Ao se deparar com um livro que aborda “Os trusts no direito brasileiro contemporâneo”, o leitor poderá indagar qual seria a pertinência de tratar deste complexo tema na perspectiva do direito pátrio. A dúvida surgiria justamente em razão de não haver no direito nacional qualquer normativa expressa que permita a criação de trusts no Brasil. Contudo, e apesar disso, os trusts[1] são sim relevantes para o direito e para a sociedade brasileiros, principalmente a partir de tendências recentes, que levaram à constituição de trusts a partir de capitais de origem brasileira, com repercussões diretas no ordenamento jurídico e na economia nacionais, conforme se demonstrará a seguir.
Em primeiro lugar, é preciso destacar, desde logo, que não existe em nosso ordenamento jurídico um instituto idêntico ao trust, tanto em termos de estrutura quanto de função. Há, por certo, vários institutos que são semelhantes[2], mas nenhum que a ele se equipare. Logo, a incorporação ao direito brasileiro da figura dos trusts por si só já seria relevante por possibilitar o cumprimento de funções que institutos do direito brasileiros não conseguem desempenhar e por apresentar uma arquitetura original.
Em segundo lugar, o fato de a criação de trusts não encontrar expressa permissão em lei não significa a impossibilidade de pactuação destas figuras a partir do território nacional. Os trusts hoje representam um modelo de circulação global, são utilizados em inúmeros países. Sociedades empresárias com rotinas ou que contam com profissionais com experiência de atuação internacional estão acostumadas a utilizar em seu cotidiano e também aqui o fazem. Prova disso é o caso analisado no RESP n.º 1.438.142/SP, de relatoria do saudoso ministro Paulo de Tarso Sanseverino, em que houve a celebração de um “contrato de trust” no Brasil[3]. Ainda que não tenha sido reconhecido o patrimônio de afetação criado pela via contratual — cabendo, portanto, advertência sobre a segurança jurídica do negócio — a situação demonstra que, mesmo sem previsão legal, operações de trusts são celebradas no país.
Em terceiro lugar, os trusts extrapolaram sua identificação com a commom law e se tornaram um modelo global[4], sendo hodiernamente usados também por países de tradição romano-germânica. A larga utilização desta figura motivou a redação da Convenção da Haia de 1985 sobre a lei aplicável ao trust e a seu reconhecimento, a qual estabelece critérios objetivos para se identificar quando existe um trust, suas características e quando deve ter efeitos limitados por mal uso. Ainda que o Brasil não seja signatário da Convenção, há tradução para o português feita por juristas brasileiros e ela serve de fundamentação para consultas e inspiração para leis pátrias.
Em quarto lugar, já existem leis brasileiras que regulam aspectos dos trusts, ainda que de modo rudimentar e, por vezes, equivocado. Afinal, há pessoas físicas residentes no Brasil que constituem trusts no exterior, sendo necessário regrar suas obrigações perante o fisco brasileiro. Neste sentido, mencionam-se a Medida Provisória n.º 1.171/2023[5], a Lei n.º 13.254/2016, a Instrução Normativa n.º 1.627/2016, da Receita Federal do Brasil, e a Solução de Consulta COSIT n.º 41/2020[6]. Além disso, a Lei n.º 13.800/2019, que permite a criação de fundos patrimoniais com o objetivo de arrecadar, gerir e destinar doações de pessoas físicas e jurídicas privadas para programas, projetos e demais finalidades de interesse público, tem franca inspiração numa modalidade de trust chamada endowment fund. Assim, um tipo específico de trust foi adaptado e hoje é expressamente previsto na lei brasileira[7].
Some-se a isso o fato de diversos projetos de lei já tramitarem em nossas casas legislativas com a finalidade de incorporar o trust ao ordenamento jurídico brasileiro. Atualmente, destaca-se o Projeto de Lei n.º 4.758/2020 do Senado, que prevê a regulamentação do “Contrato de Fidúcia”. Ainda que o nome seja diverso, há grande semelhança com a relação jurídica estabelecida por um trust. Ademais, tramita na Câmara dos Deputados o PLP n.º 145/2022, que dispõe sobre a lei aplicável ao trust, sua eficácia e seu tratamento tributário no Brasil.
