade-fim, portanto). Depois é que vêm as competências, que são poderes instrumentais àquela função. Meios para o alcance de uma específica finalidade.

5.3 Necessário é reconhecer, porém, que a Lei Maior, ora habilita um só órgão público para o exercício de mais de uma função essencial do Estado, ora coloca uma só função essencial do Estado aos cuidados de mais de um órgão. A jurisdição, por exemplo, é titularizada pelo Poder Judiciário, mas dela participa o Ministério Público (definido constitucionalmente como “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado”, na legenda do art. 127, caput, parte inicial). Já o Poder Legislativo, esse é o órgão que exerce a função de legislar e a do controle externo. Aqui, nem sempre dando a palavra final. Ali, sempre.

5.4 Mas a dualidade função/competência ainda faz subir ao palco da especulação teórica o tema das atribuições, pois é verdade que o art. 73 da Constituição emprega tal substantivo. E o faz para igualar o TCU aos tribunais judiciários, sob a cláusula da mencionada expressão “no que couber”. Não sendo difícil compreender que tais atribuições tomam o sentido técnico de prerrogativas; isto é, situações jurídicas ativas que envolucram o exercício das precitadas competências. Na perspectiva, óbvio, do empírico desembaraço de cada uma delas.

5.5 Dizendo a mesma coisa com outras palavras, as atribuições do TCU são prerrogativas e, como tais, implicam o desfrute de condições especialmente propiciadoras do melhor desempenho possível das competências que a ele, TCU, foram constitucionalmente adjudicadas. Já as prerrogativas outorgadas aos Ministros de Contas (não exatamente ao TCU), conservam elas a significação técnica de situação jurídica ativa, mas no que tange ao exercício altivo do cargo. Não às competências do Órgão em si.

6 – Os Tribunais de Contas enquanto órgãos não-exercentes da função jurisdicional do Estado

6.1 Com esta separação conceitual, fica evidenciado que os Tribunais de Contas não exercem a chamada função jurisdicional do Estado. A função jurisdicional do Estado é exclusiva do Poder Judiciário e é por isso que as Cortes de Contas: a) não fazem parte da relação dos órgãos componenciais desse Poder (o Judiciário), como se vê da simples leitura do art. 92 da Lex Legum; b) também não se integram no rol das instituições que foram categorizadas como instituições essenciais a tal função (a jurisdicional), a partir do art. 127 do mesmo Código Político de 1988.

6.2 Note-se que os julgamentos a cargo dos Tribunais de Contas não se caracterizam pelo seu impulso externo ou non-ex-officio. Deles não participam advogados, necessariamente, porque a indispensabilidade dessa participação apenas se dá ao nível do processo judiciário (art. 133 da CF) Inexiste a figura dos “litigantes” a que se refere o inciso LV do art. 5° da Constituição. E o “devido processo legal” que os informa somente ganha os contornos de um devido processo legal (ou seja, com as vestes do contraditório e da ampla defesa), se alguém passa à condição de sujeito passivo ou acusado, propriamente.5

6.3 Algumas características da jurisdição, no entanto, permeiam os julgamentos a cargo dos Tribunais de Contas. Primeiramente, porque os TC’s julgam sob critério exclusivamente objetivo ou da própria técnica jurídica (subsunção de fatos e pessoas à objetividade das normas constitucionais e legais). Segundamente, porque o fazem com a força ou a irretratabilidade que é própria das decisões judiciais com trânsito em julgado. Isto, quanto ao mérito das avaliações que as Cortes de Contas fazem incidir sobre a gestão financeira, orçamentária, patrimonial, contábil e operacional do Poder Público. Não, porém, quanto aos direitos propriamente subjetivos dos agentes estatais e das demais pessoas envolvidas em processos de contas, porque, aí, prevalece a norma constitucional que submete à competência judicante do Supremo Tribunal Federal a impetração de habeas corpus, mandado de segurança e habeas data contra atos do TCU (art. 102, inciso I, alínea d). Por extensão, caem sob a competência dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, conforme a situação, o processo e o julgamento dessas mesmas ações constitucionais contra atos dos demais Tribunais de Contas.6

6.4 Neste lanço, é de se enfatizar que o Magno Texto Federal não falou de atos do presidente do TCU. Falou de atos da própria Corte de Contas, enquanto pressupostos de ajuizamento dos citados remédios heróicos. Remédios que têm por objeto, como sabido, a tutela de direitos subjetivos ou direitos referidos a alguém em particular. E em se tratando de direito não amparado por habeas corpus nem por habeas data, mas também privados dos atributos da certeza e liquidez, resta patente que sua defesa em juízo pode se dar por ação ordinária.

