O jurista não é um clarividente. Cada vez mais, a figura do jurisconsulto – detentor de conhecimento transversal – passa a dar lugar aos resultados de pesquisas lastreadas na realidade. Isto não importa dizer que o jurista moderno tenha se transformado em um programador ou estruturador de gráficos e de tabelas. Os exageros disruptivos costumam padecer de um açodamento que se afasta da credibilidade. Tudo que está na moda ou viraliza rapidamente me causa desconfiança. Uma dose de “equilíbrio” entre a dogmática jurídica, a partir de dados da realidade, me parece um lugar mais seguro.
Nos últimos anos, tenho tentado alterar o rumo da minha produção acadêmica para uma análise concreta dos setores de infraestrutura. É dizer, para uma análise que não se divorcie do arsenal jurídico, mas que não desconsidere o sistema de incentivos caudatários da economia. Alvitro ficar em um meio de caminho, já que minha formação foi forjada, inteiramente, no Direito.
Utilizo a economia, com moderação, pois não sou economista. Nesse quadrante, nos idos de 2023, publiquei o Livro “Equilíbrios Econômico-Financeiros das Concessões”[1], por esta Editora FÓRUM, versão comercial da minha Tese de Doutorado, defendida, na FGV Direito, sob a orientação do professor Sérgio Guerra. A obra contou com algum acolhimento entre os principais stakeholders, nos setores de infraestrutura. E foi objeto de algumas críticas – as quais, quando dotadas da necessária fidalguia acadêmica, são de todo desejadas.
Em tal oportunidade, defendi o entendimento segundo o qual o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão deve ser reinterpretado como “um modelo de regulação endógeno experimental, que retrata um sistema de incentivos desenhado, no âmbito de uma relação agente-principal (lastreado na racionalidade limitada, na assimetria de informações, na prática de comportamentos oportunistas e considerando a incompletude contratual), por intermédio do qual se busca, a partir da consumação de eventos qualificados como ‘riscos’ ou ‘incertezas’, estabelecer, durante a execução contratual e por procedimentos negociados, distintos crivos de reequilíbrio”.
A minha tese é no sentido de que, em razão da incompletude dos contratos de concessão, é de se endereçar, de um lado, um regime jurídico para os eventos qualificados como “riscos” (demanda, desapropriação, eventos ambientais) e, de outro, um regime jurídico para eventos qualificados como “incertezas”.
Pressupondo a racionalidade limitada dos contratantes, os ativos específicos, os salientes custos de transação, sobre os quais se entrelaça uma concessão, o que se propõe é que o contrato veicule modelos regulatórios de colmatação das “incertezas”, na forma do que dispõe o art. 10 da Lei n.° 8.987/1995. Assim é que, alteradas as condições dos contratos (por exemplo, pela materialização de evento não previsto na matriz de riscos), os múltiplos equilíbrios econômico-financeiros serão forjados, a partir de um regime de renegociação experimental, a ser instaurado, em situações qualificadas como “incertezas”.
Mas isso não é reequilíbrio! Uma coisa é reequilíbrio; outra é renegociação! Foram algumas das principais críticas à tese. De fato, o entendimento, por mim defendido, baralha um pouco os conceitos clássicos. Afinal, uma coisa é renegociar os termos contratuais; outra, muito diversa, tem a ver com o reequilíbrio. Será? Ou será que todo reequilíbrio envolve, em alguma medida, uma modalidade de renegociação das variáveis econômicas do módulo concessório?
Claro que se pode renegociar um contrato, sem reequilibrá-lo (o que é raro), mas será que, em situações não precificadas nas matrizes de risco, o reequilíbrio não se torna um procedimento renegociado e experimental? Como endereçar os efeitos econômico-financeiros experimentados, pelas denominadas “Concessões em Crise”, em razão de eventos qualificados como “incertezas” – não previstos, portanto, na matriz de risco dos contratos de concessão?
A realidade foi nessa direção. E o equilíbrio econômico-financeiro das concessões parece figurar com outra roupagem.
Assim, por exemplo, cite-se que, em sessões realizadas nos dias 05/07/2023 e 02/08/2023, o Tribunal de Contas da União (TCU) deliberou o Processo TC n.º 008.887/2023-8, no âmbito do qual foi apresentada consulta, formulada pelo Ministro de Portos e Aeroportos, Márcio Luiz França Gomes, e pelo Ministro dos Transportes, José Renan Vasconcelos Calheiros Filho, acerca da interpretação dos arts. 14, §2º, inciso III e 15, inciso I, da Lei n.º 13.448/2017, os quais prescrevem que a adesão ao processo relicitatório é condicionada à apresentação, pelo contratado, “de declaração formal quanto à intenção de aderir, de maneira irrevogável e irretratável, ao processo de relicitação do contrato de parceria” e, ainda, que o termo aditivo relicitatório deve conter cláusula de aderência irrevogável e irretratável à relicitação do empreendimento.
Fixadas tais premissas, o TCU respondeu aos questionamentos que lhe foram formulados, de modo a atestar a possibilidade de desfazimento do processo de relicitação, por iniciativa do Poder Concedente, desde que de comum acordo entre as partes. Nada obstante, tal desfazimento deverá observar as condicionantes estipuladas pela Corte de Contas, no âmbito do Acórdão n.º 1593/2023, por intermédio da renegociação das variáveis econômicas do modulo concessório.
Nesse contexto, foi editada a Portaria n.º 848, de 25 de agosto de 2023, que estabelece a política pública e os procedimentos relativos à readaptação e otimização dos contratos de concessão, no que se refere à exploração da infraestrutura de transporte rodoviário federal. Tal normativo teve como motivos: (i) as características excepcionais de Contratos de Concessão e a complexidade das decisões que permeiam a implementação da política pública; (ii) a necessidade de se aprimorar a qualidade do processo decisório, garantir a conformidade com os princípios éticos e as normas legais, aumentar a confiança e a legitimidade da gestão perante os atores interessados; (iii) a importância da administração pública primar por ações e por boas práticas de governança, gestão de riscos, integridade e transparência; e (iv) o disposto no Acórdão n.º 1593/2023, do Tribunal de Contas da União, acima referenciado.
Mais recentemente, ganhou destaque o expediente exógeno de renegociação de contratos de concessão, capitaneado pela Secex Consenso, do Tribunal de Contas da União. Tal modalidade de consenso exógeno representou um importante avanço no tema da “renegociação de contratos de concessão” e na aplicação da Teoria dos Múltiplos Equilíbrios Experimentais, notadamente pelos precedentes forjados no setor de rodovias.
Por intermédio dos Acórdãos n.os 1996/2024, 2318/2024 e 2434/2024, o TCU se manifestou a propósito de solicitação de solução consensual, formulada pela Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT, para a resolução das controvérsias relativas à readaptação e otimização de Contratos de Concessão do setor de rodovias.
Guardadas as devidas peculiaridades de cada acordão, em tais julgados restaram considerados os seguintes entendimentos. Primeiro o de que as soluções negociadas “a fim de buscar a diretriz de modicidade tarifária, contém a formação de novo equilíbrio econômico-financeiro para o projeto, com atualização dos custos dos investimentos obrigatórios, nova curva de tráfego e nova matriz de riscos”. Ademais disso, deixou-se registrado que “foi, de fato, estabelecido novo equilíbrio contratual a ser firmado, com relevantes alterações na taxa interna de retorno, nas estimativas de demanda, redução significativa de investimentos acompanhada de elevação dos custos acima dos índices de preços, dilação de prazo e aumento da tarifa de pedágio”. E, por fim, concluiu-se que “o relatório da CSC destacou que o procedimento competitivo proposto não consta de nenhuma norma, tendo sido contemplado apenas na minuta do 4º Regulamento de Concessões Rodoviárias (RCR 4). Dessa forma, considerando que o regramento supramencionado ainda não foi publicado, o procedimento competitivo ocorrerá no âmbito do que se convencionou chamar de sandbox regulatório”.
Se a teoria estava certa, ou estava totalmente errada, é o que menos importa. O importante é que o tema segue em um espiral de evolução. E que, nos próximos anos, ainda iremos descobrir muitas coisas sobre os equilíbrios econômico-financeiros das concessões. E é bom que assim seja. Bem-vindos de volta à Coluna Direito da Infraestrutura.
Rafael Véras
Coordenador da Coluna Direito da Infraestrutura da Editora FÓRUM.
Professor responsável do LLM de Infraestrutura e Regulação da FGV Direito Rio.
Doutorando e Mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.
NOTAS:
[1] https://loja.editoraforum.com.br/equilibrios-economico-financeiros-das-concessoes
Conheça alguns livros do autor Rafael Véras publicados pela FÓRUM:

