As controvérsias acerca do regime de bens aplicável aos relacionamentos de pessoas maiores de 70 anos após a decisão do STF no julgamento do ARE 1.309.642

6 de fevereiro de 2024

O ano judiciário de 2024 iniciou com uma decisão importante para o direito das famílias, com grandes repercussões no campo sucessório. No dia 1º de fevereiro, o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu que o regime obrigatório de separação de bens nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoas com mais de 70 anos pode ser alterado pela vontade das partes[1].

A decisão foi proferida no âmbito do recurso extraordinário com agravo, com repercussão geral (ARE 1.309.642 – Tema 1.236), em que se discutiu: (a) a constitucionalidade da regra prevista no art. 1.641, inciso II, do Código Civil, de acordo com a qual, nos casamentos com pessoa maior de 70 anos, é obrigatório o regime da separação de bens e (b) se essa norma também deve ser aplicada às uniões estáveis, seguindo o entendimento anterior do Tribunal no sentido de que os conviventes em união estável têm direito à aplicação das mesmas regras para divisão de herança que as pessoas casadas, o que ficou estabelecido por ocasião do julgamento do RE 878.694, em 10.05.2017, também sob a relatoria do Min. Luís Roberto Barroso[2].

No caso concreto, estava em discussão a divisão da herança de um homem que faleceu deixando filhos e uma companheira, com quem começou a viver após os 70 anos. Segundo informações colhidas do portal de notícias do STF, o juiz declarou inconstitucional a lei que obrigava a separação de bens entre o falecido e a companheira e, por isso, decidiu que a herança deveria ser dividida entre ela e os filhos dele. Ao julgar recurso contra essa decisão, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo excluiu a companheira da divisão da herança, aplicando ao caso a norma que obriga a separação de bens para maiores de 70 anos (redação dada pela Lei nº 12.344, de 2010)[3].

Os debates doutrinários sobre o regime de bens a ser aplicável ao casamento dos maiores de 70 anos vêm ocorrendo durante todo o período de vigência do Código Civil. Cita-se, como exemplo, a justificativa da proposta contida no Enunciado nº. 125 das III Jornadas de Direito Civil, ocorrida em 2003, segundo o qual “a norma que torna obrigatório o regime da separação absoluta de bens em razão da idade dos nubentes não leva em consideração a alteração da expectativa de vida com qualidade, que se tem alterado drasticamente nos últimos anos. Também mantém um preconceito quanto às pessoas idosas que, somente pelo fato de ultrapassarem determinado patamar etário, passam a gozar da presunção absoluta de incapacidade para alguns atos, como contrair matrimônio pelo regime de bens que melhor consultar seus interesses”.

Em sentido oposto, os defensores da preservação do art. 1.641, inciso II, sustentavam que o fato de o sistema jurídico permitir aos maiores de 70 anos realizar doações a seus cônjuges (art. 544, CC/02) ou celebrar testamento com atribuição livre em sua cota disponível (art. 1.846, CC/02) preserva sua autonomia, sendo o verdadeiro objetivo da imposição do regime de separação obrigatória de bens a proteção do “patrimônio da família”, evitando “a sua dispersão em benefício de terceiros e em detrimento dos integrantes do núcleo familiar”[4].

Por unanimidade, o Plenário do Supremo Tribunal Federal entendeu que manter a obrigatoriedade da separação de bens, prevista no Código Civil, desrespeita o direito de autodeterminação das pessoas idosas, violando o princípio da dignidade humana, porque impede que pessoas conscientes de suas escolhas decidam o destino que querem dar aos seus bens, criando discriminação em razão da idade sem fundamento razoável, o que fere o disposto no art. 3º, inciso IV, da Constituição Federal. A tese fixada foi a seguinte:

Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no art. 1.641, II, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes, mediante escritura pública.

É preciso anotar que o Acórdão da citada decisão ainda não foi publicado e que foi discutida a modulação dos seus efeitos, que serão aplicáveis para o futuro, não alterando casos já julgados, embora seja possível aos casais que contraíram casamento ou convivem em união estável alterar o regime de bens de seu relacionamento.

O que muda após a decisão?

Inicialmente é preciso destacar que a decisão do STF apreciando o tema 1.236 dirige-se exclusivamente ao inciso II do art. 1.641 do CC/02, razão pela qual as hipóteses de incidência dos demais casos de aplicação do regime da separação (obrigatória) de bens permanecem sem alteração, ou seja, ele segue sendo aplicável ao casamento das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento (inciso I) e a todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial (inciso III).

A regra do art. 1.641, II, do CC/2002, que estabelecia o regime da separação de bens para os septuagenários, embora expressamente prevista apenas para a hipótese de casamento, aplicava-se também às uniões estáveis, entendendo o Superior Tribunal de Justiça que no regime da separação legal, comunicam-se os bens adquiridos na constância do casamento ou da união estável, desde que comprovado o esforço comum para sua aquisição[5].

Tem-se então que, a partir da decisão em análise, o regime legal de bens vigente em nosso país, tanto para o casamento quanto para a união estável, é o regime da comunhão parcial de bens, para os menores de 70 anos, aplicando-se o regime da separação obrigatória de bens a partir da referida idade.

