Autores do artigo:
Rafael Véras[1]
Daniela Sandoval[2]
É lugar-comum o entendimento segundo o qual o Brasil ocupa posições retardatárias e constrangedoras em comparação com outros países no desenvolvimento da infraestrutura que integra a cadeia do ciclo da prestação de serviços de saneamento. Tanto é verdade que estamos atrás, por exemplo, de países como Peru, África do Sul, Marrocos e Bolívia. E tal diagnóstico, certamente, perpassa pela avaliação da qualidade regulação que incidiu no setor, desde a edição no PLANASA, em 1971. Tal assertiva não parte da premissa de que a gestão da prestação do serviço de saneamento, por Companhias Estaduais de Saneamento (CESBs) seria, per se, ineficiente. É certo que há exemplos de Companhias Estaduais de Saneamento que foram capazes de planejar, financiar e executar os investimentos necessários rumo à universalização do saneamento.
Na verdade, o setor predicava da instituição de uma adequada governança regulatória, que implementasse um sistema de incentivos vocacionada à necessária política tarifária de universalização, no âmbito de uma infraestrutura econômica dependente de uma estrutura de subsídios cruzados (interno e entre usuários). Nesse quadrante, a OCDE[3] recomenda que uma adequada regulação no setor de saneamento perpasse pela: (i) supressão de competências regulatórias entre entidades administrativas; (ii) consideração dos lindes das fronteiras hidrológicas e administrativas de prestação dos serviços de saneamento; (iii) instituição de uma regulação tarifária, que possibilite que tal serviço seja financiado por entidades locais e subnacionais.
A Lei n°14.026/2020 endereçou diversos destes pontos. Para o que aqui importa, é de destacar os art.s 10 e 10-A do novel diploma, por intermédio dos quais, ao se extinguir a possibilidade da celebração de novos contratos programa (contratos executados sem prévia licitação, entre entes federativos, inclusive administração indireta, e comumente entre Municípios e uma CESB), se engendrou uma sistema de abertura gradual do mercado saneamento à competição (Competition for the Market)[4] à medida que os contratos de programa atingem seu termo final. Há inclusive no Congresso Nacional discussão sobre remanescer a possibilidade de extensão dos contratos de programa existentes, por mais 30 anos, previsto no artigo 16 da n°14.026/2020 que permitiu tal extensão, o qual foi objeto de veto presidencial. Tal possibilidade de extensão dos contratos de programa teria o efeito de retardar a necessária promoção da competividade no setor por meio das licitações dos contratos de concessão de saneamento. A extinção da possibilidade da celebração de novos contratos programa se justifica, na medida em que, como destacado por Harold Demsetz[5], em infraestruturas com característicos de monopólio natural (formado por custos afundados e ativos específicos) [6], pretende-se extrair do leilão a eficiência alocativa que seria produzida em um ambiente no qual há a concorrência no mercado (Competition in the Market). Mas não é só, para a produção de eficiências, considerando a assimetria de informações existente entre as partes e o longo prazo de tais ajustes, o leilão não garante que todas informações sejam reveladas, ex ante[7], predicando-se da instituição de um adequado desenho de regulatório, ex post.
Daí por que o Novo Marco Regulatório do Saneamento procurou endereçar, direta e especialmente, um problema de agência que norteia a delegação de concessões de infraestrutura. É que, de acordo com a Teoria do Agente-Principal, o Principal (poder concedente) delega uma determinada atividade para o Agente (concessionário), que possui uma vantagem informacional uma vez que o poder concedente, a priori, não tem condições de aferir o nível de esforço exercido pelo agente para o atingimento de um determinado resultado (output). Daí a necessidade de se veicular um modelo regulatório, que sirva para que o Agente tenha incentivos para cumprir os objetivos estipulados pelo Principal.
