Em geral, associamos os conceitos de morte ao fim de um ciclo ou de uma jornada. O luto costuma ser associado a uma etapa de transição, na qual os que ficam precisam seguir com suas jornadas pessoais e familiares, muitas vezes assumindo novos papéis ou reestruturando arranjos familiares. Costuma ser um período de transição. A morte tradicionalmente representa o fim de uma existência biológica, que se expressa pelo término de uma atividade cerebral significativa, consoante critérios médico-científicos. Ocorre que, para o mundo digital, a presença de alguém, seu impacto nas relações virtuais, não precisa estar relacionada à existência física.
A utilização de ferramentas tecnológicas em geral, dentre as quais aplicações de inteligência artificial, permite que sigamos presentes digitalmente, mesmo depois de nossa morte natural, vale dizer, biológica. Tal afirmação – há até bem pouco tempo restrita para aqueles que dispunham de condições financeiras privilegiadas ou de acesso a tecnologia de ponta – é aplicável a qualquer pessoa que se interesse pelo tema, dada a multiplicidade de possibilidades de conservação de imagens, textos, vídeos, que podem ser disponibilizadas em serviços específicos ou em redes sociais, das mais variadas plataformas.
O que parecia ser ficção científica na época da elaboração do Código Civil tornou-se, no intervalo de duas décadas, realidade palpável para a qual será preciso ressignificar algumas categorias jurídicas a fim de buscar respostas a novos desafios.
Salvo se, em vida, a pessoa representada pela utilização de IA tenha autorizado tal tipo de iniciativa, o ponto de partida para o emprego da imagem do falecido (imagem aqui entendida em sentido amplo, envolvendo qualquer traço característico que permita sua identificação social, como sua voz, seu jeito de andar etc.) costuma ser a autorização dos herdeiros.
Ocorre que nossa legislação em vigor disciplina a sucessão dos bens patrimoniais do falecido, uma vez que bens de caráter existencial, como direitos de personalidade, são intransmissíveis. Não se pode aplicar, ao caso em análise, a mesma lógica negocial da transmissão de bens materiais que orienta o livro das sucessões em nossa codificação vigente.
Tal constatação exige a análise do caso concreto para se verificar se não existe o conflito de interesses entre a exploração da imagem-atributo de alguém para fins econômicos e toda sua biografia, ou seja, sua história de vida, valores, visão de mundo e posicionamento político, entre tantos outros aspectos que integram a construção de nossa personalidade.
É preciso ressignificar o que se costuma retratar como proteção à memória do falecido, sendo importante distinguir o rol de herdeiros necessários daquele dos legitimados a exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade do morto. Para tanto, pode-se citar o parágrafo único do art. 12 do CC/02, segundo o qual assegura-se legitimidade concorrente para requerer qualquer medida protetiva de tais direitos (ou pleitear reparação por perdas e danos) ao cônjuge ou companheiro sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.
Se a tecnologia nos proporciona muitas oportunidades, precisamos estar preparados para lidar com seus inerentes desafios. Na falta de uma regulamentação específica, podemos fazer uma interpretação prospectiva, procurando ressignificar os dispositivos previstos na legislação vigente que tutelam os direitos de personalidade, a partir de uma leitura do disposto no art. 20 do CC/02, com a interpretação conferida pelo STF no julgamento da ADIN 4.815, que tratou da possibilidade de publicação de biografias não autorizadas.
Desse modo, se a análise do caso concreto demonstrar que, por exemplo, a exposição ou utilização da imagem de uma pessoa falecida lhe atingiu a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, há que exigir o necessário balanceamento de direitos, conjugando-se o direito às liberdades com a inviolabilidade conferida aos direitos personalíssimos.
NOTAS
Texto extraído do Editorial do recém-lançado número 33 da Revista Fórum de Direito Civil, Belo Horizonte, ano 12, n. 33, p. 7-9, maio/ago. 2023.
Marcos Ehrhardt Júnior
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor de Direito Civil da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e do Centro Universitário Cesmac. Editor da Revista Fórum de Direito Civil (RFDC). Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil). Presidente da Comissão de Enunciados do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Advogado. E-mail: contato@marcosehrhardt.com.br.
Aprofunde-se sobre o tema
Direito Civil – futuros possíveis
“O que podemos esperar do futuro?” é a pergunta central da obra Direito Civil – Futuros possíveis, coordenada por Marcos Ehrhardt Júnior. A interrogação é um convite para imaginarmos, de forma consistente, como será o decorrer das relações jurídicas. Além de indagar se dispomos de instrumentos no ordenamento jurídico para lidar com as novas questões da contemporaneidade.
Inteligência artificial e responsabilidade humana
O livro do autor Thomas Bellini Freitas é uma contribuição valiosa para o estudo das relações entre o Direito e a IA. Descreve o processo evolutivo da IA, ressaltando a inédita autonomia dos sistemas algorítmicos. Enfrenta pontos de impactante repercussão para o Direito contemporâneo: o uso da IA como instrumento para a consecução de ilícitos e a eventual responsabilidade por culpa do programador ou do supervisor. No âmbito do uso instrumental da IA, analisa o emprego dos sistemas algorítmicos autônomos de guerra e a disseminação de notícias falsas. Em relação à possível responsabilidade do programador ou supervisor, reexamina as noções de dever de cuidado e de pessoa razoável, com base na vertente anglo-saxônica, em paralelo com a ideia de homem médio oriunda do direito romano-germânico, tendo em conta as especificidades da IA.