

A cena descrita era comum a todos do magistério: um professor, ao voltar os olhos à turma, percebe os rostos iluminados de estudantes pelo uso do celular; não para fins de pesquisa ou consulta acadêmica, senão pela passagem rápida de fotos e vídeos curtos, ou, para ser mais preciso, pela rolagem incessante do feed de publicações de redes sociais – um universo paralelo e portátil, carregado na palma da mão.
Os efeitos da precoce inserção da infância e da juventude no mundo digital é um fenômeno complexo que afeta diretamente a sociedade contemporânea, especialmente quanto à saúde, segurança, bem-estar e desenvolvimento das pessoas em situação de vulnerabilidade.
Jonathan Haidt em “A Geração Ansiosa – Como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais”[1], obra publicada em 2024 com resultados de extensa pesquisa que apontou para o aumento exponencial de diagnósticos de transtornos de ansiedade, depressão e seus desdobramento a partir de 2014, com a difusão das redes sociais em smartphones e de seu grande apelo ao público infanto-juvenil, já apresentava, como medida elementar, a restrição do uso de aparelhos com acesso à internet no ambiente escolar, além das faixas etárias mais adequadas para lidar com as complexidades e riscos do mundo digital. A realidade retratada pela pesquisa protagonizada no cenário estadunidense, não foi diferente daquela encontrada no Brasil: levantamento realizado pelo Ministério da Saúde revelou que no período de 2014 a 2024 o atendimento a crianças de 10 a 14 com transtornos de ansiedade subiu quase 2.400%, alcançando-se 3.300% para a faixa etária de 15 a 19 anos[2].
O desafio de combater os malefícios da vivência digital para a infância e juventude é hercúleo e demanda diversas frentes de ação, inclusive aquela da educação da vida digital, a envolver famílias, escolas e sociedade em uma mudança de hábitos. Em 11 de março de 2025, o Governo Federal publicou “Crianças, adolescentes e telas: Guia sobre o Uso de Dispositivos Digitais”[3], no ensejo de ampliar o acesso à informação para famílias e educadores. Sucede movimentos da Sociedade Civil de conscientização e alerta sobre a necessidade de acompanhamento, controle parental e de limitações ao uso de telas, robustecidos por pesquisas e contributos de diversas áreas de saber: da psicologia à medicina, corroborados pelos dados alarmantes de atendimentos clínicos como os descritos anteriormente, sem esquecer a imprescindível regulamentação que tem por razão de ser oferecer caminhos mais definidos para efetivação do Estado de Direito Constitucional brasileiro também no mundo virtual.
Como de praxe, é à lei a quem pertence o espaço legítimo de debate e definição de limites ao exercício das liberdades, em equilíbrio com bens jurídicos de igual ou maior relevância. Não à toa, a Lei federal n.º 15.100, de 13 de janeiro de 2025, que “dispõe sobre a utilização, por estudantes, de aparelhos eletrônicos portáteis pessoais nos estabelecimentos públicos e privados de ensino da educação básica” assume o devido papel de uma resposta estatal às demandas já registradas por diversos segmentos da sociedade brasileira à necessidade de limitações para o acesso livre de estudantes a dispositivos eletrônicos durante e/ou no ambiente voltado à escolarização e socialização.
A Lei n.º 15.100/25 se insere no importante debate sobre a intervenção do Estado na vida privada, também transportada para as relações digitais. O ordenamento jurídico garante aos indivíduos – e, por extensão, às famílias – o exercício da autonomia da vontade, da liberdade para conduzir suas vidas e tomar suas próprias decisões sem interferências externas indevidas, autonomia que alcança o exercício do poder parental e da autorregulação familiar para acessibilidade digital, posse e uso de eletrônicos portáteis.
No contexto escolar e seu microuniverso de vida social, a autonomia pode ser ilustrada na forma pela qual os estudantes utilizam seu tempo livre. Nada obstante, a reflexão que se faz é: a escola, como espaço de convivência coletiva e de formação cidadã, constituir-se-ia em ambiente onde a autonomia da vontade privada exerce-se sem restrições? Discentes da mais tenra idade já sabem e demonstram que não: regras orientam a vida e a experiência escolar.
Embora a autonomia privada seja um princípio fundamental no ordenamento jurídico brasileiro e no Estado de Direito, alicerçado na proteção das liberdades, não se pode ignorar os impactos negativos que o uso excessivo de celulares pode ter sobre as crianças e adolescentes. Há diversas pesquisas que demonstram a correlação entre o tempo excessivo de exposição às telas e problemas como déficit de atenção, hiperatividade, ansiedade, depressão, distúrbios do sono, obesidade etc[4]. No ambiente escolar, os malefícios comprometem o desenvolvimento cognitivo e aproveitamento acadêmico dos estudantes, além de dificuldades de interação e prejuízos para socialização, atingindo ainda a esfera da saúde e bem-estar dos jovens e infantes.
