Considerações iniciais
O instituto da multiparentalidade quebrou o paradigma da biparentalidade em nosso ordenamento jurídico, diante da possibilidade de coexistirem, sem haver, necessariamente, a exclusão ou substituição das parentalidades biológica e socioafetiva, cujo reconhecimento se deu em decisões de 1º e 2º graus, mas em 2016, ganhou contorno de precedente judicial diante da repercussão geral reconhecida sob o Tema 622 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), nos autos do Recurso Extraordinário (RE) 898.060/SC, reconhecendo a configuração da multiparentalidade.
O reconhecimento da multiparentalidade equipara o vínculo familiar, seja ele derivado da consanguinidade ou da afetividade, cumulando-os, ensejando o exercício simultâneo dos direitos e deveres parentais por mais de um pai e/ou de uma mãe, cujo reconhecimento atribuirá ao filho não apenas mais um pai e/ou uma mãe, mas também todos os demais vínculos familiares da linha reta, bem como da colateral, além das repercussões quanto aos elos familiares que são formados pelo parentesco biológico ou pelo socioafetivo, quando constituídos de maneira exclusiva.
Como decorrência legal, são produzidos efeitos jurídicos, como corrobora a tese firmada pelo STF, mas diante da realidade vivenciada pelas famílias multiparentais, faz-se necessário analisar o seguinte questionamento que envolve o efeito sucessório diante do reconhecimento da multiparentalidade: se uma pessoa pode receber herança de dois pais, o que ocorre caso o filho venha a falecer antes dos pais, sem deixar descendentes? Indaga-se como será feita a distribuição nessa hipótese.
Multiparentalidade e as repercussões quanto à sucessão dos ascendentes
A sucessão na classe dos ascendentes determina que a herança deverá ser partilhada em duas linhas[1], a paterna e a materna, segundo a proximidade do parentesco desses familiares com o falecido. Caberá, nos termos do § 2º[2] do art. 1.836 do Código Civil de 2002, 50% (cinquenta por cento) do montante hereditário para cada uma das linhas, dividindo-se o total entre os parentes ascendentes que a integrarem.
Simão exemplifica: “se o falecido deixou dois avós maternos e um avô paterno, a herança não se divide em três partes (por cabeça), mas sim por linhas (in linea): 50% para o avô paterno (linha paterna) e 50% para a linha materna: 25% para o avô e 25% para a avó”[3].
Neste ponto, consagrada a possibilidade da multiparentalidade, a indagação que se propõe é: qual a solução aplicada na hipótese de o filho falecer antes dos pais biológico ou socioafetivo? E se houver concorrência com o cônjuge supérstite?[4]
Calderón e Franco[5] sintetizaram o entendimento de como se daria esta divisão da herança do filho para três ascendentes de primeiro grau em duas correntes doutrinárias, a saber.
Uma primeira corrente entende que a herança deverá ser partilhada em duas linhas[6], a paterna e a materna, segundo a literalidade da norma. Assim, nos termos do § 2º do art. 1.836 do Código Civil de 2002, caberia 50% (cinquenta por cento) do montante hereditário para cada uma das linhas, dividindo-se o total entre os parentes ascendentes que a integrarem[7].
Seguindo os termos desta primeira corrente, que seguiria a divisão por duas linhas, uma paterna e outra materna, havendo dois pais (biológico e socioafetivo) e uma mãe, a solução seria a seguinte: a mãe ficaria com 50% da herança e cada um dois pais receberia 25% da herança do filho. Como visto, haveria uma desigualdade entre os referidos ascendentes.
Luiz Paulo Vieira de Carvalho é um dos defensores de tal corrente, sustentando que ainda que não pareça a solução mais justa, no cenário atual é esta que deve ser adotada face a previsão legal do art. 1836 do Código Civil, que não poderia ser ignorada.
Sob o ponto de vista, de lege data, defende Carvalho, considerando a solução contida na norma cogente do art. 1.836 do CC, que a herança seja sempre dividida primeiramente em duas linhas, tendo em conta o gênero dos ascendentes: metade da herança seria destinada à linha materna e a outra metade à linha paterna. Em seguida, a divisão observaria o número de pais ou mães, ou seja, o patrimônio seria partilhado igualmente entre os integrantes de cada linha, ainda que houvesse mais de um ascendente do 1º grau em cada uma delas.
