Breves notas sobre negócios biojurídicos: a questão das diretivas antecipadas de vontade¹

25 de abril de 2023

Todos concordam com um traço cultural bastante comum em nossa população: não gostamos de tratar de temas relacionados à terminalidade da vida. Basta a mera sugestão de pensar num testamento para que alguns busquem alterar o rumo da conversa.

Entretanto, a pandemia da covid-19 mudou drasticamente a percepção das famílias, quando deparadas com a realidade de internação por conta da doença. Infelizmente, muitos brasileiros padeceram sem ter oportunidade de planejar sua sucessão ou até mesmo se despedir dos seus entes queridos.

Tantos infortúnios acabaram por aumentar o interesse sobre diretivas antecipadas de vontade (DAVs) que, apesar de ainda não contarem com uma legislação específica em nosso país, vêm se desenvolvendo muito na última década, num diálogo interdisciplinar entre a ciência médica e jurídica.

Uma diretiva antecipada de vontade para tratamento de saúde não deve ser estudada apenas no cenário da terminalidade da vida em face de uma doença terminal, vale dizer, incurável. É preciso ampliar o foco de estudo para qualquer tipo de situação que poderá ocorrer no futuro, durante a circunstância de não termos condições de exprimir nossa vontade, quer seja em face de um estado de coma ou por degeneração das funções cognitivas decorrentes de enfermidades, por exemplo. Juntem-se a isso situações em que pessoas com algum tipo de enfermidade mental passam por momentos de descontrole dos efeitos de sua condição de saúde e, momentaneamente, não conseguem discernir sobre alternativas de condutas terapêuticas disponíveis.

Tem-se ainda a delicada questão sobre decisões médicas motivadas por intercorrências não previstas que necessitam ser adotadas durante um complexo procedimento cirúrgico que nem sempre ocorre em condições de urgência.

O que une tantas situações fáticas distintas é a compreensão da possibilidade de o exercício da autonomia existencial ocorrer preventivamente, por não se ter certeza de que, no momento da decisão sobre qual tratamento deve (ou não) ser adotado, o paciente terá a possibilidade de fazê-lo, não importando aqui as razões do impedimento, pois não se deve analisar a sua capacidade de agir na contemporaneidade do tratamento, mas sim no momento de sua manifestação de vontade, caso exista firmada uma diretiva antecipada.

Um exemplo ajudará a ilustrar a afirmação acima. Imagine-se uma pessoa que aos 39 anos de idade recebe um diagnóstico de doença crônica (incurável), que progredirá na direção de uma morte motivada por degeneração das funções cognitivas. Haveria no sistema jurídico pátrio algum impedimento para que os desejos e opções terapêuticas deste paciente pudessem ser respeitados, quando, no futuro, ele não tiver mais condições de exprimir suas vontades?

O que deve prevalecer se, nos derradeiros momentos de sua vida, seus herdeiros tiverem outra opinião sobre o tratamento a ser dispensado, quando apenas a obstinação terapêutica está disponível? Ou seja, busca-se meramente adiar o inevitável, pois não existe cura para a situação de saúde e as opções de tratamento podem ser tão penosas quanto aspectos da própria enfermidade.

Se o entendimento sobre a necessidade de respeito às disposições de última vontade do autor da herança, quando formalizadas por testamento válido, é ponto pacífico na doutrina e jurisprudência, não se pode afirmar o mesmo em relação ao dissenso entre os desejos do paciente e de seus familiares na fase da terminalidade da vida.

Há quem busque aplicar a tais situações idêntico raciocínio dispensado aos negócios jurídicos patrimoniais, o que nos leva a seguinte indagação: se o paciente não consegue exprimir sua vontade, deve ser submetido a curatela, deixando-se decisões de saúde como prerrogativa do curador?

Diante da existência de uma DAVs, estabelecida após os devidos esclarecimento das opções terapêuticas e dos seus riscos, vale dizer, verificado que o documento é fruto de uma manifestação livre, consciente e esclarecida de vontade do paciente, não parece haver espaço em nosso ordenamento para seguir confundido o tratamento dispensado a negócios patrimoniais, com questões existenciais.

Os limites da curatela em nosso sistema foram muito bem traçados com o advento da Lei Brasileira de Inclusão (Estatuto da Pessoa com Deficiência), limitando-a a aspectos patrimoniais da vida daquele que necessita de curatela, o que não envolve, como regra geral, decisões sobre sua saúde.

É preciso seguir pesquisando sobre esses complexos assuntos e suas intricadas relações com a bioética e tecnologia, pois os avanços nos tratamentos disponíveis criam novas oportunidades e perspectivas para diversas enfermidades.


Marcos Ehrhardt Júnior²
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor de Direito Civil da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e do Centro Universitário Cesmac.
Notas
[1] Texto extraído do Editorial da Revista Fórum de Direito Civil – RFDC.  Belo Horizonte, ano 11, n. 31, p. 7-10, set./dez. 2022.
[2] Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor de Direito Civil da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e do Centro Universitário Cesmac. Editor da Revista Fórum de Direito Civil (RFDC). Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil). Presidente da Comissão de Enunciados do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Advogado. E-mail: contato@marcosehrhardt.com.br.

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