Tal norma, de natureza não cogente e supletiva, pode ser afastada por vontade das partes, assegurando-se a livre escolha de regime por escritura pública de pacto antenupcial ou, caso o casamento já esteja em curso, por meio do procedimento de alteração de regime de bens, nos exatos termos do previsto no §2º do art. 1.639 do CC/02 c/c art. 734 do CPC/15. A[A1]  mesma faculdade de escolha de um regime diverso do modelo legal supletivo, por ser feita pelos conviventes em união estável, mediante escritura pública[6].

Seguem coexistindo em nosso sistema jurídico dois regimes distintos de separação de bens, que podem ter sua origem na vontade das partes (separação convencional do art. 1.687 do CC/02) ou em determinação da lei, de natureza cogente (impositiva) para as hipóteses dos incisos I e III do art. 1.641 do CC/02 e de natureza supletiva para o inciso II do referido artigo.

Entender as peculiaridades de cada regime e, em especial, o impacto da escolha deste no campo sucessório segue fundamental, em especial quando se verifica que o viúvo (cônjuge supérstite) não concorre com descendentes no regime da separação legal de bens, ao contrário do caso do regime da separação convencional (art. 1.829, CC)[7].

Após a decisão em análise, a atenção se dirige para a comissão de juristas encarregada da atualização do Código Civil, que internamente vinha debatendo a extinção do regime da separação obrigatória, com sólidos argumentos para a medida, lastreado em importantes contribuições doutrinárias[8].

Ponto essencial a destacar é que a busca por um ambiente de maior segurança jurídica no que se refere ao planejamento patrimonial e sucessório em nosso país depende de uma análise sistemática de todos os dispositivos, como adequadamente vem ocorrendo no âmbito da citada comissão, pois decisões pontuais dos tribunais, ainda que proferidas sobre os efeitos de repercussão geral, acabam impactando noutros aspectos que não foram considerados no âmbito do julgamento, que precisa observar os estritos limites da legislação processual em vigor.

Os debates sobre vários aspectos relacionados à partilha de bens e efeitos sucessórios aplicáveis às hipóteses de separação legal de bens devem ser retomados a partir da decisão do Tema 1.236, enquanto, paralelamente, seguem os trabalhos de atualização da codificação vigente. É preciso acompanhar com atenção os próximos capítulos da evolução do direito das famílias e sucessões em nosso país.


Notas

[1] Cf. https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=526043&ori=1. Acesso em 04.02.2024.

[2] Após o referido julgamento, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula nº. 655, com o seguinte enunciado: ”aplica-se à união estável contraída por septuagenário o regime da separação obrigatória de bens, comunicando-se os adquiridos na constância, quando comprovado o esforço comum” (SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 09/11/2022, DJe 16/11/2022).

[3] Informações extraídas do portal de notícias do STF e disponíveis no endereço: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ARE1309642Separaoobrigatoria70anos1212.pdf . Acesso em 04.02.2024.

[4] MAIA JUNIOR, Mairan Gonçalves. Do Regime da Comunhão Parcial de Bens no Casamento e na União Estável. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 279. 

[5] Cf. REsp n. 2.017.064/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 11/4/2023, DJe de 14/4/2023.

[6] Sobre o tema, vale citar entendimento de Carlos Elias de Oliveira, em artigo recente, publicado no Migalhas: “o afastamento do regime da separação legal pelo septuagenário ocorre mediante a escolha de qualquer outro regime de bens, típico ou atípico. Até mesmo o regime da separação convencional pode ser pactuado, por ele ser diferente do regime da separação legal. É livre a estipulação do regime de bens (art. 1.639, CC). A única diferença entre o septuagenário e os demais é que o regime legal de bens é o da separação legal (art. 1.641, II, CC). Para as demais pessoas, o regime legal é o da comunhão parcial de bens (art. 1.640, CC)”. Cf. https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/401318/regime-da-separacao-legal-de-bens-e-o-stf-are-1-309-642 . Acesso em 04.02.2024.

[7] Existem outras diferenças entre os regimes de separação de bens que merecem destaque , por exemplo a exigência de outorga conjugal, prevista no do art. 1.647 do CC/02 para o regime da separação legal e, como já destacado acima, a incidência da Súmula 655 do STJ, que entende pela comunicabilidade dos bens aquestos no regime da separação legal (se houver prova do esforço comum e não existir pacto antenupcial em sentido contrário), conforme bem anotado pelo professor Carlos Elias no artigo já referido, disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/401318/regime-da-separacao-legal-de-bens-e-o-stf-are-1-309-642. Acesso em 04.02.2024.

[8] Sobre este assunto, ver recente artigo publicado por um dos relatores da comissão, Flávio Tartuce, disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/familia-e-sucessoes/401100/a-reforma-do-cc–fim-do-regime-da-separacao-obrigatoria-de-bens. Acesso em 04.02.2024


Marcos Ehrhardt Júnior

Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor de Direito Civil da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e do Centro Universitário Cesmac. Editor da Revista Fórum de Direito Civil (RFDC). Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil). Diretor Nordeste e Presidente da Comissão de Enunciados do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Advogado. E-mail: contato@marcosehrhardt.com.br.

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