As escolas, enquanto fundamental espaço de desenvolvimento do indivíduo, seja pela fase de formação da personalidade, seja pelo laboratório para vida em sociedade, têm o dever de promover um ambiente propício à aprendizagem e ao crescimento integral dos estudantes, transcendendo a esfera cognitiva para construção de bases para o convívio. A restrição ao uso dos celulares durante o período escolar pode – e deve – ser vista como uma medida legítima para melhores condições de aprendizagem e interação, em consonância com os objetivos de proteção à criança, em sua mais absoluta prioridade. A Constituição Federal (CF/88), em seu artigo 227, e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei n.º 8.069/90), em diversos dispositivos, consagram a doutrina da proteção integral da criança e ao adolescente, determinando que é dever não somente das famílias, como do Estado e da sociedade, a garantia à proteção dos direitos do público infanto-juvenil, em todas as esferas.
O uso irrestrito de eletrônicos portáteis com acesso à rede mundial de computadores, mais comumente no formato de telefones celulares, com a exposição precoce a conteúdos inapropriados e/ou a hiperexposição ao fluxo contínuo de conteúdos projetados para manter seus usuários conectados, molda uma nova geração que já apresenta sintomas explícitos de seus danos e agravam problemáticas da juventude contemporânea, a exemplo do onipresente cyberbulling, da violência de gênero, e, até mesmo, na definição de novas doenças como a nomofobia[5], conceituada como medo ou ansiedade que se manifesta ao abster-se do uso dos celulares, classificada pelo CID 10 F40 e no transtorno de dependência em jogos (CID 11).[6]
Os riscos e prejuízos, portanto, são inegáveis e, por vezes, a autoridade parental, isoladamente, não é suficiente para gerir e coibir todas as práticas que expõem seus filhos, sobretudo no ambiente virtual em que a ausência de barreiras físicas multiplica a vulnerabilidade de seus usuários. A propósito: transferir aos pais e/ou representantes legais ou familiares o dever e responsabilidade integral pelo acesso e conteúdo digital visualizado, criado ou compartilhado por seus filhos não é resposta eficaz para enfrentar a problemática central e colossal da vida digital para crianças e jovens – o fato de que a sua condição de vulnerabilidade é preterida por outros interesses.
A escola, por sua vez, compartilha com as famílias o convívio constante, o dever geral de cuidado e de proteção. Da mesma forma, escolas se encontram sobrecarregadas com diversas demandas e decerto têm encontrado dificuldades para gerir a questão da utilização dos aparelhos tecnológicos até porque vivem a ambiguidade de que é no seu ambiente físico em que os laços entre os partícipes de sua comunidade se formam, mas é no espaço virtual, mormente a parte dos demais atores como professores e coordenadores, em que as várias problemáticas e conflitos originados pelo uso das tecnologias se operam, deixando as instituições com pontos cegos, apesar da sua corresponsabilidade em promover todas as medidas necessárias para a vida escolar segura, sadia e voltada ao desenvolvimento da pessoa, como também, à efetivação da formação cidadã (art. 205 da CR/88).
O Estado, naturalmente, não poderia se furtar de seus deveres constitucionais. A Lei n.º 15.100/2025 tem o potencial de inaugurar um novo capítulo na proteção à infância e juventude. No prisma da doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente, princípio consagrado pela Constituição de 1988 e fortalecido na esfera infraconstitucional pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, a nova Lei pode ser analisada da seguinte forma: ao determinar que é dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o gozo de seus direitos, a Constituição impõe a adoção de medidas concretas para a respectiva efetivação; o ECA, por sua vez – responsável pela regulamentação da proteção integral – estabelece um sistema de garantias e responsabilidades à sua implementação.
A Lei n.º 15.100/2025 pode ser interpretada como uma expressão do dever de proteção, na medida em que busca resguardar as crianças e os adolescentes dos malefícios do uso excessivo de celulares no ambiente escolar diante de riscos concretos que justificam a intervenção do Estado para a sua mitigação. Nesse horizonte, a autonomia privada não pode se configurar como óbice: família, indivíduos e sociedade também estão compelidos à efetividade dos direitos fundamentais e comandos da Constituição – tal qual à proteção de crianças e adolescentes – o que exige os deveres de ação e de abstenção.
Ao regulamentar o uso de celulares nas escolas, o Estado não está invadindo a esfera privada das famílias de forma arbitrária, mas exercendo o dever de garantir o melhor interesse da criança e do adolescente, que, por sua vez, em razão da idade e, também por isso, da condição de pessoas em desenvolvimento, não possuem discernimento completo para definir como portar-se para que o seu melhor interesse pode ser efetivado, razão pela qual o dever é atribuído ao Estado, às famílias e à sociedade fazê-lo.
