Rafael Véras[1]
Gustavo Carneiro de Albuquerque[2]
Os contratos de concessão não podem mais ser interpretados como pactos que veiculam um regime jurídico-administrativo prenhe de prerrogativas publicísticas. De fato, de acordo com literatura econômica, os contratos de concessão ilustram um problema de agência (principal-agent problem), considerando a miríade de atores que participam da sua arquitetura concessória, na qual o Poder Concedente ocupa a figura do Principal enquanto o concessionário a figura do Agente. Nesse quadrante, o regime concessório deve ser reinterpretado à luz dos seguintes problemas econômicos: (i) problema da teoria da agência (Agency Theory); (ii) problema de risco moral (moral hazard); (iii) problema de assimetria de informação (asymmetric information); (iii) problema de custos de transação (transaction costs); (vi) problema de contratos incompletos (incomplete contracts); e, (vi) por problemas de incerteza (uncertainty). Nesse quadrante, temos para nós que o contrato de concessão veiculada um modelo de regulação endógeno, por intermédio do qual se estabelece um sistema de incentivos, a ser aprimorado por modelagens contratuais experimentais.
Exemplo saliente da concepção aqui apresentada são as concessões de aeroportos, que, desde a Concessão do Aeroporto de São Gonçalo do Amarante (ASGA) até a apresentação da 6ª Rodadas, vem experimentando evoluções regulatórias lastreadas nos resultados das experiências anteriores. Na concessão do ASGA (1ºRodada), por exemplo, atribuiu-se o risco da exploração da torre de controle ao concessionário, distribuição que restou ineficiente, seja por se tratar de função que envolve aspectos militares, seja por que o concessionário não dispõe de condições econômicas para gerenciar tal risco. Diante do que as modelagens das 2° e 3° Rodadas não reproduziram tal distribuição. O racional, pois, foi o de reduzir os custos de transação do leilão, considerando que os usuários é que pagarão pelo provisionamento de riscos para os quais o concessionário não tem como suportar.
Nada obstante, nas 2ª e 3ª Rodadas, com receio de se inviabilizar a exploração de infraestruturas aeroportuárias deficitárias, sob a justificativa de potencial transferência de know-how, foi engendrada uma modelagem, por intermédio da qual a Infraero teria a participação societária de 49% da Sociedade de Propósito Específico – SPE, a ser constituída com o Concessionário (Acionista Privado). Acontece que se constatou que tal modelagem produziu ineficiências e prejuízos operacionais à própria Infraero, seja por que os consórcios vencedores eram construtoras (e partes relacionadas), o que importou no trespasse de altos valores do CAPEX do projeto para a estatal, seja por que ela tinha de arcar com parcela da outorga do leilão, a qual não tinha sido, por ela avaliada, quando da apresentação da proposta comercial. Não se constatou a intentada transferência de conhecimento dos operadores aeroportuários à empresa pública brasileira, e apresentou-se, pois, uma questão de risco moral (Moral Razard), pois que, após a realização do leilão, um dos contratantes poderia se valer de vantagens informacionais em relação à contraparte.
Ainda nas 2ª e 3º Rodadas, constatou a configuração do fenômeno do Winner´s Curse, situação na qual o vencedor do leilão apresenta uma proposta, demasiadamente, otimista a propósito dos aspectos econômico-financeiros do leilão. Especificamente nessas rodadas, as propostas comerciais se mostram inexequíveis pelo não atendimento dos níveis de demanda estimados nos EVTEAs (especialmente provocados pela eclosão da crise de 2014 e pelos achados da Operação Lava-Jato). A modificação dos custos de financiamento atrelados ao novo rating do país acelerou processos de drásticas mudanças societárias nos aeroportos das rodadas em questão, com uma tendência clara de saída dos grupos construtores e assunção pelos grupos operadores. Tudo contribuiu, no curto prazo, para a repactuação da curva de pagamentos de outorga, na forma do disposto na Lei n°13.499/2017. Em resumo, nessas experiências concessionárias, constatou-se um problema de seleção adversa, que teria de ser corrigido nas próximas modelagens – o que importou, inclusive, no advento de um regime de relicitação dos ativos, delineado na Lei n°13.448/2017. Precisava-se, pois, endereçar esses temas.
E assim se passou. Na 4° Rodada, restou suprimida a obrigatoriedade de participação compulsória da Infraero no Acionista Privado. Assim é que, a fim se se reduzir as chances da apresentação de propostas inexequíveis, se estabeleceu uma sistemática segundo a qual 25% da outorga fixa (adicionada a eventual ágio) seria pago, no ato de assinatura dos contratos, e os 75% restantes seriam pagos, a partir do sexto ano de vigência do contrato. Mais que isso, o restante do VPL seria pago na forma de uma contribuição variável lastreada no faturamento bruto anual das concessionárias. Tais alterações propiciaram a diminuição da assimetria de informações entre as partes, reduzindo os impactos da transferência de custos das obras e da outorga a uma empresa estatal (a Infraero), e garantindo-se a exequibilidade das propostas (tanto pelo pagamento antecipado, tanto pela instituição de uma carência nos anos mais pesados de investimentos das concessões). A rodada foi importante para a retomada da confiança de investidores estrangeiros no Brasil em um cenário pós Operação Lava-Jato e foi marcada por um resultado em que apenas consórcios contendo 100% de capital estrangeiro lograram-se vencedores, o que confirmou a avaliação do Governo de que o rating das empresas brasileiras estava afetando os custos de project finance naquele momento.
