Alexandre Jorge Carneiro da Cunha Filho
Doutor e mestre em Direito do Estado Juiz de Direito em São Paulo
A Lei nº 14.026/2020 trouxe algumas alterações importantes no quadro normativo a reger as políticas de saneamento básico em território nacional. Podemos dizer que com o referido diploma desenha-se uma nova estratégia para o setor, a qual, tendo por objetivo uma meta de universalização bastante ousada (31/12/2033[i]), aposta num papel maior da iniciativa privada na prestação desses serviços.
Uma das grandes novidades a respeito é justamente o comando legal que determina que Municípios não poderão simplesmente renovar os contratos de programa que mantém com empresas estaduais de saneamento (art. 10 da Lei nº 11.445/2007), medida que fica condicionada à realização de licitação em que tais entidades concorram com particulares interessados na exploração da atividade[ii].
O cenário inspira entusiasmo em alguns atores, que passam a enxergar no horizonte a chance de grandes transformações conduzidas pelo dinamismo próprio das empresas privadas, em um contexto no qual a Administração Pública brasileira sofre, não sem uma boa dose de razão, críticas bastante ácidas quanto a sua ineficiência e alto custo.
Para aqueles que estudam Direito Administrativo e já investigaram um pouco do histórico da evolução da organização dos serviços de saneamento no país, embora a nova legislação tenha pontos positivos, esta também desperta hesitação no que se refere à expectativa de o mercado, seguindo suas livres forças, produzir os resultados esperados em termos quantitativos e qualitativos.
Se uma explicação para a forte intervenção do Estado brasileiro no setor de saneamento desde o início do século XX teria sido justamente a incapacidade de empresas privadas, movidas pelo propósito (legítimo) de lucro, adequadamente ofertarem tal utilidade para a população[iii], imagina-se que permanece a necessidade de a Administração, seja diretamente, seja por meio de regulação, zelar para que a tarefa seja bem desempenhada.
No que se refere à regulação, a nova configuração dada pela Lei nº 14.026/2020 à ANA, que agora passa a funcionar não só como agência nacional das águas como também do saneamento, corresponde a uma das principais engenharias do modelo desenhado pelo legislador.
Deixando Estados e Municípios de operar por si mesmos ao menos parte dos serviços em questão[iv], estes continuam com suas responsabilidades no setor, as quais passam a ser adimplidas por meio de regulação, em um cenário no qual a ANA, como agência em nível federal, passa a funcionar como um espaço público autônomo e tecnicamente capaz vocacionado ao estabelecimento regras e diretrizes para o setor, apoiando agências reguladoras de nível regional e local encarregadas da matéria, bem como compelindo ou induzindo os respectivos atores ao cumprimento de suas determinações/recomendações.
Por outro lado, paralelamente à regulação por agência, ainda cabe ao Poder Público a regulação feita através de contratos.
Ao concederem o serviço a empresas privadas ou mesmo estatais, o seu titular não se desincumbe do ônus de bem planejar a transferência da execução da atividade a terceiros, formatando de modo pertinente os instrumentos de concessão e exigindo sua observância por parte de quem aderir aos respectivos termos.
Sobre tal aspecto, contudo, novos desafios à vista.
Além do planejamento de tal serviço normalmente envolver complexas técnicas de subsídios cruzados, a recomendar a regionalização de sua organização para assegurar sua viabilidade para as populações com menor poder aquisitivo, tem-se que o contrato administrativo é figura ainda em estágio de amadurecimento no nosso sistema jurídico[v], que muitas vezes não é levada a sério seja pela Administração seja pelos seus órgãos de controle.
Em suma: se há motivos para comemorar com o advento da Lei nº 14.026/2020, muito trabalho aguarda aqueles que serão responsáveis pela sua concretização nos próximos anos. Mais do que lei, nos parece que o foco agora deva ser o fator humano encarregado da sua execução, ao qual, inclusive, caberá encontrar os meios materiais indispensáveis para a tarefa.
[i] Art. 11-B da Lei nº 11.445/2007 – “Os contratos de prestação dos serviços públicos de saneamento básico deverão definir metas de universalização que garantam o atendimento de 99% (noventa e nove por cento) da população com água potável e de 90% (noventa por cento) da população com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033, assim como metas quantitativas de não intermitência do abastecimento, de redução de perdas e de melhoria dos processos de tratamento” (Redação pela Lei nº 14.026, de 2020)(disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11445.htm>, acesso em 21 dez. 2020).
[ii] Art. 10 da Lei 11.445/2007 – “A prestação dos serviços públicos de saneamento básico por entidade que não integre a administração do titular depende da celebração de contrato de concessão, mediante prévia licitação, nos termos do art. 175 da Constituição Federal, vedada a sua disciplina mediante contrato de programa, convênio, termo de parceria ou outros instrumentos de natureza precária” (Redação pela Lei nº 14.026, de 2020)( disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11445.htm>, acesso em 21 dez. 2020).
[iii] GROTTI, Dinorá A. M.. A evolução jurídica do serviço público de saneamento básico in DAL POZZO, Augusto N.; OLIVEIRA, José Roberto P.; BERTOCCELLI, Rodrigo de P. (coord.). Tratado sobre o marco regulatório do saneamento básico no direito brasileiro, p. 101-144, São Paulo: Contracorrente, 2017, p. 105 e ss.
[iv] Em decorrência da vigência do art. 10º da Lei nº 11.445/07, já referido na nota ii supra.
[v] Sobre o assunto, ver MARQUES NETO, Floriano Azevedo. Do contrato administrativo à administração contratual in Revista do Advogado, ano XXIX, nº 107, p. 74-82, São Paulo: AASP, dezembro de 2009.