O art. 174 da Constituição Federal atribui ao Estado a função de planejamento, a qual possui diversas ramificações sobre o desempenho da atividade administrativa. Sob o ângulo de contratações públicas, o planejamento foi erigido a princípio pela Lei Federal n.º 14.133/2021 – a Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos (“LGL”). A relevância da função se sobressai na fase interna do processo licitatório, a qual abrange a modelagem dos estudos de viabilidade técnica, econômico-financeira, ambiental e jurídica.
Estes pontos já eram tratados também na Lei n.º 8.987/1995 (“Lei de Concessões”) e na Lei n.º 11.079/2004 (“Lei de PPPs”). Aquela prevê que “o poder concedente publicará, previamente ao edital de licitação, ato justificando a conveniência da outorga de concessão ou permissão, caracterizando seu objeto, área e prazo” (art. 5º). Esta, que “a contratação de parceria público-privada será precedida de licitação na modalidade concorrência ou diálogo competitivo, estando a abertura do processo licitatório condicionada à autorização da autoridade competente, fundamentada em estudo técnico que demonstre a conveniência e a oportunidade da contratação, mediante identificação das razões que justifiquem a opção pela forma de parceria público-privada” (art. 10, I, “a”).
A legislação deixa claro que, em qualquer empreendimento, há o dever de realização de estudos aprofundados, a motivar sua realização e a indicar os aspectos técnicos para sua execução. Tais estudos consubstanciam, em boa medida, os documentos editalícios: edital, contrato, caderno de encargos e outros anexos.
No setor de concessões, o planejamento dialoga diretamente com o delineamento das cláusulas essenciais de contratos de concessão, tais como objeto, área, prazo, investimentos, metas, parâmetros de desempenho e indicadores de nível de serviço (art. 23 da Lei de Concessões). Isto é: a modelagem do projeto de concessão norteará a apresentação de propostas pelos licitantes.
Tal delineamento pautará o nível de informação a ser considerado por potenciais interessados em dado projeto concessório e balizará as análises que possivelmente serão condensadas em propostas econômicas. Esse nivelamento de informação serve para atender a isonomia, garantindo a competitividade do certame (conforme o art. 5º da LGL) para atingir o objetivo da obtenção da proposta mais vantajosa pela administração pública (art. 11, I, da LGL).
Neste contexto, a importância de existência planejamento adequado é evidente. Eventuais falhas podem condenar determinado projeto de concessão ao fracasso, por induzir licitante a ofertar proposta econômica que não se revele viável quando da execução contratual.
Deve haver verdadeira boa-fé pré-contratual da Administração Pública, de maneira que as informações prestadas possam ser confiáveis para fins de formulação de propostas e, naturalmente, para que o empreendimento seja viável por si só, sem a necessidade de ajustes futuros (ainda que eles possam e, eventualmente, devam ocorrer, naturalmente, especialmente por questões decorrentes de incompletude contratual, execução de obrigações em horizontes de longo prazo e naturais questões técnicas, de avanços tecnológicos e econômicas, para citar poucos exemplos).
O adequado planejamento deve andar de mãos dadas com eventuais mecanismos passíveis de utilização para realização de ajustes e modificações em concessões. Mas o argumento, aqui, é o de que não pode se fiar apenas neles. Antes: há dever de realização de estudos aprofundados, em todos os segmentos que amparam o empreendimento concessório. Posteriores ajustes devem ser tratados como exceção, e não como forma de suprir eventuais falhas no planejamento pretérito.
Trago, aqui, dois exemplos em que essa problemática pode ser colocada.
Primeiro, o Tribunal de Contas dos Municípios de Goiás (“TCM-GO”) veiculou recentemente o Acórdão 01044/2025 (Tribunal Pleno, Processo 08601/2024, Relator Conselheiro Fabrício Macedo Motta, sessão de 19 de fevereiro de 2025), que trata de supostas irregularidades no Edital de Concorrência Pública 001/2024-SEFIN, cujo objeto é a “Parceria Público-Privada (PPP), na modalidade concessão administrativa, para os serviços de eficientização, operação e manutenção da iluminação pública, implantação, operação e manutenção da infraestrutura de telecomunicações e usina fotovoltaica do município de Goiânia”.
Uma das análises se deu em razão da sobreposição de objetos decorrentes dos editais Concorrência 001/2024-SEFIN e o Pregão Eletrônico 043/2023, ambos visando a modernização e eficientização de 100% do parque de Iluminação Pública de Goiânia (fl. 03). A problemática, aqui, decorre do fato de que o planejamento da licitação considerou a realização de CAPEX para troca de luminárias em toda a cidade, enquanto já há, na prática, contratos por meios dos quais esta troca é realizada. Ou seja: houve evidente falha no planejamento da concessão, reconhecida pelo próprio TCM-GO.