DIREITO E ECONOMIA DA INFRAESTRUTURA
Rafael Véras de Freitas, Frederico A. Turolla, José Egidio Altoé Junior
A obra se propõe a oferecer ao leitor, a partir dos alicerces do Direito e da Economia, uma construção teórica a propósito dos novos quadrantes da regulação dos setores de infraestrutura. Cuida-se de investida acadêmica que se justifica tendo em conta um cenário de “concessões em crise” e de eclosão de novas e disruptivas tecnologias.

EQUILÍBRIOS ECONÔMICO-FINANCEIROS DAS CONCESSÕES
Rafael Véras de Freitas
A obra revela uma abordagem disruptiva para a edificação de um regime jurídico matizadamente brasileiro das concessões de infraestrutura. Ao longo das mais de 400 páginas, o autor se debruçou em fazer uma análise comparativo-transversal, apreciando as ascendências internacionais que inspiram o regime brasileiro de concessões, desvendando, assim, notáveis hibridismos até então pouco explorados.

CONCESSÃO DE RODOVIAS
Rafael Véras de Freitas
A obra traz, de forma sistematizada, as grandes questões envolvendo o universo das concessões, em especial, as concessões rodoviárias no Brasil.

EXPROPRIAÇÕES REGULATÓRIAS
Rafael Véras de Freitas
A obra configura passo decisivo para o estudo dos regulamentos econômicos brasileiros. Ela apresenta novidades e ultrapassa o debate a propósito dos temas tradicionais e põe foco em outras preocupações, instalando problemática inovadora.