No último dia 17 de junho de 2021, um jovem de 17 anos foi expulso de um shopping em Caruaru, no agreste pernambucano, por ostentar em um de seus braços a cruz suástica, símbolo místico utilizado por muitas culturas, incluindo índios norte-americanos, budistas, astecas e celtas[1], e que posteriormente foi apropriado pelo Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores (1920), associando-se ao movimento nazista e ao genocídio de milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial.
Em vídeo divulgado em diversas mídias sociais, foi possível observar o jovem dizer claramente que se tratava de sua liberdade[2].
A que liberdade se referia o rapaz? Provavelmente à liberdade de expressão. Nas fontes em que extraiu o conhecimento que detém sobre o nazismo poderia constar ou não a informação de que a exibição da suástica como forma de divulgação do regime responsável pelo holocausto é crime tipificado no § 1º do art. 20, da Lei 7.716/89, com a redação que lhe foi dada pela Lei 9.459/97. Não importa. Exibir o símbolo nefasto é para ele um ato de liberdade.
O episódio acontece no momento em que os debates sobre a liberdade de expressão se acaloram devido à polarização política consolidada com as eleições presidenciais de 2018 e em que o exercício dessa liberdade de expressar opiniões – muito em vista do crescimento do uso das redes sociais – vem se confundindo com o chamado “discurso de ódio”, aquele em que o usuário se vale de palavras que denotam preconceito, discriminação, racismo e outras manifestações de cunho negativo para atingir determinada pessoa ou o grupo ao qual ela pertence.
A liberdade de expressão tem ligação estreita com o direito à informação e ambos vêm sendo discutidos pela comunidade jurídica sob o prisma dos direitos fundamentais.
Com o reconhecimento da liberdade de expressão na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela ONU em 1948, consolidou-se tal liberdade no direito de expressar opinião, receber ou prestar informações e ideias sem a ingerência de autoridades públicas.
Em algumas sociedade e ordenamentos jurídicos, sendo o melhor exemplo os Estados Unidos da América, tratar de liberdade de expressão é versar sobre um direito quase sacralizado.
Há, porém, que se distinguir, no que diz respeito à democracia, qual o caráter que a liberdade de expressão assumirá, se uma vertente instrumental – meio para se alcançar a democracia – ou como direito individual, neste caso como uma garantia de participação no debate público, independentemente da qualidade das opiniões, convicções e informações por qualquer meio veiculadas por alguém[3].
A liberdade de expressão substantiva corresponderia a um valor em si mesmo, um direito individual a garantir o pleno desenvolvimento da personalidade e a liberdade de expressão instrumental corresponderia a um legítimo instrumento para a promoção de outros valores e demandaria tutela específica. Dentre esses outros valores estaria a democracia.
A relação entre a liberdade de expressão e os meios de comunicação, por sua vez, é complexa e sempre esteve ligada à forma do exercício do poder político em determinado país. Sim, porque desde democracias consolidadas, como é considerada a dos Estados Unidos da América até países que convivem com permanentes tensões políticas e sociais e muito mais naqueles em que há controle absoluto do Estado sobre a comunicação de uma forma geral, difícil tem sido conciliar ou até mesmo calibrar a tensão existente nessa balança.
Outras questões relacionadas à liberdade de expressão e o discurso político vêm sendo pautadas desde o início da pandemia da Covid-19 (Coronavirus Disease 2019), doença causada pelo novo Coronavírus. Dentre outras tantas fragilidades mundiais e nacionais escancaradas no período pandêmico, como a desigualdade social, a globalização econômica e o embate entre o negacionismo e a ciência, a utilização da internet para a difusão de notícias falsas tem se mostrado forte e representa um problema que precisa ser enfrentado e vem causando desde antes das eleições de 2018, mas principalmente a partir da campanha eleitoral daquele ano, significativa tentativa de enfraquecer a jovem estrutura democrática brasileira.
O Brasil é hoje o 5° país do mundo com maior número de conexões à internet, sendo a maioria das conexões feita através de dispositivos móveis e para uso nas redes sociais.
Relatório de 2017 da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento aponta o Brasil em quarto lugar no ranking mundial de usuários de internet, mas também demonstra grande desigualdade no acesso da população, considerados aspectos regionais e sócio-econômicos[4].
No que diz respeito à utilização de redes sociais no Brasil, as que prestam serviços de mensagens viraram ferramentas essenciais no dia a dia da população, estando o WhatsApp no topo dos aplicativos mais usados. Conforme pesquisa da Global Mobile Consumer Survey, 80% dos brasileiros usam essa plataforma de troca de mensagens ao menos uma vez a cada hora[5].