Mas sob outra perspectiva, Carvalho extrai a seguinte interpretação teleológica: se por ocasião da edição dos Códigos Civis de 1916 e 2002 não era crível a admissão da multiparentalidade, diante do “novo horizonte sucessório” impõe-se a igualdade pretendida da mens legislatoris quanto aos quinhões dos sucessíveis, a ser calculada e atribuída de acordo com o número de efetivos beneficiados.
O autor sugere um acréscimo legislativo ao § 2º do art. 1.836 nos seguintes termos:
Art. 1.836 (…)
Parágrafo único. Em caso de multiparentalidade, falecido o descendente sem deixar prole, o quinhão correspondente aos ascendentes, será dividido na mesma proporção do número de pais ou mães sobreviventes[8].
Desta forma, diante da sugestão da referida alteração legislativa, em caso de multiparentalidade, falecido o filho sem deixar prole, o quinhão hereditário correspondente aos ascendentes seria dividido na mesma proporção do número de pais e mães sobreviventes.
Para Lôbo, seguindo a primeira corrente, “se o autor da herança não deixar descendentes, seus ascendentes biológicos e socioafetivos herdarão concorrentemente, de acordo com suas linhas (maternas e paternas), por força do CC, art. 1.836”. E exemplifica: “se deixar dois pais (um socioafetivo e outro biológico) e uma mãe, esta herda a metade da herança, e os pais a outra metade”[9].
Já para uma segunda corrente, a divisão deveria se dar de outra forma, com uma repartição igualitária entre os três ascendentes, com cada um recebendo um terço da herança, igualmente. Para os defensores deste entendimento, deve-se prestigiar a função da norma prevista no parágrafo segundo do art. 1836 do Código Civil, que seria justamente igualar as participações sucessórias dos ascendentes. Logo, não faria sentido aplicar, nestes casos, a regra com um sentido diverso da sua função pretendida. Dentro os defensores desta corrente se encontram Ana Luiza Nevares, Anderson Schreiber e Débora Gozzo.
O Enunciado n. 642 da VIII Jornada de Direito Civil traduz esta corrente:
Art. 1.836 – Nas hipóteses de multiparentalidade, havendo o falecimento do descendente com o chamamento de seus ascendentes à sucessão legítima, se houver igualdade em grau e diversidade em linha entre os ascendentes convocados a herdar, a herança deverá ser dividida em tantas linhas quantos sejam os genitores.[10]
A justificativa se baseia na mens legis do § 2º do art. 1.836 do CC, cuja divisão se dá conforme os troncos familiares. Por conseguinte, para atingir o objetivo do legislador, nas hipóteses de multiparentalidade a herança deverá ser dividida em tantas linhas quantos sejam os genitores[11].
Este também é o posicionamento de Simão, que defende a divisão da herança entre a família paterna e a materna em partes iguais. Se são duas famílias paternas, têm-se duas linhas paternas e uma materna, constando a divisão da herança em terços. Como o Código Civil não poderia prever a multiparentalidade como realidade jurídica, lança uma leitura atual do parágrafo segundo do art. 1.836: “Havendo igualdade em grau e diversidade em linha quanto aos ascendentes, a herança se divide igualmente entre tantas quantas forem as linhas maternas e paternas” [12].
Matos e Fagundes[13] entendem que a segunda interpretação é a mais adequada, afirmando que o §2º do art. 1.836 do Código Civil pretende a divisão igualitária entre os ascendentes e por não ser possível prever, na ocasião da edição da norma, a possibilidade da multiparentalidade, a literalidade do texto não se adequa aos casos que reconhecem este vínculo parental múltiplo, devendo ser seguida a finalidade da norma – a igualdade na partilha.
Por esse entendimento, com o qual se concorda e defende, sendo reconhecidos efeitos sucessórios à multiparentalidade, a herança deve ser dividida por tantas linhas quantos forem os pais ou mães do falecido, independentemente do gênero dos ascendentes de 1º grau e do número de sucessores em cada linha. Em sendo assim, a lei não deve permitir distinção entre os pais, sejam eles biológicos, socioafetivos ou múltiplos[14]/[15].
