Leia abaixo o artigo do professor Juliano Heinen, autor do livro “Comentários à Lei de Acesso à Informação – Lei Nº 12.527/2011“, publicado na edição 41 da Revista Brasileira de Direito Público – RBDP
Enquanto o art. 1º e o art. 2º da Lei nº 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação) dispõem sobre a legitimidade passiva, ou seja, sobre quem se sujeita aos pedidos de acesso à informação, o art. 10 da referida regra trata da legitimidade ativa. Logo, esse dispositivo disciplina quem pode pretender acesso a informações ou dados públicos, com base na LAI. Sendo assim, resta-nos investigar os limites e possibilidades que permeiam a maneira como se processa esse acesso, especialmente pelo fato de se ter de, obrigatoriamente, permear a aplicação do texto do art. 10 para com os limites constitucionais vigentes.
Art. 10. Qualquer interessado poderá apresentar pedido de acesso a informações aos órgãos e entidades referidos no art. 1º desta Lei, por qualquer meio legítimo, devendo o pedido conter a identificação do requerente e a especificação da informação requerida.
§1º Para o acesso a informações de interesse público, a identificação do requerente não pode conter exigências que inviabilizem a solicitação.
§2º Os órgãos e entidades do poder público devem viabilizar alternativa de encaminhamento de pedidos de acesso por meio de seus sítios oficiais na internet.
§3º São vedadas quaisquer exigências relativas aos motivos determinantes da solicitação de informações de interesse público.
O termo “interesse”, inserido logo na cabeça do dispositivo ora analisado, que se liga à palavra “interessado”, não possui uma definição unívoca na doutrina, mas é importante para definir a legitimidade em termos de solicitação de acesso. Quando os juristas interpretam o termo “interessado” constante no art. 46 da Lei nº 9.784/1999 (Lei do Processo Administrativo Federal), o fazem de forma ampla. Dispõem que a condição de “interessado” em obter as informações do processo é de quem tem interesse, ou seja, qualquer pessoa.1 No âmbito da LAI, por razões lógico-sistemáticas, a questão deve ser vista com mais comedimento, de acordo com o que será exposto adiante.
Como todas as normas devem, antes de tudo, serem interpretadas de acordo com o texto constitucional (por ser uma primeira premissa em termos de teoria geral das normas), entende-se que o art. 10, caput, da Lei nº 12.527/2011, deve ser interpretado conforme o art. 5º, inciso XXXIII, da CF/1988. Significa dizer que o termo “interessado” liga-se com as três espécies de interesse dispostos pelo referido dispositivo constitucional: interesse coletivo, geral ou particular. Eis um paradigma hermenêutico fundamental no âmbito de proteção da regra ora comentada.
Aliás, a inserção da palavra “interessado” evita eventuais interpretações “restritivas”, o que bem poderia ocorrer se fossem alocados termos do tipo “cidadão”, “habitante” etc. Contudo, o uso da palavra traz a reboque a necessidade de que o sujeito que pretende ter acesso cumpra uma determinada condição justamente de foro teleológico. Sendo mais específico, a palavra em questão exige a prova da pertinência a um determinado interesse, ainda que seja desnecessário motivar o pedido. Essa solicitação deve ter vocação a estar ligada a uma utilidade, a um viés prático, enfim, que “agregue algo” ao legitimado. E isso deve ser percebido in re ipsa. Significa dizer que o art. 10, caput, ao fazer uso da palavra “interessado”, não quer que sejam permitidos pedidos que visem satisfazer o mero deleite pessoal, calcado em sentimentos espúrios, inúteis e despidos de razoabilidade.
Essa interpretação pode ser retirada a partir da visualização do direito comparado. A Lei argentina nº 104/1998, sancionada e aplicada na Cidade Autônoma de Buenos Aires, disciplina o acesso à informação naquela localidade. Logo no seu art. 1º, é reconhecido que “toda persona” tem direito ao referido acesso, sendo esse dispositivo repetido no Decreto nacional nº 1.172/2003, art. 6º, daquele país.2 Essa fórmula não é casuística, mas proposital, justamente porque esse nexo de pertinência que indicamos lá não existe. E essa interpretação é tranquila exatamente pelo fato de o arranjo jurídico portenho ser diferente do nosso, o que permite lá uma legitimidade despida da prova do interesse, ou seja, se constitui um acesso mais pleno.3 Assim, considera-se que o pedido de acesso deva respeitar os paradigmas do art. 5º, inciso XXXIII, da CF/1988, interpretando-se o art. 10, caput, da LAI, conforme o primeiro dispositivo aqui mencionado.