O marco normativo deve atuar em complementaridade à tutela das famílias, das escolas e da sociedade possibilitando um ambiente mais seguro e propício ao desenvolvimento integral dos estudantes. Nesse sentido, importa salientar, que ao contrário do que tem propagado o senso comum, a Lei n.º 15.100/2025 não proíbe o uso de celulares pelas crianças e adolescentes, mas o regulamenta para restringir seu uso durante atividades letivas ou convivência escolar, resguardando-se o uso para fins pedagógicos ou ainda para instrumentar a acessibilidade a pessoas com deficiência ou necessidades especiais. Por razões já citadas – e, nos dias de hoje, um tanto óbvias – não se permite mais o uso durante o decorrer das aulas ou nos recreios, para fins de entretenimento, sob pena de pôr em xeque a própria formação – cognitiva e social – dos estudantes.
A limitação estabelecida pela norma, aliada às exceções previstas, demonstra que a mens legis é a de garantir uma solução razoável e proporcional para o complexo desafio da tecnologia na vida das crianças e adolescentes, objetivo que encontra equilíbrio entre a doutrina da proteção integral e o princípio da autonomia privada. A lei não se configura como uma intervenção abusiva ou desproporcional, mas sim como uma medida legítima e necessária para a efetivação dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes, devendo ser implementada e respeitada. É um pequeno, porém importantíssimo passo na construção de uma vivência digital salubre, segura e compatível com a condição de pessoa em desenvolvimento – e que não tardem a chegar os tão necessários próximos.
Notas
[1] HAIDT, Jonathan. A Geração Ansiosa – Como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais. (trad. Lígia Azevedo). São Paulo: Companhia das Letras.
[2] VIANA, H. ALVES, A.C., LIMA, J. NETTO, V., MANAHANI, C. Ansiedade: de 2014 a 2024, atendimento a crianças de 10 a 14 anos subiu quase 2.500% no SUS. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/01/30/ansiedade-de-2014-a-2024-atendimento-a-criancas-de-10-a-14-anos-subiu-quase-2500percent-no-sus.ghtml, acesso em 20 de março de 2025.
[3] Disponível em: https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/uso-de-telas-por-criancas-e-adolescentes/guia, acesso em 15 de março de 2025.
[4] SOUZA, Karlla; CUNHA, Mônica. Impactos das redes sociais digitais na saúde mental de adolescentes e jovens. In: Anais do Workshop sobre as Implicações da Computação na Sociedade (WICS). SBC, 2020. p. 49-60. Disponível em: https://sol.sbc.org.br/index.php/wics/article/view/11036. Acesso em: 23 mar. 2025.
[5] BIACHESSI, Cleber. Nomofobia e a dependência tecnológica do estudante. Curitiba: Bagai, 2020. Disponível em: https://educapes.capes.gov.br/bitstream/capes/584679/2/Editora%20BAGAI%20-%20Nomofobia%20e%20a%20depend%C3%AAncia%20tecnol%C3%B3gica%20do%20estudante.pdf, acesso em 20 de março de 2025.
[6] Sociedade Brasileira de Pediatria.Disponível em: https://www.sbp.com.br/imprensa/detalhe/nid/cid-11-define-uso-abusivo-de-jogos-eletronicos-como-doenca/, acesso em 25 de março de 2025.
REFERÊNCIAS
BIACHESSI, Cleber. Nomofobia e a dependência tecnológica do estudante. Curitiba: Bagai, 2020. Disponível em: https://educapes.capes.gov.br/bitstream/capes/584679/2/Editora%20BAGAI%20-%20Nomofobia%20e%20a%20depend%C3%AAncia%20tecnol%C3%B3gica%20do%20estudante.pdf. Acesso em: 20 mar. 2025.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [1988]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 28 mar. 2025.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 jul. 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 28 mar. 2025.
BRASIL. Lei nº 15.100, de 13 de janeiro de 2025. Dispõe sobre a utilização, por estudantes, de aparelhos eletrônicos portáteis pessoais nos estabelecimentos públicos e privados de ensino da educação básica. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 14 jan. 2025. Seção 1, p. 3.
SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA (SBP). CID-11 define uso abusivo de jogos eletrônicos como doença. [S.l.], [s.d.]. Disponível em: https://www.sbp.com.br/imprensa/detalhe/nid/cid-11-define-uso-abusivo-de-jogos-eletronicos-como-doenca/. Acesso em: 25 mar. 2025.
SOUZA, Karlla; CUNHA, Mônica. Impactos das redes sociais digitais na saúde mental de adolescentes e jovens. In: WORKSHOP SOBRE AS IMPLICAÇÕES DA COMPUTAÇÃO NA SOCIEDADE (WICS), Anais […]. [S. l.]: SBC, 2020. p. 49-60. Disponível em: https://sol.sbc.org.br/index.php/wics/article/view/11036. Acesso em: 23 mar. 2025.

Juliana de Oliveira Jota Dantas
Docente nos cursos de graduação e mestrado em Direito da FDA/UFAL. Coordenadora do curso de mestrado do PPGD/UFAL.

Sarah França Mendonça Placido
Mestra em Direito Público pela Universidade Federal de Alagoas (FDA/UFAL) e Advogada com atuação em Tribunais Superiores.
Ana Carolina Beltrão Peixoto disse:
Um artigo acessível e que permite aos leitores, uma oportunidade de esclarecer nossas dúvidas e embalar nossa prática! parabéns!