Em 8 de outubro de 2021, foi publicada a Portaria MINFRA nº 1.166, que alterou a Portaria nº 530, de 13 de agosto de 2019, por intermédio da qual se estabelece critérios e procedimentos para a prorrogação de vigência, a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro e outras alterações em contratos de arrendamento de instalações portuárias localizadas nos portos organizados. Em uma leitura mais apressada, poder-se-ia defender o entendimento de que se trata de uma reforma pontual do setor portuário. Mas tal normativo representa bem mais que isso. A relevância da portaria, para além de outros aspectos, está no encontro do interesse coletivo que abarca administração pública e operadores privados a partir da possibilidade de se manejar uma medida cautelar “quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo da demora, no que se refere aos processos de que trata esta Portaria” (art. 122-A). Não se trata de previsão, de todo, novidadeira, considerando o disposto no art. 45 da Lei n° 9.784/1999 e a aplicação subsidiária do CPC aos processos administrativos (nos termos do seu art. 15).
Nada obstante, sua relevância diz também com a possibilidade de o poder público conferir uma vertente mais realista ao equilíbrio econômico-financeiro de contratos de longo prazo. É que tais medidas podem ter por objeto a suspensão total ou parcial de obrigações contratuais de desempenho, investimento, pagamento e qualquer outra medida idônea para a garantia do direito, não ensejando a aplicação das respectivas penalidades, quando as “obrigações de investimento” e “obrigações de desempenho” enredadas no pacto concessório não forem executadas em virtude do deferimento da cautelar[1].
Sabe-se que, em vários setores da sociedade, a pandemia provocada pela Covid-19 importou em uma queda saliente nas curvas de demandas dos ativos explorados por operadores privados. Nesse contexto, as aludidas alterações mostram-se sobremaneira salientes uma vez que dizem respeito à adoção de soluções imediatas para evitar a descontinuidade de serviços essenciais, nos termos do disposto no art. 6°, §1°, da Lei n° 8.987/95. Dito em outras palavras, consagra-se o entendimento segundo o qual tempo, usualmente serviente a endereçar procedimentos de revisões ordinárias e extraordinárias, não se compatibiliza com a iminente insustentabilidade econômico-financeira dos projetos de infraestrutura e o consequente desatendimento do usuário. O equilíbrio econômico-financeiro da doutrina e dos normativos deve observar a realidade, para a ela não ser antípoda.
Trata-se, assim, de expediente que encontra amparo também no disposto no art. 20 da Lei nº 13.655/18 (LINDB), de acordo com o qual “Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”. Conforme já comentado, “Mais do que uma deferência ao consequencialismo, o dispositivo presta homenagem à responsividade da decisão. Prospectar os efeitos da decisão não é irrelevante (…)”[2]. Nesse quadrante, é possível, em face da necessidade de se preservar o serviço e, por conseguinte, o atendimento ao usuário, a suspensão, a título de cautela, por exemplo, de indicadores de desempenho contratualmente estabelecidos; de deflatores tarifários, em reajustes e revisões tarifárias; de “Gatilhos de Investimentos”; dentre outras obrigações econômicas previstas no contrato de infraestrutura.
A cautela, portanto, reside em assegurar a sustentabilidade econômico-financeira do projeto, e, ainda, resguardar a efetividade do procedimento como um todo. Por isso também a obrigação da arrendatária em restituir os danos correlatos aos pedidos quando julgados parcial ou totalmente improcedentes, no tocante ao mérito ou à extensão dos seus efeitos.
A Portaria MINFRA nº 1.166/2021, dessa forma, tem por desiderato tutelar os diversos interesses enredados, no contrato de infraestrutura, em face também de uma situação possivelmente não precificada no fluxo de caixa do projeto. Não é por outra razão que a novel portaria pressupõe que a decisão administrativa que confira a decisão cautelar considere, dentre outros valores: (i) a demonstração do interesse público envolvido; e (ii) a proporcionalidade da medida, segundo a sua necessidade, utilidade e adequação. Isso importa dizer que o ato administrativo produzido deverá ter como “motivo” a insustentabilidade econômico-financeira do projeto, provocada por um risco alocado ao poder público; como “finalidade” a preservação do princípio da continuidade dos serviços públicos; e, como “objeto”, a renegociação de aspectos econômicos do contrato de infraestrutura (art. 122-E). Segue daí a sua compatibilidade com o art. 20, parágrafo único, da Lei n° 13.655/18, de acordo com o qual “A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas”.