Ainda, entende-se que a LAI não estabeleceu somente aos cidadãos a legitimidade ativa ao acesso — enfim, restrita àqueles que estão em gozo dos seus direitos políticos (art. 14 da CF/1988). Defende-se uma legitimidade ativa para além dessa categoria jurídica, ou seja, de todos aqueles que possam exercer um direito subjetivo a partir do direito dito fundamental de acesso. E a conclusão, que é cartesiana, é a seguinte: se o acesso à informação é considerado um direito fundamental, a LAI deve ter como legitimado todos aqueles que podem se valer de direitos dessa natureza. Assim, como os direitos fundamentais protegem quem é ou não cidadão, os legitimados ativos da LAI não podem sofrer tal restrição. Sendo assim, podem solicitar informações os cidadãos ou não, brasileiros ou não.
Destaca-se, por oportuno, que a única menção feita pela lei de acesso brasileira aos cidadãos consta no texto do art. 9º, inciso I, que trata da “[…] criação de serviço de informações ao cidadão, nos órgãos e entidades do poder público, em local com condições apropriadas […]”. Esse dispositivo não impõe a restrição à legitimidade do acesso à informação, que deve ser de caráter universal. Do contrário, ir-se-ia de encontro ao texto da LAI e às premissas hermenêuticas por ela tratadas. Em resumo, os pedidos com base na norma em questão podem ser veiculados por todos aqueles destinatários dos direitos fundamentais, sejam eles brasileiros ou estrangeiros.
O pedido inicial de informação, realizado por pessoa natural ou jurídica, será apresentado em formulário padrão, disponibilizado em meio eletrônico, no sítio específico do acesso à informação constante na internet, ou em meio físico. Esse formulário, ainda, deverá estar disponível, da mesma maneira, junto ao SAC de órgãos e entidades. Tal pedido de acesso à informação deverá conter:
a) nome do requerente;
b) número de documento de identificação válido;
c) especificação, de forma clara e precisa, da informação requerida; e
d) endereço físico ou eletrônico do requerente, para recebimento de comunicações ou da informação requerida.
A solicitação de acesso não possui forma específica, sendo permitido a órgãos e entidades o recebimento de pedidos de acesso à informação por qualquer outro meio legítimo, como contato telefônico, correspondência eletrônica ou física etc.4 Pode-se, para tanto, ser oportunizado, pela autoridade pública, formulário-padrão para se efetuar pedido de aceso à informação. A única exigência para a solicitação limita-se à necessidade de o postulante se identificar e especificar a informação requisitada.
Quanto ao primeiro requisito, ele pode ser cumprido comprovando-se que o solicitante possui inscrição no cadastro de pessoa física, por meio de carteira de identidade civil ou qualquer outro documento equiparado. Destaca-se, por oportuno, que o texto da lei não exige que se tenha necessariamente um documento para a identificação, mas sim a plena individualização do requerente, o que implica dizer que o pedido inicial não poderia exigir que o interessado possua registro civil, CPF etc., desde que se pudesse saber quem está formulando a solicitação de acesso. Nesse ponto, incide o disposto no §1º da regra ora analisada.
Em síntese, o registro civil de qualquer espécie não é condição para formular pedido de acesso, muito embora seja um importante facilitador para se poder individualizar o requerente. O que se reclama é que se consiga saber efetivamente quem pede o que, até para se ter condições de remeter ao solicitante as informações pleiteadas. Em suma, a autoridade pública requisitada deve ter condições de compreender o que ela deve fornecer e a quem deve entregar o objeto do pedido.
Sendo assim, qualquer pessoa, natural ou jurídica,5 pode solicitar dados e informações dos entes sujeitos à Lei nº 12.527/2011. Ressalva-se que as pessoas naturais que sejam acometidas de alguma incapacidade civil, relativa ou absoluta — arts. 3º e 4º do Código Civil —, devem formular pedido de acesso representadas ou assistidas. Para as pessoas jurídicas, entende-se que devem estar devidamente constituídas. Além disso, os entes despersonalizados, como o condomínio constituído sob as leis de direito civil, podem ser sujeitos ativos de solicitação de conhecimento de informações públicas.