Na 5ª Rodada, por sua vez, procurou-se endereçar a questão da existência de aeroportos deficitários, por intermédio de uma modelagem de subsídio cruzado entre aeroportos dentro de cada bloco. Diante do que a exploração dos terminais superavitários viabilizaria os deficitários (evitando-se o Cherry Picking). A rodada foi marcada também por uma maior flexibilização regulatória e diminuição de investimentos prescritivos ou obrigatórios. Nesse quadrante, aprimorou-se a cláusula de “gatilhos de investimentos”, de modo que as obrigações de investimento do concessionário só serão instituídas na hipótese do atingimento de determinado nível de demanda (sem a fixação de prazo limite, como ocorria nas rodadas anteriores), ou para o atendimento das obrigações de desempenho (correspondente ao nível mínimo de conforto para os passageiros, nível ótimo). Por meio de previsão dessa ordem, reconhece-se, pois, a incompletude de tais ajustes (incomplete contracts) e os problemas de incerteza (uncertainty), que permeiam a sua execução. Ainda nesta modelagem, previu-se um sistema de liberdade tarifária, no qual operadores que não detém o potencial de exercer o poder de mercado tem a liberdade de fixar diferentes valores tarifários no que toca à aviação regular de passageiros (embarque, conexão, pouso e permanência), a exemplo do que já se passava no transporte aéreo de passageiros. Também nessa linha se delineou, em maiores detalhes, o instituto da proposta apoiada, por intermédio do qual são celebrados acordos entre operadores aeroportuários e as empresas aéreas, cujo objetivo é o estabelecimento de uma tarifa adequada, a ser submetida ao crivo do regulador – na linha do que recomenda Organização da Aviação Civil Internacional – OACI. Tais modelos são consagrados em outras experiências bem-sucedidas, como, por exemplo, o regime tarifário aplicado no Aeroporto de Heathrow, na Inglaterra, por meio dos conhecidos institutos do constructive engagement e do consultation conditions. São cláusulas que visam a reduzir a assimetria de informações entre o regulador e os regulados a propósito dos reais custos da firma, as quais têm a possibilidade, inclusive, de produzir como externalidade positiva a atração do ingresso no mercado de empresas de baixo custo (Low Costs).
Na 6º Rodada, o experimentalismo regulatório teve prosseguimento, por exemplo: (i) pela estipulação de cláusula de “gatilhos de investimentos”, que não estão vinculadas, necessariamente, à realização de obras pelo concessionário, mas à apresentação de um plano de ação, que dê conta dos efeitos da saturação da infraestrutura aeroportuária; (ii) por ter se desobrigado a concessionária a integralizar seu capital social, no valor equivalente à Contribuição Inicial do Contrato e às obrigações prévias à sua assinatura, como uma forma de melhorar as condições de financiamento para a cobertura do ágio proposto em sua proposta comercial; (iii) considerando a participação de empresas que exploram atividades que geram receitas não tarifárias nas rodadas anteriores, excetuou-se a proibição de contratação de partes relacionadas que exploravam receitas extraordinárias, de modo que tais contratos possam ser sub-rogados pelo novo concessionário. Ainda no que toca à sexta rodada e especificamente em relação a dinâmica do leilão, podemos destacar a inexistência de declaração de instituição financeira sobre o plano de negócios do licitante, e, ainda, a possibilidade de o consórcio ser composto exclusivamente por um fundo investidor, por exemplo, que deverá, neste caso, contratar um operador aeroportuário.
No quadrante da matriz de riscos da 6º Rodada, é de se destacar uma importantíssima alteração que pode representar uma tendência para as próximas concessões aeroportuárias, qual seja ter-se admitido, pela primeira vez fora da receita variável, a distribuição de um risco de demanda especialmente vinculado a alterações no regime especial de tributação contido na Zona Franca de Manaus. Significa dizer que o Governo Federal reconhece que o impacto de uma alteração no regime tributário daquela localidade pode inviabilizar a rentabilidade mínima do bloco licitado, o que enseja o compartilhamento do risco entre as partes.
As inovações trazidas na rodada em andamento contêm previsões que consideraram os resultados das rodadas anteriores e buscaram desenhar incentivos, uma vez mais, para a redução dos custos de transação do leilão e otimizar a execução satisfatória do contrato.
Há, portanto, de se concluir esse breve ensaio no sentido de que as concessões de aeroportos evidenciam que as modelagens concessórias devem ser permeadas pela lógica de incentivos e pelo experimentalismo regulatório. São experimentos que produzem externalidades positivas para todos os setores de infraestrutura (rodovias, portos, ferrovias). Avizinha-se a 7ª Rodada das concessões de aeroportos, por intermédio da qual serão licitados os ativos do Santos Dumont e de Congonhas, duas “joias da coroa”. O resultado do Leilão? Não sabemos. Mas, certamente, aprenderemos bastante.
[1] Professor Responsável do LLM em Direito da Regulação e da Infraestrutura da FGV Direito Rio. Doutorando e Mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.
[2] Procurador Federal, Procurador-Geral da ANAC, Graduado em Direito, Especialista em Controle de Regulação e Infraestrutura e Especialista em Direito Processual Civil. Mestrando em Economia. Membro da Comissão de Direito Aeronáutico do CFOAB. Co-Autor da obra Direito Aeronáutico, 2018. Editora D’Plácido. Professor de Direito Aeronáutico do Curso de Direito no IDP.
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