Isso porque, nas palavras do próprio Conselheiro Relator: “as denúncias apensadas aos autos, constantes dos processos n.º 08677/24 e 08735/24, apontaram outros contratos que, de fato, buscam a contratação de mesmo objeto (modernização, eficientização e expansão do parque de IP do município), e na mesma época, são eles os Contratos n.º 31/2024 a n.º 37/2024, vigentes e oriundos do Pregão Eletrônico n.º 043/2023. […] Esse contexto exige a realização de um estudo técnico prévio de viabilidade técnica, jurídico, econômico, financeiro e ambiental, a fim de indicar qual modelo de contratação deveria ser implementado por ser mais vantajoso, na medida que são mutuamente excludentes. Inclusive, a Lei n.º 14.133/21, no seu art. 18, inciso I, bem como a Lei das PPPs no seu art. 10, inciso I, tratam, às suas maneiras, da obrigatoriedade de estudo técnico preliminar que fundamente a contratação” (fls. 17-18).
Os vícios indicados deveriam fazer com que o planejamento fosse revisitado, para que os estudos técnicos correspondessem à realidade. Não foi o que ocorreu, infelizmente. A saída dada pelo TCM-GO foi a de reequilíbrio econômico-financeiro já no início da execução contratual, com as seguintes determinações às autoridades envolvidas (fl. 03):
Item 4.1. “Promovam a identificação das luminárias, braços e outros equipamentos de fornecimento no âmbito dos contratos decorrentes do Pregão Eletrônico n°. 043/2023, quando da realização do cadastro inicial do Parque de IP, de encargo da futura concessionária, visando resguardar o direito a garantia quinquenal”;
Item 4.2. “Realizem o reequilíbrio econômico-financeiro em razão da necessária supressão de parcelas de investimentos da modernização e eficientização do parque de IP, realizados no âmbito dos contratos do Pregão Eletrônico n°. 043/2023, medida alinhada ao objetivo do Decreto Municipal n° 30/2025”.
Segundo, houve recente veiculação de cláusula de “revisão do CAPEX”, que figura em minutas dos projetos de concessão rodoviária lançados recentemente pelo Estado do Mato Grosso (Concorrência Pública Internacional 59/2024; Concorrência Pública Internacional 54/2024; Concorrência Pública Internacional 58/2024 – “Novos Lotes”).
A Revisão do CAPEX corresponde à oportunidade que o Poder Concedente franqueará à futura concessionária para propor ajustes às bases de CAPEX concebidas no âmbito do planejamento da concessão e refletida no instrumento convocatório (cl. 13.6.1).
A revisão deve ser provocada pela concessionária no prazo de até 4 meses da assinatura do contrato e deverá ser instruída pelas justificativas técnicas e financeiras que embasam as alterações propostas (cls. 13.6.1 e 13.6.1.1). Submetido o pleito, o verificador independente possuirá prazo de até 60 dias para se pronunciar a seu respeito (Cl. 13.6.2). Em seguida, deverá ser proferida decisão (frise-se, definitiva e irrecorrível…) do Poder Concedente em até 30 (trinta) dias (cl. 13.6.3).
Caso a Revisão do CAPEX seja aprovada pelo Poder Concedente, será celebrado Termo Aditivo para veicular as modificações e recompor o equilíbrio econômico-financeiro (cls. 13.6.4 e 13.6.5), de modo que os ajustes às bases de CAPEX passarão a integrar o Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental, constante do Anexo 15 dos editais dos Novos Lotes (cl. 13.6.6).
Teoricamente, a revisão do CAPEX servirá para corrigir eventuais e pontuais falhas de premissas técnicas e econômico-financeiras assumidas na modelagem que repercutam na viabilidade da prestação do serviço com base na proposta econômica apresentada (cl. 13.6.1.2, (i) e (ii)). Na prática, contudo, meu argumento é o de que ela não pode ser vista como janela para que o planejamento da concessão não seja o mais robusto possível.
Novamente: ajustes e revisões são possíveis. Mas não podem se tornar a regra para que concessões sejam eventualmente viáveis. Há exercício de função pública no planejamento, decorrente do texto constitucional. Há exercício de boa-fé na modelagem contratual e a revisão de CAPEX deve caminhar exatamente aí.
Por exemplo: eventuais discrepâncias identificadas entre documentos econômicos e técnicos das licitações devem ser solucionadas antes da apresentação das propostas econômicas, ainda que isso implique em adiamento da licitação do projeto. Isso faz parte do dever de se planejar – e, naturalmente, de se planejar corretamente. A revisão de CAPEX não pode ser vista como o oposto: forma de deixar que problemas já identificados sejam simplesmente deixados para eventual solução futura.
Quanto à eficácia do mecanismo, chamo, mais uma vez, a atenção para o prazo de 4 meses a partir da assinatura do contrato, que parece ser exíguo. E a palavra final (definitiva e irrecorrível) sobre o cabimento da revisão é do Poder Concedente, o que agrava o risco de este ter uma visão diferente dos licitantes, conforme supracitado.
Boas medidas de gestão pública imprimem que correções necessárias para nivelar informações (isonomia) ocorram antes da apresentação das propostas, de modo a assegurar a adequada competitividade na licitação e garantir a apresentação de propostas cuja exequibilidade não dependam, necessariamente, de revisões logo no início de concessões. Ajustes podem ser necessários. O adequado planejamento é basilar.
Mário Saadi
Sócio de Direito Público do Dias Carneiro Advogados. Pós-doutorando (UNESP), Doutor (USP), Mestre (PUC-SP) e Bacharel (FGV-SP) em Direito.
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