Herança digital e a possível violação do direito à privacidade

21 de novembro de 2023

Considerações iniciais: a transmissibilidade dos bens digitais

A Era Digital trouxe a possibilidade de se armazenar em meio virtual diversos registros da vida humana, como fotos, músicas, documentários, dentre outros que tradicionalmente ocupavam locais privados, como gavetas, cofres e caixinhas cuidadosamente decoradas embaixo das camas. Indivíduos, paulatinamente, migraram de sua vida física para o ambiente virtual, onde a comunicação através das redes sociais passou a ser o principal meio de contato de muitos.

Nos últimos vinte anos houve um grande avanço tecnológico, a internet passou a ser usada por grande parte da população mundial. A pandemia Covid 19 intensificou este processo. Pessoas passaram a interagir, externar seus pensamentos, compartilhar seus momentos, adquirir bens corpóreos e incorpóreos, expor e dividir seus dados – de forma consciente ou em total ignorância –  com setores privados e outros usuários.

Apesar da tecnologia ser uma excelente ferramenta de auxílio para a população mundial, não se pode olvidar que o uso das redes traz diversos obstáculos para seus usuários, tornando-se muitas vezes problemas que necessitam do meio jurídico para resolvê-los.

Tradicionalmente, o ordenamento jurídico reconheceu dois tipos de bens, os bens móveis e os bens imóveis (nos primeiros incluídos os semoventes). O direito patrimonial, em sua origem, caracterizava-se pela supremacia do direito acerca de uma propriedade exclusiva e absoluta, sendo estes bens, corpóreos móveis  ou imóveis.[1]

A discussão sobre os bens digitais e a sua regulamentação vem crescendo de forma globalizada. Os digital assets ou digital property,[2] são expressões utilizadas para referir-se a arquivos eletrônicos, onde os usuários possuem interesse e — ou — direitos. Verifica-se que nos Estados Unidos, a Uniform Law Comission — ULC — apresentou uma proposta legislativa denominada Uniform Fiduciary Access to Digital Assets Act — UFADAA — “revisada em 2015 – Revised Uniform Fiduciary Access to Digital Act (RUFADAA) — que dispõe sobre o tratamento de bens digitais”.[3]

Desse modo, o denominado patrimônio digital é composto, principalmente, por arquivos em nuvem, que podem ser adquiridos ou armazenados através de serviços on-line, como bitcoins, milhas, domínios de Internet, canais no Youtube, contas nas Redes Sociais, games e etc. Parte do patrimônio digital é composto por bens digitais de valor econômico apreciável. No entanto, há bens, como fotos, vídeos, e-mails, playlists, entre outros, que apesar de não possuírem valor econômico, não deixam de ter valor extrapatrimonial para seus titulares.

Quanto a transmissibilidade dos bens digitais, , a problemática surge quando os bens, além de valor econômico passam a ter valor existencial. Isso se dá, diante da possibilidade de haver bens unicamente dotados de caráter afetivo, relacionados ao conteúdo de personalidade, e bens que possuem ao mesmo tempo, apreciação moral. Fotos, vídeos e mensagens de usuários com a família e amigos, são – tradicionalmente – bens de valor afetivo, e não de valor econômico, conectando-se estes com os direitos de personalidade.[4]

Assim, os bens de valor afetivo[5], por exemplo, não seriam transmissíveis porque violariam o direito de privacidade e intimidade do falecido, e ainda, o titular do acervo digital não poderia, em vida, optar por futura destinação de seu patrimônio para eventuais herdeiros, pois não trataria apenas do direito de personalidade do proprietário do bem digital, mas também de terceiros.[6]

Apesar disso, é importante destacar que a doutrina que defende a impossibilidade da passagem dos bens, não a apresenta como intransmissibilidade total do acervo digital, mas constrói uma intransmissibilidade parcial, pois acaba defendendo que pode haver transmissão de bens, desde que não violem os direitos de personalidade e privacidade do de cujus e terceiros.[7]

O direito à herança e o direito à privacidade: possível colisão entre direitos fundamentais

De outro modo, é importante mencionar acerca da transmissão dos bens digitais, que apesar da popularidade que encontrou o termo “herança digital” nos debates jurídicos pátrios, ainda há lacuna quanto à natureza, à avaliação, à modalidade de direito (se de titularidade ou de acesso) e também quanto à transmissão destes. No sistema sucessório, sabe-se que nem todos os bens, direitos e obrigações transferem-se com a morte do autor da herança. Há exclusão dos direitos personalíssimos, que têm como exemplo, o direito à privacidade. Estes direitos são intransmissíveis e não incluem a herança por força da lei, de sua natureza ou em razão de convenção.[8] 

Observa-se, assim, um possível conflito entre os direitos fundamentais, em que o direito à herança violaria o direito à privacidade do de cujus, caso os bens digitais de valor afetivo sejam transferidos imediatamente aos herdeiros.