6.5 Em síntese, pode-se dizer que a jurisdição é atividade-fim do Poder Judiciário, porque, no âmbito desse Poder, julgar é tudo. Ele existe para prestar a jurisdição estatal e para isso é que é forrado de competências e atribuições. Não assim com os Tribunais de Contas, que fazem do julgamento um dos muitos meios ou das muitas competências para servir à atividade-fim do controle externo.

7 – A natureza político-administrativa dos Tribunais de Contas

7.1 Por outro aspecto, ajunte-se que nenhum Tribunal de Contas é tribunal singelamente administrativo (ao contrário do que se tem afirmado, amiudadamente). Não pode ser um tribunal tão-somente administrativo um órgão cujo regime jurídico é centralmente constitucional. É dizer: os Tribunais de Contas têm quase todo o seu arcabouço normativo montado pelo próprio Poder Constituinte. Assim no plano da sua função, como respeitantemente às suas competências e atribuições e ainda quanto ao regime jurídico dos agentes que o formam.

7.2 Com efeito, o recorte jurídico-positivo das Casas de Contas é nuclearmente feito nas pranchetas da Constituição. Foi o legislador de primeiríssimo escalão quem estruturou e funcionalizou todos eles (os Tribunais de Contas), prescindindo das achegas da lei menor. É só abrir os olhos sobre os 6 artigos e os 40 dispositivos que a Lei das Leis reservou às Cortes de Contas (para citar apenas a seção de n° IX do capítulo atinente ao Poder Legislativo) para se perceber que somente em uma oportunidade é que existe menção à lei infraconstitucional. Menção que é feita em matéria de aplicação de sanções (inciso VIII do art. 71), porque, em tudo o mais, o Código Supremo fez questão de semear no campo da eficácia plena e da aplicabilidade imediata.

7.3 Ora, como afirma o jurisconsulto português José Joaquim Gomes Canotilho, “a Constituição é o estatuto jurídico do fenômeno político”. E é claro que o fenômeno político, nesta formulação conceitual, está a se referir à política enquanto atividade de máxima abrangência coletiva. A que se reporta às relações dos órgãos de governo consigo mesmos e às relações travadas entre governantes e governados, que são as relações jurídicas primárias por excelência. E por que primárias por excelência, tais relações implicam o manejo de competências, atribuições, deveres e direitos que têm na Constituição Positiva a sua fonte primaz de normatização.

7.4 Esse o locus jurídico-positivo de nascimento e movimentação dos Tribunais de Contas, a lhes conferir dimensão antes de tudo política. A natureza administrativa lhes advém num segundo momento lógico, já por efeito das leis infraconstitucionais; pois o certo é que a atividade administrativa está para a lei assim como a atividade governamental está para a Constituição. Daí a própria Lex Maxima, pela cabeça do seu art. 18, categorizar como de natureza ambivalentemente política e administrativa as pessoas constitutivas das quatro ordens estatais federadas do Brasil.

7.5 Não é do portentoso (e inesquecível) Miguel de Seabra Fagundes a lapidar definição de que “administrar é aplicar a lei de ofício”? Mostrando, com isso, o vínculo operacional imediato entre administrar e a lei infraconstitucional? A Administração, portanto, a operar debaixo da lei, por ser a lei o seu estatuto jurídico próprio? Mas o Governo, os órgãos de governo, os órgãos de estatura política têm o seu diploma jurídico próprio é na Constituição, e não na lei. A lei dá imediata seqüência à Constituição, retoma a materialidade desse ou daquele dispositivo constitucional, porém as linhas mestras dos órgãos públicos de existência necessária ressaem é do Magno Texto, diretamente.7