Esta corrente, na posição aqui defendida[16], parece traduzir um entendimento mais adequado ao nosso atual quadro civil constitucional, tanto é que está a receber aprovação da maior parte da doutrina.
A partir dessa interpretação, a divisão da herança se dá igualitariamente entre os ascendentes, seja qual for a origem do vínculo parental, dividindo-se a herança em tantos quantos forem os ascendentes.[17]
Diante dos questionamentos e posicionamentos aqui lançados, fica evidente a necessidade de reforma ou, no mínimo, de uma releitura dos dispositivos do Código Civil que disciplinam a transmissão patrimonial em razão da sucessão causa mortis, a partir do novo suporte fático trazido pela multiparentalidade, sempre buscando uma aplicação uniforme e equânime da norma jurídica para atender com segurança jurídica todos os arranjos familiares hoje existentes.
Karina Barbosa Franco
Mestre em Direito pela UFAL. Professora Universitária. Membro do IBDFAM e IBDCIVIL. Advogada na área de famílias e sucessões. Membro e Secretária-geral da Comissão de Ensino Jurídico da OAB/AL. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (CONREP/UFPE).
Referências
BRASIL. Conselho da Justiça Federal. VIII Jornada de Direito Civil, 26 e 27/04/2018.
CALDERÓN, Ricardo; FRANCO, Karina Barbosa. Multiparentalidade e direitos sucessórios: efeitos, possibilidades e limites. In: Direitos das sucessões: problemas e tendências. Teixeira, Ana Carolina Brochado; Nevares, Ana Luiza Maia. (Coord.). Indaiatuba: Foco, 2022.
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de; COELHO, Luiz Cláudio Guimarães. Multiparentalidade e Herança: alguns apontamentos. In: Revista IBDFAM, v. 19 (jan./fev.). Belo Horizonte: IBDFAM, 2017.
GOZZO, Débora. Dupla parentalidade e direito sucessório: a orientação dos tribunais superiores brasileiros, Civilística.com, a. 6, n. 2, 2017, p. 18. Disponível em: <http://www.civilistica.com/wp-content/uploads/2017/12/Gozzo-civilistica.com-a.6.n.1.2017.pdf> Acesso em: 20 out. 2018.
GRAMSTRUP Erick Frederico; QUEIROZ, Odete Novais Carneiro. A socioafetividade e a multiparentalidade. Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões, Porto Alegre, v. 11, p. 104-127 mar./abr. 2016.
LÔBO, Paulo. Direito Civil. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 92, v. 6.
MATOS, Ana Carla Harmatiuk; FAGUNDES, João Paulo Lopes. Multiparentalidade e suas repercussões nas sucessões. Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões, n. 53, Set./Out. 2022.
SCHREIBER, Anderson. STF, Repercussão geral 622: a multiparentalidade e seus efeitos. Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br> Acesso em: 15 dez. 2016.
SIMÃO, José Fernando. Multiparentalidade e a sucessão legítima: divisão da herança em linhas (art. 1836 do CC). Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br>, publicado em 2/12/16. Acesso em: 17 dez. 2018.
Notas
[1] Segundo Gramstrup e Queiroz, “a sucessão dos ascendentes foi concebida sob a premissa de existir uma linha paterna e uma linha materna. É conhecida sob a designação ‘sucessão por linhas’, admitindo-se que há apenas duas delas”. GRAMSTRUP Erick Frederico; QUEIROZ, Odete Novais Carneiro. A socioafetividade e a multiparentalidade. Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões, v. 11, mar./abr. Porto Alegre: Magister, 2016.
[2] Art. 1.836, parágrafo segundo: “Havendo igualdade em grau e diversidade em linha, os ascendentes da linha paterna herdam a metade, cabendo a outra aos da linha materna”.
[3] SIMÃO, José Fernando. Multiparentalidade e a sucessão legítima: divisão da herança em linhas (art. 1836 do CC). Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br>, publicado em 2/12/16. Acesso em: 17 dez. 2018.
[4] GOZZO, Débora. Dupla parentalidade e direito sucessório: a orientação dos tribunais superiores brasileiros, Civilística.com, a. 6, n. 2, 2017, p. 18. Disponível em: <http://www.civilistica.com/wp-content/uploads/2017/12/Gozzo-civilistica.com-a.6.n.1.2017.pdf> Acesso em: 20 out. 2018.