É notório o conflito existente entre o direito à privacidade e o direito à herança, no que tange à impossibilidade de cisão nos meios digitais. Os referidos direitos entram em conflito quando herdeiros legítimos – ou testamentários – almejam tomar posse dos bens digitais do de cujus, e não é possível cindir os bens de valor econômico e os de caráter existencial simplesmente e ainda, os de caráter personalíssimos, como é o caso das plataformas monetizáveis. Há, no mínimo, quatro centros de complexidade a serem debatidos: a transmissibilidade dos bens patrimoniais, a dificuldade relacionada aos bens de caráter patrimonial de acesso, a regulação dos bens existenciais que impede sua transmissão (mas a inseparabilidade dos bens patrimoniais) e ainda a existência dos bens afetivos e dos personalíssimos (do falecido e de terceiros).

Estes centros de discussão encontram complexidade no momento em que há opções em vida pelo titular e mais ainda, no seu silêncio. Essa é uma das problemáticas levadas em conta pelo judiciário, onde herdeiros buscam o acesso aos bens digitais do de cujus, mas há a possibilidade de que – se este vivo fosse – não desejasse que post mortem suas interações virtuais pessoais pudessem ser acessadas por seus herdeiros.

Assim, na ausência de manifestação do falecido, ainda em vida, acerca da destinação de seu acervo digital que não é dotado de valor econômico, deverá o ordenamento jurídico interpretar que o falecido não possuía interesse que tais bens digitais fossem acessados pelos herdeiros, uma vez que pode haver informações pessoais, que podem acarretar dano irreparável para a sua memória, não podendo este se dar ao direito de resposta. Entretanto, é necessário analisar-se cada caso concreto, necessitando, ainda, da intervenção do judiciário, quando tratar-se de bens digitais de valor não econômico, ou afetivo, uma vez que como no caso de Berlim, pode haver outros bens direitos e interesses a serem sopesados, quanto ao acesso destes bens. Quanto aos bens digitais de valor econômico, estes podem seguir as diretrizes do Direito Sucessório, não havendo violação aos direitos de privacidade. Entretanto, maior complexidade surge, no momento em que não é possível a separação clara entre eles. Neste caso, uma apreciação tópica parece juridicamente correta.


Notas

[1]   GONÇALVES, Thatiane Rabelo. Novos bens: a realidade dos bens imateriais no direito privado. Revista de Direito Privado, vol. 100/2019, p. 19 – 37, Jul – Ago 2019.

[2]  Para exemplificar o tema, tem-se: “Digital assets are increasingly important in modern society. They are used for an expanding variety of purposes, including as means of payment for goods and services or to represent other things or rights, and in growing volumes. Cryptoassets, smart contracts, distributed ledger technology and associated technology have broadened the ways in which digital assets can be created, accessed, used and transferred. Such technological development is set only to continue.” Disponível em https://www.lawcom.gov.uk/project/digital-assets/ , acesso em 10.03.22, às 9h45min.

[3]  GONÇALVES, Thatiane Rabelo. Novos bens: a realidade dos ben imateriais no direito privado. Revista de Direito Privado, vol. 100/2019, p. 19 – 37, Jul – Ago 2019, p. 05.

[4]  OLIVEIRA, José Sebastião de. Fundamentos constitucionais do direito de família. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 21.

[5]  Sobre este tema, vide, por todos, BURILLE, C.; SOUZA, G. V. . A sucessão causa mortis dos bens digitais personalíssimos e os tribunais brasileiros: uma análise à luz do teste da proporcionalidade. In: Anizio Pires Gavião Filho; Lucas Moreschi Paulo. (Org.). Constitucionalismo, direitos fundamentais, proporcionalidade e argumentação. 1ed.São Paulo: Dialética, 2022, v. 1, p. 1-292.

[6]  BROCHADO, Ana Crolina Teixeira; LEAL, Lívia Teixeira. Herança Digital: Controvérsias e Alternativas. Indaiatuba: Foco, 2021.

[7]  LACERDA, Bruno Torquato Zampier. Bens digitais. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2021.

[8]  CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das Sucessões. 4. ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2019.


Bárbara Sauzem da Silva

Mestranda em Direito com ênfase em Civil e Empresarial pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pós-graduanda em Direito de Família e Sucessões pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

Simone Tassinari Cardoso Fleischmann

Professora da graduação, mestrado e doutorado UFRGS, mediadora, advogada e parecerista. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Direito das Famílias, Sucessões e Mediação (UFRGS) (CNPq). Membro do IBDFam RS, membro da Comissão de Direito Sucessório IBDFam.


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