7.6 Daqui se infere que as Casas de Contas se constituem em tribunais de tomo político e administrativo a um só tempo. Político, nos termos da Constituição; administrativo, nos termos da lei. Tal como se dá com a natureza jurídica de toda pessoa estatal federada, nesta precisa dicção constitucional: “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos nos termos desta Constituição” (art. 18, caput, negrito à parte). E salta à razão que se os Tribunais de Contas não ostentassem dimensão política não ficariam habilitados a julgar as contas dos administradores e fiscalizar as unidades administrativas de qualquer dos três Poderes estatais, nos termos da regra insculpida no inciso IV do art. 71 da Carta de Outubro (salvante as contas anualmente prestadas pelo Chefe do Poder Executivo). Sequer receberiam o nome de “Tribunais” e nunca teriam em órgãos e agentes judiciários de proa o seu referencial organizativo-operacional. Muito menos se dotariam de um Ministério Público próprio ou especial.

7.7 Esse o pano de fundo para uma proposição complementar: a proposição de que os processos instaurados pelos Tribunais de Contas têm sua própria ontologia. São processos de contas, e não processos parlamentares, nem judiciais, nem administrativos. Que não sejam processos parlamentares nem judiciais, já ficou anotado e até justificado (relembrando, apenas, que os Parlamentos decidem por critério de oportunidade e conveniência). Que também não sejam processos administrativos, basta evidenciar que as Instituições de Contas não julgam da própria atividade externa corporis (quem assim procede são os órgãos administrativos), mas da atividade de outros órgãos, outros agentes públicos, outras pessoas, enfim. Sua atuação é conseqüência de uma precedente atuação (a administrativa), e não um proceder originário. E seu operar institucional não é propriamente um tirar competências da lei para agir, mas ver se quem tirou competências da lei para agir estava autorizado a fazê-lo e em quê medida.8

8 – O controle externo e seu vínculo funcional com o princípio republicano

8.1 Tão elevado prestígio conferido ao controle externo e a quem dele mais se ocupa, funcionalmente, é reflexo direto do princípio republicano. Pois, numa República, impõe-se responsabilidade jurídica pessoal a todo aquele que tenha por competência (e conseqüente dever) cuidar de tudo que é de todos, assim do prisma da decisão como do prisma da gestão. E tal responsabilidade implica o compromisso da melhor decisão e da melhor administração possíveis. Donde a exposição de todos eles (os que decidem sobre a “res publica” e os que a gerenciam) à comprovação do estrito cumprimento dos princípios constitucionais e preceitos legais que lhes sejam especificamente exigidos. A começar, naturalmente, pela prestação de contas das sobreditas gestões orçamentária, financeira, patrimonial, contábil e operacional.9

8.2 É essa responsabilidade jurídica pessoal (verdadeiro elemento conceitual da República enquanto forma de governo) que demanda ou que exige, assim, todo um aparato orgânico-funcional de controle externo. E participando desse aparato como peça-chave, os Tribunais de Contas se assumem como órgãos impeditivos do desgoverno e da desadministração.

8.3 O desiderato constitucional é este. Se, na prática, os Tribunais de Contas muito se distanciam da função que lhes confiou a gloriosa Lex Legum de 1988, trata-se de disfunção ou de defecção que urge corrigir. Tal como se deu no âmbito do Ministério Público, instituição que, zelosamente guardada pela Constituição, da Constituição cuida com um tipo de zelo que mais e mais desperta na consciência coletiva toda admiração e todo aplauso. No que já está sendo seguido (o Ministério Público) por largos segmentos do Poder Judiciário, notadamente os formados por juízes singulares.

8.4 A própria vida animal é dominada pelo princípio de que a função é que faz o órgão, numa típica relação de fim para meio; ou seja, a função comparece enquanto fim e o órgão enquanto meio. A significar, então, que todo o prestígio do órgão é derivado, pois sua valiosidade fica na dependência do serviço que possa prestar à função. E o certo é que tudo isto se reproduz na estrutura anátomo-fisiológica dos órgãos que formam o aparelho de Estado. Ou eles funcionam bem, ou tendem a embotar. E pelo embotamento operacional, assujeitam-se mais e mais a pressões sociais de pura e rasa extinção.