Em quinto lugar, como proposta de lege ferenda, os trusts poderiam desempenhar importantes funções na proteção de pessoas com deficiência e de pessoas idosas que não possuem herdeiros. Eles proporcionam uma administração mais profissional de recursos e possibilitam também o recebimento de herança em etapas, a partir da vontade de seu instituidor, o que evita a dilapidação de patrimônio do herdeiro.
Sendo assim, constata-se que os trusts estão cada vez mais presentes na realidade brasileira, sendo dever dos operadores do direito conhecer o seu modo de funcionamento, sobretudo porque sua incorporação ao direito brasileiro é uma realidade cada vez mais concreta. Ainda que recentemente os trusts tenham sido associados com práticas escusas, é preciso separar o joio do trigo. Quando constatado uso ilícito, este deve ser energicamente reprimido. Mas o abuso não pode inibir o uso, razão pela qual não se deve descartar os trusts de pronto por este motivo. Afinal, todos os institutos jurídicos podem ser manipulados de modo inadequado, não sendo este preconceito motivo para desconsiderar de pronto a utilização dos trusts. Neste sentido, a crescente regulamentação dos trusts é positiva justamente para inibir que ele seja associado de imediato com práticas escusas e também para que não fique restrito a pessoas com altíssimo poder aquisitivo.
Com estas considerações espera-se ter demonstrado algumas das muitas potencialidades dos trusts e sua relevância para o direito brasileiro. A advocacia, a magistratura, os membros do Ministério Público e os integrantes de outras carreiras jurídicas não podem se dar ao luxo de ficar alheios e desconhecer o trust.
Luciana Pedroso Xavier
Professora de Direito Civil da UFPR. Presidente da Comissão de Direito das Famílias da OAB/PR. Presidente do IBDCont Paraná. Advogada e mediadora. Autora do livro “Os Trusts no Direito Brasileiro Contemporâneo” da Editora Fórum. Contato: luciana@pxadvogados.com.br
REFERÊNCIAS
[1] Importante esclarecer que não existe um modelo único de trust, mas sim diversos. Sendo assim, defende-se que sempre que possível o mais correto é utilizar o termo no plural, isto é “os trusts”.
[2] Como exemplos, podem ser citados a enfiteuse, o fideicomisso, o patrimônio de afetação, a sociedade de propósito específico, a sociedade em conta de participação e a empresa individual de responsabilidade limitada.
[3] STJ, 3.ª Turma, Recurso Especial n.º 1.438.142/SP, Relator: Min. Paulo de Tarso Sanseverino, unânime, DJe em 09/08/2018.
[4] Os trusts surgiram no contexto histórico peculiar da Inglaterra do século XI, após a conquista normanda. Este ponto é tratado com mais profundidade em: XAVIER, Luciana Pedroso. Os Trusts no direito brasileiro contemporâneo. Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 31 e seguintes.
[5] A Medida Provisória n.º 1.171/2023 define o trust como um contrato. Contudo, em certas modalidades de instituição de trust, trata-se de negócio jurídico. Pode parecer exagerado, mas esta imprecisão conceitual e categórica pode contribuir para confusões perniciosas sobre quem são os sujeitos presentes em um trust e seus respectivos papéis.
[6] A Solução de Consulta COSIT n.º 41 COSIT analisou o caso de uma viúva residente no Brasil que foi constituída como beneficiária de um trust criado em Bahamas pelo marido. Ela indagou se os valores que recebia como herança ou renda seriam fatos geradores de IRPF ou ITCMD. Sobre o IR, a conclusão foi a de que: “O recebimento de rendimentos oriundos do exterior por residente no País é fato gerador do imposto sobre a renda e sujeita-se à tributação mensal mediante a aplicação da tabela progressiva mensal (carnê-leão) e na Declaração de Ajuste Anual”. Acerca do ITCMD, a consulta foi declarada ineficaz, uma vez que se trata de tributo de competência estadual.
[7] Segundo pesquisa realizada pelo Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social, há hoje no Brasil 61 fundos patrimoniais (endowment funds) ativos. Disponível em: <https://www.idis.org.br/monitor-de-fundos-patrimoniais-no-brasil/>. Acesso em 25/06/2023.
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