[5] CALDERÓN, Ricardo; FRANCO, Karina Barbosa. Multiparentalidade e direitos sucessórios: efeitos, possibilidades e limites. In: Direitos das sucessões: problemas e tendências. Teixeira, Ana Carolina Brochado; Nevares, Ana Luiza Maia. (Coord.). Indaiatuba: Foco, 2022.
[6] Segundo Gramstrup e Queiroz, “a sucessão dos ascendentes foi concebida sob a premissa de existir uma linha paterna e uma linha materna. É conhecida sob a designação ‘sucessão por linhas’, admitindo-se que há apenas duas delas”. GRAMSTRUP Erick Frederico; QUEIROZ, Odete Novais Carneiro. A socioafetividade e a multiparentalidade. Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões, v. 11, mar./abr. Porto Alegre: Magister, 2016.
[7] José Simão ilustra que “se o falecido deixou dois avós maternos e um avô paterno, a herança não se divide em três partes (por cabeça), mas sim por linhas (in linea): 50% para o avô paterno (linha paterna) e 50% para a linha materna: 25% para o avô e 25% para a avó”. SIMÃO, José Fernando. Multiparentalidade e a sucessão legítima: divisão da herança em linhas (art. 1836 do CC). Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br>, publicado em 2/12/16. Acesso em: 17 dez. 2018.
[8] CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de; COELHO, Luiz Cláudio Guimarães. Multiparentalidade e herança: alguns apontamentos. Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões, v. 19 (jan./fev.). Belo Horizonte: IBDFAM, 2017.
[9] LÔBO, Paulo. Direito Civil. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 93, v, 6.
[10] BRASIL. Conselho da Justiça Federal. VIII Jornada de Direito Civil, 26 e 27/4/2018.
[11] BRASIL. Conselho da Justiça Federal. VIII Jornada de Direito Civil, 26 e 27/4/2018.
[12] SIMÃO, José Fernando. Multiparentalidade e a sucessão legítima: divisão da herança em linhas (art. 1836 do CC). Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br >, publicado em 2/12/16. Acesso em: 17 dez. 2018.
[13] MATOS, Ana Carla Harmatiuk; FAGUNDES, João Paulo Lopes. Multiparentalidade e suas repercussões nas sucessões. Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões, n. 53, Set./Out. 2022, p. 45.
[14] SCHREIBER, Anderson. STF, Repercussão Geral 622: a multiparentalidade e seus efeitos. <http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/stf-repercussao-geral-622-a-multiparentalidade-e-seus-efeitos/16982>. Acesso: 15 dez. 2016.
[15] No mesmo entendimento: SHIKICIMA, Nelson Sussumu. Sucessão dos ascendentes na multiparentalidade. Uma lacuna da lei para ser preenchida. Revista Científica Virtual da Escola Superior da Advocacia da OAB/SP, n. 18. São Paulo: OAB/SP, 2014, p. 75: “Observem que o § 2º do artigo 1.836 menciona que, se houver igualdade em graus e diversidade de linhas, ou seja, linha paterna e materna, dividiria pela metade a herança. Ocorre que, se houver pais multiparentais, como por exemplo, dois pais e uma mãe, significa que a linha materna ficaria com a metade e a linha paterna (que neste caso são dois) ficaria com a outra metade, dividindo esta metade entre os dois pais. Não seria injusto? Pressupondo que o legislador naquela época, quando da elaboração do Código Civil de 2002 havia somente em sua mente dois pais, e inclusive de modo tradicional, um pai e uma mãe, entendemos que deveria ser preenchida esta lacuna para partes iguais, em caso de disputa em primeiro grau”.
[16] Também defendida pela autora e CALDERÓN, Ricardo: Multiparentalidade e direitos sucessórios: efeitos, possibilidades e limites. In: Direitos das sucessões: problemas e tendências. Teixeira, Ana Carolina Brochado; Nevares, Ana Luiza Maia. (Coord.). Indaiatuba: Foco, 2022.
[17] MATOS, Ana Carla Harmatiuk; FAGUNDES, João Paulo Lopes. Multiparentalidade e suas repercussões nas sucessões. Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões, n. 53, Set./Out. 2022, p. 45.
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