A intervenção do Estado no Domínio Econômico tem seus ciclos. A depender do resultado do sufrágio, altera-se a intepretação do art. 173 da CRFB (o qual prevê a intervenção direta, concorrencial, por intermédio de empresas estatais). A par dos (relevantes) embates doutrinários a propósito dos lindes do princípio da liberdade de iniciativa (art. 1°, IV e 170, caput, da CRFB), que tornaria excepcional a intervenção estatal direta, para dar cabo de hipóteses de “imperativo segurança nacional”, ou de “relevante interesse público”, fato é que o “pêndulo” da Ordem Constitucional Econômica badala, nos quadrantes da escolha das urnas – se mais à direita ou mais à esquerda.
Em tempos não tão distantes, empresas estatais já fizeram parte de modelagens de Concessões de Aeroportos e de Concessão de Exploração de E&P, nas áreas de pré-sal. O resultado de se formatar concessões, com uma arquitetura intrusiva de empresais estatais, importou em parcerias que produziram ineficiências, seja pelos prejuízos que lhe foram repassados, em razão da existência de contratos celebrados entre os concessionários privados e suas partes relacionadas, seja pela impossibilidade financeira de a empresa estatal aportar os necessários investimentos para exploração dos ativos. Estas modalidades de “parcerias público-privadas”, em sentido amplo, envolvendo empresas estatais, malfadaram.
Nada obstante, tenho para mim que, nos últimos anos, foram endereçadas novidadeiras parcerias entre empresas estatais e empresas privadas, que tem o potencial de trazer soluções criativas para a resolução de imbróglios, nos setores de infraestrutura.
A primeira delas teve por desiderato forjar soluções para uma típica hipótese econômica de tragédia de comuns (The Tragedy of the Commons). Embora existisse o interesse de diversos agentes privados (v.g. concessionárias de ferrovias) e públicos (v.g. Santos Port Authority – SPA) em gerir, de forma eficiente, a Ferrovia Interna do Porto de Santos (Fips), fato é que a maximização dos seus interesses particularísticos, de forma individualizada, geraria ineficiências para todas das partes.
Seguiu daí a celebração de uma engenhosa parceria, a denominada Cessão Onerosa – inspirada na The Belt Railway Company of Chicago (BRC) –, que restou celebrada entre entre a empresa estatal que administra o Porto Organizado e as concessionárias privadas de ferrovias, por intermédio da criação de uma associação privada. A gestão condominial da infraestrutura ferroviária comum do porto foi lastreada: (i) no disposto no art. 56-A, da Lei n° Lei Federal 14.273/2021 (Novo Marco Regulatório das Ferrovias), segundo o qual “As infraestruturas ferroviárias no interior do perímetro dos portos e instalações portuárias não se constituem em ferrovias autônomas e são administradas pela respectiva autoridade portuária ou autorizatário, dispensada a realização de outorga específica para sua exploração”; (ii) na necessidade de gestão integrada e de autorregulação operacional da infraestrutura comum, com fundamento na contratação, por oportunidade de negócio, precedida por chamamento público (na forma do 28, § 3º, III, da Lei 13.303/2016), na qual foi oportunizada a participação de todos os operadores ferroviários; (iii) no rateio dos investimentos entre os Associados Investidores, os quais serão proporcionais ao volume médio de movimentação de cargas, nos dois anos anteriores à data de celebração do Contrato e à projeção para os próximos cinco anos, enquanto para os demais associados o rateio será proporcional aos volumes efetivamente movimentados.
Outra modelagem inovadora digna de nota, que se valeu de uma parceria com uma empresa estatal, foi a que buscou endereçar os problemas econômico-financeiros de umas das “concessões em crise”. Explica-se, como se sabe, nos idos dos anos de 2014, foram licitados, pelo Governo Federal, ativos que vieram a se tornar inexequíveis, como, por exemplo, as modelagens previstas nos contratos de concessão de rodovia celebrados na 3ª Fase do Programa de Rodovias Federais – PROCROFE e nas 2ª e 3ª Fases das Concessões de Infraestrutura Aeroportuária. Tal inexequibilidade restou reconhecida, inclusive, pela instituição de um regime normativo para disciplinar a relicitação de tais ativos, por intermédio da edição da Lei nº 13.448/2017. Exemplo saliente desse cenário se materializou, pelo Decreto, sem número, de 15 de agosto de 2017, por intermédio do qual se declarou a caducidade da concessão de titularidade da Concessionária de Rodovias Galvão BR-153 SPE S.A. – BR – 153/GO/TO.
O trepasse da gestão da BR-163/MT (Concessionária Rota do Oeste) se deu nesse contexto. A modelagem engendrada considerou que o Estado do Mato Grosso, por intermédio da MT PAR – Participações e Projetos S/A (uma sociedade de economia mista estadual), apresentou uma proposta, que tinha por objetivo tornar viável a continuidade da concessão, sem aumento de tarifa e com início imediato dos investimentos previstos, comprometendo-se, ainda, a aportar 1 bilhão de reais no projeto, como condição para a própria eficácia do TAC cogitado. Após diversas rodadas de negociações entre as partes, restou celebrado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e a Concessionária Rota do Oeste, cujo objeto foi a transferência do controle acionário da concessionária para a MT Participações e Projetos (MT Par).
Tal parceria importou na transferência do controle de uma concessionária privada para uma empresa estatal, com fundamento nos art.s 27 da Lei n°8.987/1995, no art. 30 da Lei n°10.233/2001 e no art. 56 da Resolução ANTT n°5.927/2021.
Os exemplos citados dão conta de uma nova função das empresas estatais. Se, antes, só se cogitava de autorizar a constituição de empresas estatais para fugir das amarradas do regime jurídico-administrativo (a denominada “fuga para o direito privado”), ou, para explorar atividades consideradas (muito) estratégicas, com auspícios monopolistas, atualmente, as entidades da administração pública, com personalidade jurídica de direito privado, passam a ter a sua função social direcionada a novos quadrantes. Ao se despirem de vetustas prerrogativas publicísticas – no âmbito de um regime de simetria com a empresas do setor privado –, as estatais passam a ter uma renovada importância nos setores de infraestrutura. Esperamos – alvíssaras – que seja uma nova tendência.
Rafael Véras
Professor Responsável do LLM de Infraestrutura e Regulação da FGV Direito Rio.
Doutorando e Mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.
Relembre os artigos mais lidos
Os cinco artigos mais lidos em 2022 na Coluna Direito da Infraestrutura estão reunidos em uma coletânea disponível para download em formato de e-book.
Nele você poderá conferir os principais temas jurídicos sobre infraestrutura, como concessões, concorrências, os impactos do novo marco legal nas contratações. A curadoria desta seção fica a cargo do autor da casa Rafael Véras.