No setor de saneamento, durante muito tempo, se utilizou de um sistema de regulação discricionária (Discretionary Regulation) para as companhias estaduais, pelo custo do serviço (rate of return), nos termos do que dispunha o art. 2°, §2°, da revogada Lei n°6527/1978. Nos quadrantes dessa modalidade de regulação, tem-se por desiderato estabelecer uma estrutura de custos para o agente regulado, a ser remunerada, por determinada taxa de rentabilidade. É dizer, utilizando-se de tal metodologia, estabelece-se uma remuneração pelos investimentos realizados e/ou previstos (Capex Capital Expenditure – CAPEX) e pelos custos operacionais incorridos e/ou previstos (Operational Expenditure – OPEX). Trata-se de uma modalidade de regulação que tem por objetivo primeiro interditar que o agente monopolista cobre preços supracompetitivos, por intermédio da simulação de um mercado competitivo. Acontece que, embora se trate de modelo, habitualmente, utilizado em projetos de infraestrutura, a sua desvantagem consiste nos incentivos gerados para o superdimensionamento da base de ativos, considerando a garantia de uma rentabilidade determinada para o explorador (Efeito Averch-Johnson[8]), ainda que por meio da previsão de um WAAC regulatório. Some-se a tudo isso o fato de que tal modelo de regulação ter sido orientado, nos últimos anos, por outras vicissitudes (a exemplo da captura das companhias estaduais por vezes pela agenda política de ocasião), o que importou na não priorização do CAPEX em investimentos atrelados às metas de universalização e da reversão de parcela robusta da suas receitas para o pagamento de uma folha salarial incompatível com as congêneres do setor privado[9].
Daí a razão pela qual a Lei n°14.046/2020[10] instituiu uma arquitetura que fomenta o advento de novos processos licitatórios com fortalecimento da regulação por contrato (Regulation by Contract). Claro não se trata de um modelo, de todo, novidadeiro, na medida em que, na realidade, nos contratos concessórios anteriormente celebrados com concessionárias privadas, atualmente detentoras de módicos 6% de participação no setor de saneamento, já é possível se vislumbrar um modelo híbrido (composto pela regulação endógena contratual e pela regulação exógena da agência reguladora setorial). É dizer, temos para nós que, a despeito de esses contratos já celebrados com as concessionárias privadas sofrerem influxos da agência reguladora setorial para além das previsões contratuais, a base objetiva do contrato concessão deveria servir como um limite à intervenção reguladora. Assim, porém, não se passa, o que traz insegurança jurídica e dá margem para a apresentação de pleitos de reequilíbrio econômico-financeiro de tais ajustes, em especial pela inclusão de novas “obrigações de desempenho” (atreladas à aplicação de deflatores tarifários, por exemplo), muitas vezes adicionalmente às “obrigações de desempenho” já previstas contratualmente.
Daí a necessidade de que a n°14.046/2020 sirva de móvel para a instituição de um modelo de regulação contratual mais robusto, um modelo no qual se estabeleça, desde a modelagem inicial, que o preço eficiente será obtido no Leilão, o qual será estruturado: (i) pelo reajuste anual; (ii) pelo estabelecimento de uma adequada matriz de riscos contratuais; (iii) pelo estabelecimento de níveis qualitativos de serviços; e (iv) pela previsão de obrigações de investimentos[11]. Todas variáveis às quais o regulador deverá ser deferente na sua atividade de fiscalização e controle da execução do contrato e dos serviços, de acordo com os termos previstos no contrato.
Nesse quadrante, segundo o World Bank[12], a regulação contratual deve endereçar, ao menos, os seguintes aspectos: (i) o estabelecimento de requisitos de desempenho, por intermédio dos quais são aferidas a qualidade requerida e quantidade de bens e serviços prestados; (ii) mecanismos de pagamento ao concessionário, por meio de cobranças de utilização, pagamentos governamentais baseados em utilização ou disponibilidade da infraestrutura, bem como pela possibilidade de inclusão de bônus e penalidades; (iii) pela inclusão de procedimentos de resolução de controvérsias, especificando os papeis do regulador, dos tribunais e dos peritos; (iv) pelo estabelecimento de um regime de rescisão do contrato, que veicule o termo e as prescrições de devolução do ativo; e (v) por mecanismos de adaptabilidade, a partir dos quais serão estabelecidas ferramentas contratuais para lidar com mudanças, tais como revisões extraordinárias de tarifas, ou alteração dos requisitos de serviço.