 

1 – A Constituição de 1988 deixa claro que é da competência exclusiva do Congresso Nacional “julgar anualmente as contas prestadas pelo Presidente da República e apreciar os relatórios sobre a execução dos planos de governo” (inciso X do art. 49).

2 – De lembrar que as disposições constitucionais sobre o Tribunal de Contas da União se reproduzem nas Constituições e Leis Orgânicas dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios, respectivamente, por expresso desígnio da própria Lei Maior do País. Confira-se: “Art. 75. As normas estabelecidas nesta seção aplicam-se, no que couber, à organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios”.

3 – É velando pela observância do princípio da moralidade que os Tribunais de Contas se põem a serviço do mais expressivo conteúdo desse princípio, que é a probidade administrativa. Cujo desrespeito é também tipificador do crime de responsabilidade (inciso V do art. 85 da C.F.) e ensejador das seguintes sanções: “(…) suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível” (§ 5° do art. 37 da mesma Carta Federal).

4 – Convindo asseverar que o controle operacional diz com a exigência que faz o art. 37 da Magna Carta Federal quanto ao modo de se aplicar a lei, administrativamente, que é um modo inafastavelmente impessoal, moral, público e eficiente. Os Tribunais de Contas fazem esse tipo de julgamento é e assim que eles se tornam órgãos especialmente habilitados pela Constituição para o impedimento da desadministração. Tornando-se, além do quê, muito mais que simples órgãos de aplicação da lei para se transformar em órgãos de aplicação do Direito, pois o certo é que o artigo constitucional em causa estabeleceu para o Direito Positivo um tamanho maior do que o da lei (visto ser o princípio da legalidade um necessário ponto de partida para a Administração, mas não um necessário ponto de chegada).

5 – Para tanto é que a Magna Carta vai além da garantia “aos litigantes” para estender sua malha protetora “aos acusados em geral”. Mesmo que tais acusados estejam a responder por ilícitos apurados em processo não-judicial e não-administrativo, tais como os processos levados a efeito pelas comissões parlamentares de inquérito e os processos de contas.

6 – Deixa-se de citar o inciso XXXV da Constituição como garantia de acesso ao Poder Judiciário para impedir lesão ou ameaça a direito, porque, nessa passagem, a Lei Maior dirige o seu comando proibitivo é para o autor de qualquer dos atos do art. 59, caput (emendas, leis complementares, leis ordinárias, etc.). Não para ela mesma.

7 – O arrimo conceitual que se busca em Seabra Fagundes não obscurece o fato de que, por força do art. 37 da Constituição Republicana, o administrador público tem que retirar da lei a sua regra de competência, é verdade, mas no puro conteúdo da lei ele não fica. É preciso, ainda, que o administrador aplique a lei por um modo impessoal, moral, público e eficiente, o que termina por fazer da atividade administrativa uma atividade de aplicação ex-officio do Direito. Ou, por outra, há toda uma corrente de juridicidade a reger o atuar administrativo, da qual o primeiro elo é a lei. A lei como um dos conteúdos desse novo continente que é a juridicidade, e não como todo o continente.

8 – Um certo embaraço dogmático surge, quando se pensa nos atos de fiscalização e julgamento que os TC’s praticam sobre os seus próprios agentes e unidades administrativas. Mas aí já se labora no espaço da situação-limite ou hipótese extrema, em que atua a lógica do impedir que as coisas se percam no infindável. Algum órgão público tem mesmo que dar a última palavra em todo e qualquer processo e não foi por outra razão que RUI BARBOSA disse, ironicamente, a propósito das competências do STF, que somente essa instância judiciária tinha o direito de errar por último…

9 – Tamanha é a importância da prestação de contas, no espectro republicano, que o Texto Magno a positivou na sobranceira posição de “princípio” (art. 34, inciso VII, alínea d). Garantindo-se a efetividade desse princípio com os atos de intervenção da União no governo dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que venham a fazer parte de Território Federal (art. 35, inciso II). Tanto quanto com a intervenção dos Estados nos respectivos Municípios (art. 35, inciso II, ainda uma vez).

 

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