Aqui se chega a um ponto de extrema importância para a liberdade de expressão, dado que o poder de difusão de informação que detém o WhatsApp é capaz de superar diversos outros meios de comunicação, a exemplo da televisão aberta – de acesso irrestrito – e outras plataformas também oferecidas na internet.
Esse fenômeno tem preocupado vários setores da sociedade e trazido inúmeras inquietações aos juristas. O alcance e a maneira ou objetivos pelos quais for motivado o uso desse aplicativo, a propósito, já foram capazes de comprovar seu potencial de impacto em processos eletivos de natureza política. O Brasil, inclusive, é apontado em estudo realizado pela Reuters (Digital News Report 2020)[6] como um dos países que mais consomem informação por intermédio de redes sociais. Saliente-se mais uma vez que não somente o WhatsApp, mas também o Instagram (60,1 milhões de usuários mensais em agosto de 2019)[7], estão abrigados no conglomerado do Facebook, uma das mais longevas redes sociais com 120 milhões de usuários ativos no Brasil em abril de 2020[8] e recentemente envolvida em escândalos eleitorais, sendo os mais conhecidos a eleição norte-americana de 2016 e o referendo relacionado à saída do Reino Unida da União Europeia, conhecido como Brexit e ocorrido em junho do mesmo ano[9].
A explosão das redes sociais dá nova dimensão e alcance ao fenômeno das falsas informações ou da desinformação, tentando-se ressignifica-los na abrangente expressão inglesa fake news. A expressão fake news foi traduzida como “notícias falsas”.
Mas quando se faz referência a fake news, o significado que se quer impor é o de falsas informações. Este é, na realidade, o sentido da expressão. As fake news, em seu sentido mais amplo, estão ligadas a outros institutos correlatos, a exemplo do discurso de ódio (hate speech) e a pornografia de vingança (revenge porn).
No caso do discurso de ódio há, em geral, uma nítida ultrapassagem dos limites impostos ao exercício do direito à livre expressão e, por consequência, uma potencial violação a direitos fundamentais, quer os inerentes a personalidade, quer os de ordem econômica ou política, já que neste caso o interlocutor manifesta sua opinião sobre qualquer tema com palavras que expressem ódio a determinadas pessoas ou grupo de pessoas, geralmente expressões negativas sobre etnia, raça, religião, gênero, orientação sexual e outras características.
E assim, no que concerne às fake news, o direito tem um grande problema a enfrentar e que se consubstancia na imposição de limite à liberdade de expressão, quando o exercício desse direito opera a difusão em massa de falsas informações pela internet. Seria possível falar -se em uma liberdade de expressão de falsidades?
Independentemente do sentido que se dê à liberdade de expressão, isto é, se uma concepção instrumental ou uma concepção constitutiva, é possível deduzir-se que a resposta é negativa.
O fato é que, de uma ou outra maneira, não se pode admitir a circulação de falsas informações como concretização do exercício de um direito à liberdade de expressão.
Na União Europeia, ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, as atividades se desenvolvem segundo as leis do mercado, porém a regulação estatal se mostra presente quando há necessidade de proteção à pessoa nos mais diversos aspectos, não apenas quanto à liberdade de expressão.
A tendência mundial vem sendo a formação de um consenso quanto à regulação da internet de uma forma geral e ela é necessária para a garantia de direitos aos usuários.
No que diz respeito mais especificamente às redes sociais, é preciso que o país assuma posição mais firme quanto ao modelo de regulação a ser adotado, embora haja no sistema normativa suficiente à garantia dos direitos fundamentais das pessoas e à manutenção e higidez dos valores inerentes ao Estado democrático de direito frente à liberdade de expressão.
A relação entre a liberdade de expressão e a democracia se dá na possibilidade da plena formação da pessoa, a quem como cidadã é garantido discurso público de manifestação de suas opiniões.
E a liberdade de expressão foi ampliada com o passar do tempo justamente para constituir-se em condição de existência dessa sociedade livre e pluralista que o Constituinte terminou por desenhar e eleger como um dos fundamentos do Estado democrático de direito brasileiro.
No que diz respeito ao Estado democrático de direito, qualquer que seja o conceito e a justificação que se lhe dá, este somente se concebe hoje como Estado constitucional:
Nesse sentido, é a liberdade democrática que legitima o poder e este, de acordo com o princípio da soberania popular, “emana do povo” (par. único, art. 1°, CR). Essa fórmula é que permite a compreensão da moderna concepção do Estado democrático de direito.