Assim, a legitimidade para formular um pedido de acesso é universal, não se tendo maiores restrições nesse sentido. Aliás, a solicitação não se restringe a quem é cidadão, ou seja, a quem detém pleno gozo da capacidade eleitoral ativa. A fórmula utilizada pelo caput do art. 10 conferiu uma espécie de legitimidade universal, sendo que o direito de solicitar informações cabe tanto às pessoas físicas quanto às pessoas jurídicas.
Quanto à pessoa jurídica, deve-se ter o cuidado no sentido de que o pedido seja formulado pelo seu representante legal. Aqui, é importante que o Poder Público saiba qual o endereço, geográfico ou eletrônico, para se remeter a resposta ao pleito.
Deve ser ressaltado que os atos normativos expedidos por cada ente que visem regulamentar a Lei nº 12.527/2011 podem exigir que o solicitante se identifique por determinadas maneiras, desde que essas exigências, obviamente, não inviabilizem o próprio pedido (parte final do §1º do art. 10). Só para se ter uma ideia, no âmbito federal, a identificação do solicitante foi padronizada, exigindo-se, por exemplo, que se forneça nome do requerente, número de documento de identificação válido e, inclusive, indicação do endereço físico ou eletrônico para recebimento de comunicações ou da informação requerida — art. 12 do Decreto nº 7.724/2012. Perceba que essas exigências não inviabilizam o pedido de acesso à informação. Ao contrário, elas pautam condições mínimas para que o cidadão possa receber a resposta à sua pretensão de maneira ágil e objetiva.
Quanto ao objeto do pedido, entende-se que ele, ao máximo possível, não deve ser estipulado de forma genérica. Reclama-se que seja claro, objetivo e preciso, para que a Administração Pública possa responder à solicitação de forma mais efetiva possível.6 Caso a autoridade requisitada considere ser indispensável a existência de mais dados para atender ao requerimento, deve notificar o interessado para que este forneça os dados complementares. Nesse caso, abre-se novo prazo de resposta ao Estado. O que se quer evitar é que a lei de acesso não seja transformada em um baluarte a pedidos sem nexo prático ou completamente despidos de um mínimo sentido. Enfim, não se quer que a LAI seja um canal para irrazoabilidades.
O interessado, ao seu alvedrio, pode requerer que a resposta seja fornecida em meio eletrônico (digital), verbal, físico ou que se permita a ele retirar cópias ou acessar, in loco, os dados que se quer ter acesso. Contudo, esse facultas agendi conferido ao administrado não pode ser absoluto, especialmente diante de situações complexas, que possam comprometer a regular tramitação do pedido ou que gerem custos vultosos, quando, neste caso, o cidadão poderia perfeitamente receber as informações solicitadas de outra maneira. Veja que, quando a pretensão de acesso demandar manuseio de grande volume de documentos ou a movimentação do documento puder comprometer sua regular tramitação, poderá a Administração Pública comunicar data, local e modo para realizar consulta à informação, efetuar reprodução ou obter certidão relativa à informação.7
Além disso, cabe referir que o pedido deve, em regra, ser fornecido sem custo nenhum ao solicitante. O requerente deverá ressarcir à Administração Pública apenas os custos da reprodução de documentos (art. 12, caput). Ainda assim, essa regra será excepcionalizada no caso de ser ele beneficiário da “assistência gratuita da LAI”, ou seja, quando sua situação econômica não lhe permita formular o pedido sem prejuízo do sustento próprio ou da família, declarada nos termos da Lei nº 7.115/1983 (tudo de acordo com o parágrafo único do art. 12 da LAI).
No momento da entrega da informação, deve-se ter o cuidado de colher do solicitante recibo indicando que as informações foram dispensadas. Após, o requerimento deve ser arquivado junto ao órgão competente, a fim de manter um controle dos pedidos de acesso, registro este importante para a formulação do relatório estatístico contendo a quantidade de pedidos de informação recebidos, atendidos e indeferidos, determinado pelo art. 30, inciso III, da Lei de Acesso.
Um ponto importante a ser desenvolvido consiste na análise da ampliação feita pelo §3º do art. 10, em relação ao art. 5º, inciso XXXIII, da CF/1988. O dispositivo constitucional impõe um parâmetro claro para o fornecimento de informações dispostas em arquivos públicos, ou seja, o administrado deve comprovar que o objeto de seu pedido de acesso tenha pertinência a um interesse geral, coletivo ou individual. Do contrário, o pedido pode ser negado, mesmo que o documento não tenha a propriedade de sigiloso.
A LAI, ao contrário, dispensa que se tenha qualquer motivação ou nexo a um interesse qualquer. Enfim, não só silenciou nesse sentido como vedou quaisquer exigências relativas aos motivos determinantes da solicitação de informações de interesse público. Então, surge a seguinte dúvida: poderia o legislador infraconstitucional ter retirado os limites impostos pelo legislador constitucional originário?
A Constituição portuguesa de 1976, ao contrário da previsão feita pelo texto constitucional brasileiro, não exigiu qualquer motivação. Ela não faz o acesso a documentos administrativos depender de um interesse pessoal, geral ou coletivo. Enfim, é omissa nesse sentido. No país lusitano, considera-se que o direito ao acesso tem via dúplice, que não se trata somente de uma prerrogativa de se saber acerca dos dados necessários à defesa de um direito pessoal, mas, ao mesmo tempo, traduz um direito de se ter conhecimento dos “esquemas burocráticos” da Administração Pública, como atas, dossiês, atos, registros, diretivas, estatísticas, circulares, notas etc.8
Não é o caso do Brasil. E, assim, pende a dúvida se o legislador infraconstitucional violou os limites do seu poder normativo. Nesse compasso, avançando no tema, é imperioso tomar por base o conceito de âmbito de proteção dos direitos fundamentais para então avançar na definição e nos limites de sua relativização, especialmente frente ao poder normativo do legislador infraconstitucional.9 Na verdade, o âmbito de proteção de um preceito como aquele constante no art. 5º, inciso XXXIII, seja ele ético, seja ele positivo, possui um dado alcance, uma extensão. No caso, as balizas normativas da regra constitucional são específicas, pois o interesse se mostrava limitado, enfim, calcado em três pertinências (v.g., geral, coletivo e particular). Todas as realidades que se encontram dentro dessa área de abrangência referida passam a sofrer tutela dessas premissas nos limites estabelecidos.10
No entanto, nem todas as regras que tendem a normatizar certa realidade social restringem/relativizam o alcance de certo direito fundamental, como é o caso do §3º do art. 10. Pelo contrário, muitas normas servem à complementação, à especificação, à densificação etc. ao direito previsto constitucionalmente. No caso em análise, o dispositivo da LAI alarga o âmbito de proteção de um direito fundamental.
A partir do texto do §3º do art. 10, percebemos que o pedido de acesso não precisará ter qualquer motivação por parte do solicitante. O texto é claro nesse sentido. A nosso ver, há a necessidade de adaptá-lo aos demais dispositivos constitucionais pertinentes à espécie, especialmente se partirmos do âmbito de proteção do art. 5º, XXXIII, da CF/1988, que exige que o pedido seja feito somente quando se tenha um interesse geral, coletivo ou particular.
Então, baseado na interpretação sistemática de todo o conjunto normativo, questiona-se se o §3º do art. 10 da LAI, ao dispensar qualquer motivação, não teria alargado o âmbito de proteção do art. 5º, inciso XXXIII, da CF/1988, que exige, ao menos em uma interpretação superficial, que os Poderes Públicos somente concedam informações relativas a uma dessas três categorias ali constantes. Soluções diversas poderiam advir desse questionamento, como:
a) poder-se-ia considerar que o legislador ordinário alargou o âmbito de proteção de um direito fundamental, mesmo que o legislador constituinte originário quis restringir. A dúvida, nesse caso, consistiria em saber se é possível ampliar externamente o âmbito de proteção do direito fundamental, retirando esse nexo de pertinência;
b) ou, por fim, poder-se-ia conferir ao art. 10, §3º, uma interpretação conforme a Constituição, ou seja, aplicando-o a partir dos limites de pertinência impostos pelo art. 5º, XXXIII, da CF/1988.
No primeiro caso (letra “a”), o tema pode ser visto de modo diferente dos demais, e sem uma aparente incongruência entre CF/1988 e LAI. O dispositivo constante no art. 5º, XXXIII, da CF/1988 está assim redigido: “Todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.
Logo, a dicotomia pode ser encontrada a partir do interior do texto do próprio direito fundamental:
a) direito a receber irrestritamente qualquer tipo de informação, desde que sejam de interesse particular (no limite da Lei nº 9.507/1997 – Lei do Habeas Data); e
b) direito a receber informações de interesse coletivo ou geral, desde que não sejam imprescindíveis à segurança da sociedade e do Estado (no limite da LAI ou de leis esparsas). Nessa hipótese, pela LAI, não é necessário motivar o pedido. Logo, está presumido, a priori, pela lei, que o pedido se refere a um interesse geral ou coletivo. E a eventual negativa em se fornecer a informação solicitada se dá com base no fato de ser imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, e que também são hipóteses previstas expressamente na lei, mas não no critério de se ter a ausência de interesse geral/coletivo.
Assim, poder-se-ia pensar que a restrição constitucional não se dá pelo interesse em concreto envolvido, mas sim por se tratar de informação que ofereça risco à segurança da sociedade ou do Estado (parte final do art. 5º, XXXIII, da CF/1988). Nesse aspecto, a Lei de Acesso nada ampliou, pelo contrário, ela apontou caso a caso quando há essas restrições.
Cabe destacar, por oportuno, que o acesso a informações de caráter pessoal não depende de lei, uma vez que ele já era autoaplicável, dado que a sua sonegação gerava a possibilidade de se manejar a ação constitucional do habeas data (que justamente pressupõe negação do dado pleiteado). Assim, na perspectiva dos dados de caráter pessoal, a LAI tem quase que uma só importância prática: permitir o acesso a dados pessoais sem a necessidade de negativa prévia, como assim era exigido no que tange ao remédio constitucional mencionado.
Dessa forma, para essa concepção, a Lei de Acesso ganharia a referida importância mais no que se refere à segunda parte do inciso XXXIII do art. 5º da CF/1988, ou seja, quando não se tratar de informação de caráter pessoal. Nesse caso, incidiriam as restrições materiais acerca da segurança da sociedade ou do Estado. Para essa noção, o art. 10, §3º, da LAI aplica-se somente às informações de caráter coletivo ou geral e, nesse caso, dispensa-se que o solicitante motive seu pedido quando se tratar de informação de cunho particular, podendo a informação ser restringida apenas aos casos legais de sigilo. Logo, as informações de caráter pessoal seriam viabilizadas, antes, pelo habeas data, sem que se aplicasse qualquer hipótese de sigilo, o que hoje pode ser feito também pela LAI.
Então, realçando o que foi dito, a parte final do art. 5º, XXXIII, da CF/1988 referir-se-ia apenas às informações de ordem coletiva ou geral. Em uma interpretação de completude com o art. 5º, inciso LXXII, da CF/1988 (que tutela o habeas data), as informações de caráter coletivo ou geral seriam viabilizadas, hoje, pela LAI, sendo que a vedação quanto a essas últimas teria se respaldo apenas na previsão feita pela parte final do art. 5º, XXXIII, da CF/1988, ou seja, em questões que comprometam a segurança estatal.
Esse entendimento reforça a concepção de que a expressão “interesse coletivo ou geral” não seria uma “restrição” ao próprio termo “informação”, tendo em vista que seriam signos que se opõem à expressão “pessoal”. Por isso, não se precisaria provar qualquer nexo de pertinência do interesse à informação que se pretende ter acesso.
Além disso, é importante notar que esses dois termos, “geral” e “coletivo”, agora explicitados na LAI, não possuíam paradigma anterior. Portanto, a Administração Pública não pode mais negar um pedido de acesso simplesmente afirmando que não se trata de informação de caráter pessoal.
Ao que parece, o art. 10, §3º, da LAI quer evitar que o agente público queira saber por qual motivo um administrado está fazendo um pedido de informações que não tem direta ligação com a pessoa do solicitante. Assim, para essa concepção, a matéria poderia ser sistematizada desta maneira:
a) caso um determinado sujeito peça informação a seu respeito (ou seja, o dado pretendido tem ligação com seu nome ou com suas relações jurídicas pessoais), não haveria ressalvas de restrição em nome da “segurança da sociedade ou do Estado”. Essa interpretação adviria essencialmente da leitura conjugada dos incisos XXXIII e LXXII, ambos do art. 5º da CF/1988. Negado o pedido, permitir-se-ia o manejo do habeas data ou de uma ação judicial ordinária, viabilizada pela LAI;
b) se a informação não se referir à pessoa do requerente, trata-se de dado de caráter coletivo ou geral. Nessa hipótese, o pedido não pode ser negado, a partir da dicção do art. 10, §3º, da LAI, salvo quando se tratar de dado que envolva segurança da sociedade ou do Estado, ou informação que, se revelada, viole a esfera íntima do indivíduo. Veja, aqui incidiriam as restrições da parte final do art. 5º, XXXIII, da CF/1988. Mas, em caso de negativa, tampouco caberá habeas data. A questão cingir-se-ia em termos de uma discussão judicial acerca de a vedação ao acesso ser efetivamente legítima a partir dos casos em que a lei ou a Constituição tipificam como de hipóteses de sigilo.
Em nossa opinião, esse entendimento, por mais sistemático que seja, não explica a ampliação feita pela LAI, que claramente nega vigência, por assim dizer, à restrição feita pela Constituição. E, desde já, antecipamos nossa opinião no sentido de que o referido inciso XXXIII do art. 5º, ao pautar nexos de pertinência ao interesse no acesso à informação, implementou verdadeiras limitações. Tal norma fundamental fixou balizas e parâmetros específicos, com inegável necessidade de que o acesso tenha certo nível de pertinência. Ao dizer que somente se terá acesso às informações cujo interesse seja de três tipos (particular, geral ou coletivo), o texto constitucional pautou a atuação do legislador e do administrador no que se refere ao mencionado conhecimento dos dados públicos.
Do contrário, teria silenciado nesse sentido, como fez a Constituição portuguesa. Caso se optasse pelo primeiro entendimento, o art. 5º, XXXIII, deveria ser redigido da seguinte forma: “Todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade […]”. Mas não foi. O legislador constituinte originário determinou, em outras palavras, que as informações públicas não sejam fornecidas por mero deleite, por motivos comezinhos, beirando a fofoca etc. A informação deve, sim, possuir um dos três interesses indicados pelo referido inciso XXXIII, ainda que de maneira indireta. Leva-se em conta que existe uma pertinência, uma demonstração de interesse, no que se refere aos pedidos de informação.
Assim, não se pode pensar que o art. 10, §3º, da LAI acabou por evitar que o agente público queira saber por qual motivo alguém está fazendo um pedido de informações que não tem diretamente a ver com o nome dele ou com um interesse coletivo ou geral. Pensar assim será pautar uma verdadeira restrição ao próprio art. 5º, XXXIII, da Constituição Federal. Veja que as informações deverão necessariamente ter ligação com o nome do requerente ou, ao menos, ser de interesse coletivo ou geral. Esse dado ou deve advir naturalmente da informação solicitada ou, em caso de dúvida, ser provado pelo interessado. Daí, não se pode admitir que o pedido seja “completamente imotivado”, como quer o §3º do art. 10.
Veja que o legislador constituinte estabeleceu duas restrições a serem observadas: a pertinência do interesse (parte inicial do inciso XXXIII do art. 5º) e a vedação de revelar informações relativas à segurança (parte final). Ao que tudo indica, a LAI “esqueceu” de mencionar a primeira delas, especificando de forma muito detalhada a segunda.
Além disso, a Constituição Federal parametrizou o pedido de acesso a informações em três flancos: particular, geral ou coletivo. E é a partir desses três vieses que a questão deve ser interpretada, adicionado à necessária ponderação para com o também direito fundamental à proteção da intimidade e da vida privada.
Nesse contexto, uma zona negativa (ou seja, um campo em que a LAI não incide) pode ser estabelecida com muita convicção: não se pode permitir o acesso a informações que não sejam atreladas ao interesse geral, coletivo ou particular, o que significa dizer que o tal acesso não pode ser subvertido para práticas sensacionalistas, que visem ao deleite pessoal, notadamente afrontosas à dignidade humana. Esse parâmetro, como dito, parece-nos muito claro.11 E ele é referendado de forma expressa pelo STF, quando do deferimento da liminar da Suspensão de Segurança nº 3.904/SP, analisada anteriormente.
Em resumo, deve-se voltar ao texto da Constituição para se dizer que o cidadão pode pedir uma informação de caráter particular, geral ou coletivo, nenhuma mais. É isso que a CF/1988 diz. Adicione ao contexto em questão o fato de que a informação somente será fornecida se não acobertada por uma espécie de sigilo (v.g., arts. 22, 23 e 31 da LAI).
Sobre o outro ponto do debate, ou seja, se as hipóteses de sigilo teriam eficácia ou não frente à solicitação de acesso de informação particular (pessoal), poder-se-ia ver a questão também sob dois contornos jurídicos. Para um primeiro entendimento, as informações de caráter pessoal não sofreriam restrição qualquer, justamente por se estar vedando um direito de defesa — entendimento já desenvolvido logo antes. O sigilo da LAI ou da parte final do inciso XXXIII repousa sobre dados objetivos, e não subjetivos (pessoais), porque as hipóteses de vedação de acesso não podem ser opostas para com as informações solicitadas pelo próprio indivíduo. Logo, não se poderia ter sigilo para com a própria pessoa, como se pudessem ser estabelecidos segredos pessoais a um sujeito sem sua anuência.12 Trata-se, assim, de direito do administrado à privacidade, e não de um direito do Estado ao sigilo dos dados, sob pena de se subtrair o direito do indivíduo de conhecer dados relativos à sua pessoa.13 Então, as restrições mencionadas na parte final do inciso XXXIII aplicam-se somente a terceiros, não ao próprio indivíduo que solicita informação sua.
Outro entendimento permite compreender que se pode, em certas situações, opor as hipóteses de sigilo para com pedido de informações de interesse particular. Em outra ótica, essa interpretação leria o art. 5º, LXXII, da CF/1988, de maneira a coligar com os demais dispositivos constitucionais, especialmente com o art. 5º, XXXIII. A partir da unidade da Constituição, os dois dispositivos deveriam ser vistos conjuntamente. Nesse caso, mesmo em se tratando de pedido de ordem pessoal, as hipóteses de sigilo permaneceriam aplicáveis. Essa outra visão sobre o tema, ao que parece, considera que as ressalvas da parte final do art. 5º, XXXIII, da CF/1988 aplicam-se a todo o restante do dispositivo: informações de interesse geral ou coletivo e, inclusive, as de interesse particular.
Então, sistematicamente, o segundo entendimento, agora exposto, afirma que a restrição “ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado” incide também às informações de cunho pessoal. E isso é transportado também ao inciso LXXII do art. 5º. Do contrário, negar-se-ia a incidência dessa parte final do inciso XXXIII a ambas as categorias desse dispositivo (informações de caráter geral/coletivo e particular).
Posicionando-se dessa maneira, interpreta-se que o inciso XXXIII confere um direito a ser efetivado por duas garantias: por meio do habeas data (da Lei nº 9.507/1997) e pela LAI. As restrições da parte final se aplicam às duas questões, tanto que o art. 1º, caput, da própria Lei do Habeas Data foi revogado porque não era estabelecida, “[…] ademais, qualquer sorte de ressalva às hipóteses em que o sigilo afigura-se imprescindível à segurança do Estado e da sociedade, conforme determina a própria Constituição (art. 5°, XXXIII)”.14
Colocando à prova esse segundo entendimento, ao que parece, ele revela um sucesso pragmático maior do que o primeiro. Imaginemos a seguinte situação: a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) está investigando um determinado sujeito, dado que existem fundadas suspeitas de que ele venha a praticar um ato terrorista. Caso seja dada razão à primeira tese — de que não se pode aplicar qualquer espécie de sigilo ao sujeito que formula pedido de acesso a informações que se liguem a sua pessoa —, esse indivíduo espionado poderia pedir para ter acesso às investigações, alegando justamente que não há nenhuma barreira ao acesso a dados de sua pessoa, enfim, que o Estado não poderia se opor à pretensão de disponibilização dos dados de cunho particular.