Cuidar-se-á, ao fim e ao cabo, da produção de um ato administrativo complexo, já que ele será construído a partir da manifestação de vontade do Secretário da Pasta e da agência reguladora setorial, notadamente quando a medida cautelar envolver o tema do equilíbrio econômico-financeiro. Como se pode notar, não se trata, propriamente, de um provimento “político” ou “técnico”, mas de uma decisão administrativa holística, que deverá considerar os impactos prospectivos da supressão de obrigações do operador privado. Não é por outra razão que o novel diploma prescreve que “Antes de decidir sobre a medida cautelar, o Secretário Nacional de Portos e Transportes Aquaviários poderá ouvir a autoridade portuária e a Antaq, as quais deverão se manifestar no prazo de até 30 (trinta dias) (art,122-D). O tempo, na hipótese concreta, poderá ser um fator determinante entre a efetividade, ou não, da medida administrativa.
Tem-se, ainda, nesse contexto, a possibilidade da utilização da “decisão coordenada”, instituída pela Lei n° 14.210, de 30 de setembro, que, na linha da Conferência de Serviços (do Direito Italiano) e da Conferência de Procedimento (do Direito Português), permite a decisão concertada entre entidades administrativas. De acordo com art. 49-A, §1°, incluído à Lei n° 9.784/99, considera-se “decisão coordenada a instância de natureza interinstitucional ou intersetorial que atua de forma compartilhada com a finalidade de simplificar o processo administrativo mediante participação concomitante de todas as autoridades e agentes decisórios e dos responsáveis pela instrução técnico-jurídica, observada a natureza do objeto e a compatibilidade do procedimento e de sua formalização com a legislação pertinente”. Pode ser, justamente, o caso da concessão de uma medida cautelar, a exemplo da trazida pela Portaria MINFRA nº 1.166/2021, no âmbito da qual vários valores terão de ser considerados, na situação concreta.
Assim é que, mais do que uma previsão para o setor portuário, a Portaria MINFRA nº 1.166/2021 se configura como uma manifestação do direito da infraestrutura da realidade. As incertezas, atualmente, vivenciadas exigem soluções concretas, customizadas e aderentes à realidade. Cuida-se de um movimento irreversível. É ver.
Rafael Véras
Consultor Jurídico nos setores de infraestrutura.
Doutorando e Mestre em Direito da Regulação
pela FGV Direito Rio.
Natalia Resende Andrade Ávila
Consultora Jurídica do Ministério da Infraestrutura.
Procuradora Federal.
Doutoranda e Mestre pela Universidade de Brasília – UNB.
[1] Apesar da desnecessidade de lei para tratar do tema em comento, cabe destacar, em sentido semelhante, o Projeto de Lei nº 2.139/20, de autoria do Senador Antonio Anastasia (PSD/MG), o qual dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas contratuais da Administração Pública, no período da emergência de saúde pública decorrente do Coronavírus (Covid-19). Em breve síntese, o projeto prevê a elaboração, pelo contratado, voluntariamente ou a pedido da Administração, de plano de contingência “para assegurar a continuidade da execução contratual e a preservação do seu objeto essencial”. Dispõe, também, que a “Administração poderá rever obrigações contratuais e adotar qualquer outra medida que se mostre necessária e adequada para conter os impactos da pandemia ou assegurar a continuidade da prestação objeto dos contratos”, trazendo, como exemplos, a suspensão da exigibilidade de obrigações, e consequente revisão de cronogramas para entrega de produtos, de serviços ou para a realização de investimentos; a autorização para a desmobilização de pessoas, equipamentos e estruturas alocados na execução do contrato, por parte do contratado; a alteração das especificações e quantidades do objeto contratual; a suspensão da exequibilidade de sanções; a suspensão da aplicação de indicadores cujo cumprimento ou medição sejam comprovadamente inviáveis, assim como a revisão do sistema de desempenho previsto no contrato, com estabelecimento de nível mínimo de qualidade, quando cabíveis (arts. 3º e 4º).
[2] Nesse sentido: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. FREITAS, Rafael Véras de. Comentários à Lei n 13.655/2018. Belo Horizonte: Editora Fórum, p. 35.
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REVISTA BRASILEIRA DE INFRAESTRUTURA – RBINF
REVISTA DE CONTRATOS PÚBLICOS – RCP
DESESTATATIZAÇÕES
DIREITO DA INFRAESTRUTURA – TEMAS DE ORGANIZAÇÃO DO ESTADO, SERVIÇOS PÚBLICOS E INTERVENÇÃO ADMINISTRATIVA