A Constituição Federal consagrou explicitamente a defesa do consumidor como um princípio da ordem econômica (art. 170, V, CF/88[1]) e direito fundamental (art. 5º, XXXII, CF/88[2]), tendo previsto, ainda, que “é assegurado a todos o acesso à informação” (art. 5º, XIV, CF/88[3]). O direito à informação, consagrado como direito básico no art. 6º do Código de Defesa do Consumidor[4], por sua vez, se alicerça nos deveres de cooperação e boa-fé objetiva, possibilitando ao consumidor uma opção esclarecida e autodeterminada na aquisição de produtos ou serviços, tendo em vista a massificação do mercado contemporâneo. Paulo Lôbo, inclusive, sustenta que o direito à informação do consumidor é um direito fundamental[5].
A insuficiência da informação acerca do produto ou serviço a ser comercializado é um defeito que gera a responsabilização do fornecedor na hipótese de eclosão de danos conectados a essa falha. O princípio da transparência, por sua vez, disposto no art. 4º do Código de Defesa do Consumidor[6], aduz a necessidade de que a relação contratual e os direitos e deveres envolvidos na aquisição do produto ou serviço estejam devidamente esclarecidos para as partes.
Claudia Lima Marques ressalta que a informação na relação consumerista é um dever qualificado, com base no pressuposto de que é necessário esclarecer e explicar até mesmo dados que seriam banais entre dois empresários, uma vez que o consumidor é considerado uma parte leiga na relação[7]. Nesse contexto, destaca-se a ideia de vulnerabilidade informacional, compreendida como o fornecimento insuficiente de dados sobre determinado produto ou serviço capaz de influenciar no processo decisório de compra[8], especialmente relevante no mercado eletrônico e que pode representar um desequilíbrio entre as partes, pois os fornecedores são os efetivos detentores da informação[9].
A informação conecta-se diretamente com a questão da prevenção. Tal ideia usualmente demanda que haja uma prévia consciência acerca do potencial de riscos de determinado objeto. É por isso que a Resolução 30/248 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 1985, determina em seu art. 3º a obrigatoriedade do acesso dos consumidores à informação.
A informação, se insuficiente ou inadequada, pode constituir tanto um defeito extrínseco do produto ou serviço (arts. 12 a 14) ‒ quando a falha da informação acarreta um dano à saúde ou segurança do consumidor ‒ como um vício (arts. 18 a 20), quando a falha informativa estiver relacionada à funcionalidade do produto ou serviço[10]. Isso porque o consumidor tem o direito de ser informado acerca da periculosidade ou da nocividade do produto ou serviço a ser adquirido.
As transformações no mercado de consumo digital desafiam a aplicabilidade dos institutos às novas relações sociais, seja para a colmatação de lacunas ou para a análise da suficiência de normas legais vigentes para a realidade subjacente. A concepção de novos serviços e produtos tecnológicos de forma massificada também desafia a compreensão por parte do consumidor.
Cumpre-se o dever de informação quando a informação é transmitida com adequação, suficiência e veracidade. Considera-se adequada a informação quando os meios de comunicação são compatíveis com o produto ou serviço e com o consumidor destinatário, devendo o conteúdo veiculado ser claro e preciso[11].
Ademais, considera-se suficiente a informação quando o conteúdo do produto ou serviço é transmitido de forma completa e integral, sem omissões de dados ou referências não vantajosas do produto ou serviço[12]. Por fim, considera-se veraz a informação quando corresponde às reais características do produto ou serviços, além dos dados referentes à composição, conteúdo, preço, prazos, garantias e riscos[13].
No que tange ao comércio eletrônico, Claudia Lima Marques argumenta que “deve o fornecedor informar sobre o meio usado, sobre o produto ou serviço que oferece, sobre as suas condições gerais contratuais e condições específicas da oferta e deve se identificar de forma clara e eficaz[14]”.
Na hipótese da inteligência artificial, a informação é adequada, suficiente e veraz quando, para além dos requisitos mencionados, veicula, de forma clara, sintética e compreensível, as limitações do estado da técnica acerca do funcionamento da máquina, bem como as potencialidades para as quais o sistema foi originalmente desenvolvido.