A democracia, além de uma dimensão subjetiva traduzida no reconhecimento de inúmeros direitos sociais ou direitos subjetivos públicos, possui uma dimensão objetiva derivada de disposições constitucionais como o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1°, III, CR) e o princípio da igualdade (caput do art. 5°, CR), entre outros. Nessa ambiência também se encontra a liberdade de expressão.
A complexidade de demandas sociais, aliadas ao desgaste de muitas instituições representativas de poder político e a facilidade e rapidez na comunicação, tornaram o ambiente das redes sociais a grande arena da opinião pública. Para dimensionar melhor esse espaço é mais adequado falar em “plataformas digitais”, as quais envolvem, além das redes sociais, os portais de notícias e algo ainda pouco explorado e ainda mais ameaçador, a “deep web”, onde repousa mais ao fundo a “dark web”.
É acerca desse cenário que se desenvolve o debate. E ele envolve a proteção de dados pessoais, a liberdade, a segurança e a maneira como se projeta a convivência entre as pessoas para o futuro.
Muito se tem a discutir, errar e acertar no campo do domínio da internet para o direito. Novas situações jurídicas surgem a cada dia e uma das conclusões a que se pode chegar é acerca da necessidade de se trabalhar com parâmetros éticos bem definidos para convivência nesse universo. Há que se preocupar também com o modelo de negócio que fará transmitir e fazer circular as informações. Tal modelo de negócio deve igualmente se pautar pela ética e boas práticas, dispondo de ações afirmativas aptas a prevenir ou minimizar os efeitos de eventual violação de direitos.
O direito à liberdade de expressão é muito caro à própria democracia e, por isso mesmo, não pode ser exercido de maneira ilimitada. Não se trata de um direito absoluto.
Parece não existir hoje maiores controvérsias acerca do posicionamento doutrinário e jurisprudencial quando o direito lesado pela manifestação da livre expressão for um dos direitos da personalidade. Neste caso, inexistirá prevalência da liberdade de expressão, podendo ocorrer, no caso concreto, maior ou menor plasticidade no exercício de ponderação e, consequentemente, na medida da incidência das normas jurídicas a ele aplicáveis.
O controle parece viável e pode ser preventivo, a depender, como aqui defendido, do modelo de negócio e de regulação que o país consolidará.
Gustavo Henrique Baptista Andrade
Pós-Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre e Doutor em Direito Civil
pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.
Procurador judicial do Município do Recife.
Pesquisador visitante do Max-Planck-Institut für
Ausländisches und Internationales Privatrecht – MPIPRIV, Alemanha.
Notas
[1] RODRIGUES, Marcel Henrique. Algumas considerações sobre o estudo da simbologia religiosa. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/percursoacademico/article/download/3524/10349. Acesso em 20 jun. 2021.
[2] Disponível em: https://g1.globo.com/pe/caruaru-regiao/noticia/2021/06/18/jovem-expulso-de-shopping-em-caruaru-por-usar-suastica-no-braco-e-apreendido-pela-policia-civil-e-sera-encaminhado-ao-mppe.ghtml. Acesso em 18 jun. 2021.
[3] GROSS, Clarissa Piterman. Fake News e democracia: discutindo o status normativo do falso e a liberdade de expressão. In: RAIS, Diogo (Coord.). Fake news. A conexão entre a desinformação e o direito. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018.
[4] Disponível em: https://exame.com/tecnologia/brasil-e-o-4o-pais-em-numero-de-usuarios-de-internet/. Acesso em 25 fev. 2021.
[5] Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2019/10/31/80-dos-brasileiros-usa-whatsapp-pelo-menos-uma-vez-por-hora.htm. Acesso em 25 fev. 2021.
[6] Disponível em: https://www.digitalnewsreport.org/survey/2020/foreword-2020/. Acesso em 25 fev. 2021.
[7] Disponível em: https://www.mobiletime.com.br/noticias/06/08/2019/brasil-e-o-terceiro-maior-mercado-do-instagram-no-mundo/. Acesso em 25 fev. 2021.
[8] Disponível em: https://www.tecmundo.com.br/redes-sociais/153570-brasil-4-pais-usuarios-facebook-quarentena.htm. Acesso em 26 fev. 2021.
[9] Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/listas/o-que-sabemos-do-escandalo-do-facebook-e-por-que-voce-deve-se-preocupar.htm. Acesso em 26 fev. 2021.
Confiras mais temas do Direito Civil. Participe do seminário coordenado pelo professor Marcos Ehrhardt: