A hipersexualização infanto-juvenil na internet e o exercício da autoridade parental na era da superexposição | Coluna Direito Civil

28 de dezembro de 2021

Coluna Direito Civil

 

A interface entre infância, adolescência e tecnologias tem sido, ainda, tumultuada. Apesar de muito se comentar sobre os incontáveis benefícios da internet na vida de crianças e adolescentes, os riscos ainda são pouco divulgados. Nesse contexto, merece reflexão mais aprofundada o papel dos pais na condução da atuação dos filhos no ambiente digital, locus este que não dispensa o exercício da autoridade parental. Muito pelo contrário: como a internet não combina com controle das informações, faz-se necessário ainda mais cuidado para existir nesse mundo virtual, naquilo que temos denominado de educação digital

Inserido nessa discussão, discute-se cada vez mais o tema da adultização precoce, especialmente com meninas, que, embora não seja um fenômeno recente, tem ganhado novos contornos em razão das novas tecnologias. Nesse contexo, o alcance que influencers mirins têm no ambiente digital desperta o desejo de ser igual, de consumir os mesmos produtos e serviços, de ter o mesmo lifestyle… Hoje é cada vez mais comum que as meninas coloquem maquiagens pesadas, subam no salto e façam poses provocantes: são esses sinais de uma hipersexualização precoce do corpo infantil, que passa pela condução responsável da autoridade parental e não pode ser negligenciado pelo Direito, especialmente pelo Ministério Público, pelos Conselhos Tutelares e por toda a sociedade.

A título de exemplo, quem acessa o canal oficial do YouTube da adolescente conhecida como MC Melody dificilmente dirá que a menina nasceu no ano de 2007. Famosa desde a infância, seu canal tem 3.33 milhões de inscritos e seu clipe da música “Vai rebola” conta com 27 milhões de visualizações. O caso de Gabriella Abreu Severiano, verdadeiro nome da cantora mirim, foi alvo de intensas polêmicas que giram em torno da sua erotização precoce, ocorrida desde a infância e atribuída pela mídia ao estímulo, sobretudo, do pai da menina, Thiago de Abreu, conhecido como MC Belinho. Com maquiagem e roupas provocantes, quem acessa os vídeos da adolescente, publicados ainda na infância, choca-se com o teor adultizado das postagens, muitas vezes com apelo sensual, sendo dificilmente capaz de apontar corretamente a sua idade.

Se é certo que aos pais incumbem deveres de proteção da infância e da adolescência, sendo os filhos famosos ou não, é mais certo ainda que não deve caber aos pais promover por conta própria uma erotização precoce de seus filhos por meio da exposição que fazem ou permitem que seja feita deles nas redes sociais e na internet de um modo geral.

É assim que este debate acerca da hipersexualização infantil se conecta de forma quase indissociável a outro fenômeno mais amplo, com sensíveis repercussões para o desenvolvimento da criança e do adolescente: o oversharenting ou, no termo que se popularizou, sharenting, neologismo que deriva da junção das palavras de língua inglesa share (compartilhar) e parenting (cuidar, exercer a autoridade parental)[1] e consiste, basicamente, “no hábito de pais ou responsáveis legais postarem informações, fotos e dados dos menores que estão sob a sua tutela em aplicações de internet”.[2][3] O termo chegou a ser definido pelo Dicionário Collins, como “a prática de um pai/mãe de usar regularmente as mídias sociais para comunicar grande quantidade de informação detalhada acerca de sua criança.”[4] Trata-se, com efeito, de um exercício disfuncional da liberdade de expressão e da autoridade parental dos genitores ou de parentes próximos, que acabam solapando a privacidade de seus filhos por meio de suas atividades nas redes sociais e na internet de um modo geral.

Veja-se, por exemplo, que no caso de MC Melody, pode-se observar que em vídeo disponível no Youtube, datado de 2015, a então criança “aparece em uma casa de shows noturnos dançando funk de forma extremamente sensual e erotizada. Quem observa tudo isso? Seu pai, que canta e incentiva a filha a continuar rebolando de pernas para o ar na frente de uma multidão de pessoas adultas, que gritam de histeria e filmam a menina ao som do Bonde das Maravilhas.”[5]

Ou seja, alie-se a superexposição na internet com a prática de erotização precoce e passa-se a ter um “combo explosivo” para o desenvolvimento psicofísico daquela criança ou adolescente, que passa a estar exposta em situação de vulnerabilidade aos olhos de toda a grande mídia, que, embora inegavelmente possa incluir fãs, inclui também, com assustadora frequência, pedófilos e diversos criminosos, que passam a se nutrir daquelas imagens e vídeos postadas em sua grande maioria pelos próprios pais das crianças ou pelas crianças, mas com o consentimento desses.

Isso porque, nada obstante sejam inicialmente exibidas por seus pais, não raro a exposição online passa a ser em algum momento a vontade da própria criança/adolescente: é o que se viu na pandemia da Covid-19 com a explosão do número de menores com contas no aplicativo TikTok.[6] Por certo, tanto a vontade, como a autonomia dessas pessoas humanas em desenvolvimento devem ser consideradas, mas há que se investigar se eles não estão fazendo aquilo por pressão dos pais.

E tudo isso sem falar nas marcas que essas crianças e adolescentes vão criando no ambiente virtual – de início, involuntariamente – e que podem acabar as acompanhando para toda a vida, pois, depois que essas imagens e vídeos são divulgadas no mundo digital, é bastante difícil exercer controle sobre as visualizações ou sobre o destino que eles terão.[7]

Como advertem Benjamin Shmueli e Ayelet Blecher-Prigat, “o principal papel e responsabilidade dos pais é proteger seus filhos”.[8] Uma exposição incontrolada e irrefletida da imagem, dos dados e informações faz exatamente o oposto: vulnera, em vez de proteger. No fundo, quando se discute o (over)sharenting, o que se está investigando, em verdade, são os limites da chamada autoridade parental, em face das novas tecnologias, especialmente das redes sociais.

Considerando que a vida de quase toda criança já tem inegáveis aspectos online, que tornam cada dia mais tênue a separação entre o mundo analógico e o digital, é de grande importância que os pais entendam que sua função nesse novo ambiente está precipuamente ligada à educação digital,[9] que consiste em orientar e supervisionar os filhos para que aprendam a navegar de forma segura. Em outras palavras: cabe aos pais a promoção da inserção responsável dos filhos no ambiente virtual, de maneira que estes aproveitem seus inúmeros benefícios, ao mesmo tempo em que estejam capacitados para lidar com seus perigos.

Na cultura atual, que valoriza autoexposição, renúncia à privacidade, capacidade de influenciar, de ser popular, ganhar seguidores e que acaba incentivando sexualização precoce, pergunta-se: podem os pais funcionar como incentivadores desses valores, operacionalizando instrumentos para que os filhos estejam cada vez mais integrados nesse espaço?  Podem os pais permitir que os filhos se exponham e sejam adultizados por meio de terceiros (mídia, empresários, amigos etc)? Estariam essas condutas no âmbito de uma esfera de liberdade em relação à forma da condução do processo educacional facultada pela autoridade parental?

A rigor, até que a prole alcance a maioridade, ou seja, complete 18 (dezoito) anos, os pais devem guiar a sua vida, bem como decidir por ou com eles, vez que dependendo da idade irão representá-los ou assisti-los. Entretanto, na medida em que a Constituição determinou que criança e adolescente são alvos de proteção especial, por serem pessoas em desenvolvimento, valorizando a construção da sua personalidade, deve-se analisar criteriosamente a forma de exercício dessa autoridade parental, cotejando-a com a gradativa aquisição do discernimento – rectius, possibilidade do exercício de liberdades, inclusive, a de expressão, a ser exercida com a correlata responsabilidade.

A barreira ao exercício da autoridade parental é, com efeito, o melhor interesse das crianças e adolescentes, ligada ao exercício de seus direitos fundamentais. Assim, os pais devem atuar tanto na supervisão da navegação protegida quanto na produção de conteúdo de forma preservada, que não exponha – ainda mais – os filhos a efeitos que possam lhes prejudicar no futuro. Navegar, postar e influenciar são ações que precisam ganhar sentido que as identifique com segurança, a fim de que o crescimento biopsíquico seja saudável, com redução de riscos de dados pulverizados na rede que se perpetuam involuntariamente, sem qualquer controle das próprias informações,[10] e sem que os conteúdos, a preparação para eles, sua idealização acabe por prejudicar o “ser criança”, que não é apenas uma preparação para a vida adulta, mas uma fase cujas vivências e experiências são um fim em si mesmo. A antecipação desse momento acaba por prejudicar o próprio desenvolvimento infantil e as fases subsequentes.

No caso da hipersexualização dos filhos pelos próprios pais, nota-se grave disfunção da autoridade parental, pois os pais acabam excedendo a fronteira da proteção e promoção para a exposição. Com o intuito de ganhar seguidores, tornar-se popular, fazer publicidade e eventualmente até ter benefícios financeiros, desvirtua-se o próprio filho, antecipando fases significativas da vida.

Diante disso, não há dúvidas de que a função da autoridade parental no ambiente digital é orientar, supervisionar e, sobretudo, garantir uma navegação segura que não implique a exposição exacerbada dos filhos, o incentivo ou a permissão para que tanto eles – agentes de proteção dos próprios filhos – quanto terceiros, usem seus filhos com objetivos patrimoniais, com o escopo de ganhar seguidores, de alcançar maior popularidade, porque os poderes e deveres oriundos da autoridade parental não lhes possibilitam o consentimento para tais condutas, uma vez que contrariam frontalmente o melhor interesse dos filhos. Quem deveria proteger não pode ser quem mais vulnera.

 


Ana Carolina Brochado Teixeira
Doutora em Direito Civil pela UERJ.
Mestre em Direito Privado pela PUC Minas.
Professora do Centro Universitário UNA.
Coordenadora editorial da Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil. Advogada.

 

Filipe Medon
Doutorando e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Substituto de Direito Civil na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e de cursos de Pós-Graduação do Instituto New Law, ITS-Rio, PUC-Rio, IERBB-MP/RJ, CEPED-UERJ, EMERJ, ESA-OAB/RJ, Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul e do Curso Trevo. Membro da Comissão de Proteção de Dados e Privacidade da OAB-RJ, do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Pesquisador em Gustavo Tepedino Advogados.
 
[1] EBERLIN, Fernando Büscher von Teschenhausen. Sharenting, liberdade de expressão e privacidade de crianças no ambiente digital: o papel dos provedores de aplicação no cenário jurídico brasileiro, In: Rev. Bras. Polít. Públicas, Brasília, v. 7, nº 3, 2017, p. 258.
[2] “A prática consiste no hábito de pais ou responsáveis legais postarem informações, fotos e dados dos menores que estão sob a sua tutela em aplicações de internet. O compartilhamento dessas informações, normalmente, decorre da nova forma de relacionamento via redes sociais e é realizado no âmbito do legítimo interesse dos pais de contar, livremente, as suas próprias histórias de vida, da qual os filhos são, naturalmente, um elemento central. O problema jurídico decorrente do sharenting diz respeito aos dados pessoais das crianças que são inseridos na rede mundial de computadores ao longo dos anos e que permanecem na internet e podem ser acessados muito tempo posteriormente à publicação, tanto pelo titular dos dados (criança à época da divulgação) quanto por terceiros.” (EBERLIN, Fernando Büscher von Teschenhausen. Sharenting, liberdade de expressão e privacidade de crianças no ambiente digital: o papel dos provedores de aplicação no cenário jurídico brasileiro, In: Rev. Bras. Polít. Públicas, Brasília, v. 7, nº 3, 2017, p. 258).
[3] Ver mais em: BESSANT, Claire. Sharenting: balancing the conflicting rights of parents and children. In: Communications Law, vol. 23, n. 1, 2018. Ed. Bloomsbury Professional, pp. 7-24.
[4]“This kind of activity is called sharenting and has been defined by Collins Dictionary as ‘the practice of a parent to regularly use the social media to communicate a lot of detailed information about their child’ (Sharenting, as cited in: Collins Dictionary). The phenomenon of sharing and disclosure of intimate information about children by their parents through social media is growing rapidly. Therefore, it has become a subject of research by increasing numbers of scholars worldwide.” (BROSCH, Anna. When the Child is Born into the Internet: Sharenting as a Growing Trend among Parents on Facebook. In: The New Educational Review, 2016, p. 226).
[5] AMORIM, Bárbara. HOLANDA, André. Melody e a erotização dos corpos e discursos infantis. In: Anais XXIV Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste, p. 06. Disponível em: <https://portalintercom.org.br/anais/sudeste2019/resumos/R68-1204-1.pdf> Acesso em 12 jan. 2021.
[6] “De acordo com o aplicativo de controle parental AppGuardian, crianças passam em média 11 horas na rede social, que já está entre as cinco mais baixadas do país.” (TikTok cresce entre crianças brasileiras e preocupa pais. In: Abc da comunicação, 03 abr. 2020. Disponível em: <https://www.abcdacomunicacao.com.br/tiktok-cresce-entre-criancas-brasileiras-e-preocupa-pais/> Acesso em 23 jan. 2021).
[7] TEPEDINO, Gustavo; MEDON, Filipe. A superexposição de crianças por seus pais na internet e o direito ao esquecimento. In: SARLET, Gabrielle Bezerra Sales; TRINDADE, Manoel Gustavo Neubarth; MELGARÉ, Plínio (coords.). Proteção de Dados; temas controvertidos. Indaiatuba: Editora Foco, 2021; MEDON, Filipe, (Over)sharenting: a superexposição da imagem e dos dados de crianças e adolescentes na Internet e os instrumentos de tutela preventiva e repressiva. In: LATERÇA, Priscilla Silva; FERNANDES, Elora; TEFFÉ, Chiara Spadaccini de; BRANCO, Sérgio. Privacidade e Proteção de Dados de Crianças e Adolescentes, Rio de Janeiro: Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro. Obliq, 2021.
[8] No original: “To be sure, the primary role and responsibility of parents is to protect their children.” (SHMUELI, Benjamin; BLECHER-PRIGAT, Ayelet. Privacy for children. In: Columbia Human Rights Law Review, vol. 42, p. 761).
[9] TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. NERY, Maria Carla Moutinho. Vulnerabilidade digital de crianças e adolescentes: a importância da autoridade parental para uma educação nas redes. In: EHRHARDT JR., Marcos; LOBO, Fabíola (orgs.). Vulnerabilidade e sua compreensão no direito brasileiro. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 133-147.
[10] Stefano Rodotà trata a privacidade como controle sobre as próprias informações, de modo que se pode afirmar que privacidade é autonomia informativa sobre a própria vida.  (RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Organização, seleção e apresentação Maria Celina Bodin de Moraes. Trad. Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 7).

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