Contudo, se assim fosse permitido, a investigação estaria fadada ao fracasso, o que, na prática, revela que existem casos de sigilo de informações pessoais ligadas a um determinado sujeito e que podem ser opostas a ele. Destaca-se que são casos raros e extremos, mas existentes. Sendo assim, como dito, em casos muito peculiares, consideramos que se aplicam as hipóteses de sigilo também à ação constitucional do habeas data, e, claro, à primeira parte do art. 5º, inciso XXXIII, da CF/1988.
Quanto ao segundo item, entende-se que o legislador infraconstitucional restringiu o disposto no art. 5º, XXXIII, da CF/1988, na medida em que dispensou qualquer motivação quando formulado um pedido de acesso, porque a Constituição determina que se tenha um nexo, uma pertinência às três categorias de informações. A vontade do legislador constituinte originário não foi respeitada, e essa restrição foi consciente, porque, como dito, do contrário, teria apenas feito referência ao signo “informações”, sem qualquer qualitativo.
Pensar que essa ampliação é possível seria o mesmo que permitir que uma lei diga que o domicílio pode ser invadido em outro caso que não aqueles previstos pela Constituição, ampliando, assim, a restrição do texto constitucional, o que, acredita-se, não é possível. Ou se assim se pensar, poderia ser considerado como constitucionalmente admissível (mas não é) que uma lei fizesse previsão de outros casos de imunidade tributária, ampliando o âmbito de proteção do dispositivo constitucional específico.
Pode-se dizer, então, que, pela via da interpretação conforme a Constituição, procurar-se-á, por meio de uma redução de um ou mais sentidos, manter o ato normativo infraconstitucional vigente no sistema, uma vez que, de acordo com o texto legislativo fundamental,15 ou seja, o art. 10, §3º, da LAI, conforme o art. 5º, XXXIII, da CF/1988. Aliás, a técnica da interpretação conforme a Constituição tem por função principal preservar a ordem jurídica, definindo os contornos dos respectivos âmbitos hermenêuticos das regras infraconstitucionais. Enfim, ela pretende compatibilizá-los com o texto da Constituição Federal, ou melhor, deixar os textos das normas ordinárias de acordo com o texto maior.16
Assim, no caso, o intérprete do art. 10, §3º, da LAI deve priorizar uma compreensão que venha ao encontro da Constituição, lendo de acordo com o texto do art. 5º, inciso XXXIII, em sua inteireza. Essa forma de interpretar põe em relevo a unidade da ordem jurídica, o que preenche as lacunas do ordenamento normativo. Produzir-se-ia, portanto, uma “otimização constitucional”. Em sendo assim, o intérprete encontrará um sentido constitucional ao caso concreto. O horizonte de possibilidades não se amplia ou se reduz, mas, sim, define-se.17
Mostra-se, por lógico e razoável, que não sejam admitidos pedidos levianos, espúrios ou que estejam ligados somente ao deleite pessoal. A LAI não pode servir de um subterfúgio para se praticar abusos de direito. Utilizar de um favor legal para fins ilegítimos e despidos de uma finalidade ética seria o mesmo que praticar um desvio de finalidade ou um abuso de direito, categorias que são, a todo custo, rechaçadas pela ordem jurídica. Considera-se, assim, legítimo que não sejam recebidos os pedidos despidos da devida seriedade. Em termos abrangentes, um pedido desse naipe pode acabar por prejudicar o exercício do direito fundamental de acesso às informações públicas de outro sujeito.
Um bom paradigma para pautar os pedidos de acesso seria a metáfora das “três peneiras de Sócrates”. Atribui-se ao filósofo ateniense a construção teórica no sentido de que qualquer coisa que se diga deva, antes, passar pelo filtro da bondade, da verdade e da utilidade. Do contrário, não se deve pronunciá-las. Assim, analogicamente, quando um pedido de acesso à informação pública não for útil, verdadeiro e bem-intencionado, deverá ser indeferido de plano. Eis um bom parâmetro à espécie.
Ao mesmo tempo, os entes públicos que se sujeitam à incidência da LAI devem tomar todo o cuidado no sentido de evitar que o acesso virtual não se transforme em um canal que abra espaço para a realização de quedas ou violações de sistemas de dados, como por solicitações em massa. Os mencionados sistemas, assim, devem estar preparados caso haja tais incursões, resguardando-se dessas práticas abusivas por meio de mecanismos específicos de tecnologia de informação.