São exemplos salientes desse modelo de regulação contratual mais robusto as modelagens de concessão unbundle veiculadas para o trespasse do sistema de esgotamento sanitário da CASAL, em Alagoas, e, da CEDAE, no Rio de Janeiro – ambos elaboradas por consultorias de altíssimo nível contratadas pelo BNDES. Dentre os principais aspectos de tais modelagens regulatórias, destaca-se: (ii) uma licitação em blocos, consagrando um racional de subsídio cruzados entre regiões, evitando o Cherry Picking; (ii) o estabelecimento de uma outorga variável, a compor um fundo de reserva serviente a dar conta de desequilíbrios contratuais; (iii) uma ampla e bem detalhada repartição de riscos entre as partes, inclusive no que toca eventos sanitários qualificados como pandemias pela OMS; (iv) a possibilidade de repartição de parcela das receitas extraordinárias entre os Estados, os Municípios e Fundos Setoriais; (vi) a previsão de deflatores tarifários atrelados ao cumprimento de índices de desempenho. Embora tais modelagens contem com a interveniência do regulador, o seu papel terá se ser delineado estritamente a partir da regulação endógena do pacto concessionário.
Em resumo, a Lei 14.046/2020 importou na transição de um modelo de regulação discricionária e contratual híbrida para uma regulação contratual (que, a despeito da existência de entidade regulada, tem o desiderato de ter no instrumento contratual o seu maior limite interventivo). Com isso, espera-se atingir a universalização que garanta o atendimento de 99% (noventa e nove por cento) da população com água potável e de 90% (noventa por cento) da população com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033, assim como o atendimento de metas quantitativas de não intermitência do abastecimento, de redução de perdas e de melhoria dos processos de tratamento (art. 11.B). As novas modelagens já trazem uma arquitetura de incentivos vocacionada ao atendimento de tais objetivos regulatórios. Tem tudo para dar certo. É o que esperamos.
[1] Professor do LLM em Regulação e Infraestrutura da FGV Direito Rio. Doutorando e Mestre em Direito da Regulação pela FGV.
[2] Corporate Affairs, Regulatory and Legal Executive. Board Member and Compliance Officer (CCEP). Background: infrastructure/water and sanitation (BRK Ambiental), energy (BP), power generation (AES) and petrochemical (Suzano) and law firms in Brazil and USA (Shearman & Sterling, Mattos Filho and Veirano). Legal education in Brazil (USP, FGV-GVLaw) and in the USA (LLM, New York University). Finance background with a CORe – Credential of Readiness focused in Business Administration from HBX / Harvard Business School. Leadership program at CCL (Center for Creative Leadership), North Carolina.
[3] OCDE. “Meeting the Water Reform Challenge”. OECD Studies on Water, OECD Publishing, Paris. (2012).
[4] CAMACHO, Fernando Tavares; RODRIGUES, Bruno da Costa Lucas. Regulação econômica de infraestrutura: como escolher o modelo mais adequado? Revista do BNDES, n. 41, junho de 2014.
[5] DEMSETZ, Harold. Why regulate utilities? Journal of Law and Economics, v. 11, n. 1, p. 55-65, abril 1968.
[6] BARON, D. P.; MYERSON, R. B. Regulating a Monopolist with Unknown Costs. Econometrica, Evanston, v. 50, n. 4, p. 911–930, jul. 1982.
[7] CRASWELL, Richard. The “incomplete contracts” literature and efficient precautions. 56. CASE W. RES. L. REV. 151 (2005-2006).
[8] BROWN, A.; STERN, John; TENENBAUM, Bernard. Handbook for evaluating infrastructure regulatory systems. World Bank, 2006. JOSKOW, Paul Lewis. The determination of the allowed rate of return in formal regulatory hearings. Bell Journal of Economics, n. 3, p. 632-644, 1972.
[9] Cintia Leal Marinho de Araújo et all. A Lei n°14.026/2020 e a remoção das barreiras ao investimento privado O Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico / Augusto Neves Dal Pozzo, coordenação. — 1. ed. — São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2020.
[10] O Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico / Augusto Neves Dal Pozzo, coordenação. — 1. ed. — São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2020.
[11] Em sentido similar, KLEIN, Alice Lícia. FIGUEORA, Caio. A regulação contratual das concessões de saneamento. No prelo. Texto gentilmente disponibilizado pelos autores.
[12] WORLD BANK. International Bank for Reconstruction and Development. Public-Private Partnerships: Reference Guide Version 3. Disponível em: <https://openknowledge.worldbank.org/handle/10986/29052>.
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