Também é relevante consignar a necessidade de que o usuário seja advertido sobre estar interagindo com uma inteligência artificial. Isso porque para algumas pessoas nem sempre é fácil identificar se está interagindo com um ser humano ou com uma IA. Recentemente, inclusive, um engenheiro do Google disse ao público que uma inteligência artificial lá desenvolvida teria adquirido consciência[15]. Isso porque, entre outras características, a máquina teria revelado medo de ser desligada, além de expor reflexões filosóficas. A companhia, em contrapartida, negou as afirmações e concluiu que não havia qualquer evidência de que a máquina possuísse consciência.
De fato, uma interação que simula uma consciência não pode ser considerada como efetivamente consciente. No entanto, é importante observar que essas comunicações automatizadas estão cada vez mais sofisticadas, com capacidade de mimetizar uma interação humana, o que pode levar muitas pessoas a se confundirem e acharem que estão falando com uma pessoa. E por isso torna-se imprescindível que o usuário seja previamente advertido de que está interagindo com uma máquina inteligente e não com um ser humano, com fins de equilibrar as expectativas no que tange à relação entre pessoas e máquinas.
Ademais, para Paulo Lôbo, é insuficiente a informação que “reduz, de modo proposital, as consequências danosas pelo uso do produto, em virtude do estágio ainda incerto do conhecimento científico ou tecnológico[16]”. Considera-se que a falta de informação suficiente acerca do estágio do conhecimento científico e tecnológico sobre a matéria infringe o dever de informar, pois sonega dados necessários à escolha do consumidor[17].
Nesse contexto, a avaliação de impacto de inteligência artificial pode ser um instrumento útil para a mensuração dos riscos envolvidos na introdução de uma IA no meio social e cooperar com o implemento do dever de informação. Acaso algum perigo ou risco seja verificado posteriormente, o desenvolvedor ou operador também deve informar o consumidor, por meio de comunicações eficazes, para que o produto passe a ser utilizado com determinado cuidado, ou para que o produto seja conduzido às oficinas do produtor para certas modificações técnicas, ou ainda para que o produto não mais seja utilizado[18].
Também é possível que haja o dever de indenizar quando o desenvolvedor ou operador não informa suficientemente ao consumidor os riscos associados à inteligência artificial. Não se ignora que a incipiência científica de determinada tecnologia pode entrar em conflito com o dever de informação do fornecedor acerca dos riscos que o objeto produz. Como informar ao consumidor riscos que nem sequer há ciência de quais sejam?
Nesse ponto, a solução passa pelos deveres de cooperação e lealdade que norteiam as relações contratuais e impõem ao desenvolvedor e ao operador, numa perspectiva de cuidado e precaução, o ônus de comunicar aos consumidores os riscos envolvidos na inteligência artificial, ocasionados pela ausência do conhecimento exato das capacidades e limitações da máquina. Ademais, há a possibilidade de que efeitos adversos surjam apenas por força do desenvolvimento posterior do estado da técnica.
Seria um modelo análogo ao que vem sendo feito com maços de cigarros, em que o próprio fornecedor adverte acerca do caráter tóxico do produto a ser adquirido. Não se vislumbra necessidade de lei expressa determinando que o fornecedor faça tal advertência, uma vez que essa informação decorre diretamente dos ditames estampados no Código de Defesa do Consumidor e da axiologia constitucional, especialmente no que tange à boa-fé objetiva.
Descobertos quaisquer perigos, riscos ou ameaças apresentados pelo produto já inserido no mercado, o fornecedor possui o dever de informar aos consumidores acerca de tal descoberta, para a tomada de cuidados ou até mesmo a inutilização do produto. De acordo com Gilberto Almeida:
Sem esse acesso, os consumidores ficarão à mercê do arbítrio dos agentes empresariais para que se possa discernir quando tenha havido algum excesso ou falha na concepção ou implantação da inteligência artificial. Além de que nessas situações em que a inteligência artificial se alimenta da inteligência do próprio consumidor (eis que o uso amplia a base de dados coletados bem como os conhecimentos e as interferências), o consumidor pode se interessar por compreender como sua interação tem contribuído (com traços efêmeros, ou permanentes; com apropriação consentida, ou sub-reptícia; para ilações benéficas, ou prejudiciais) para esse processo[19].
Ainda que não haja conhecimento exato das potencialidades da máquina e/ou dos efeitos nocivos que possam posteriormente ser descobertos, é imprescindível que o desenvolvedor e o operador informem sobre esse fator de imprevisibilidade, sob pena de a informação ser considerada insuficiente e restarem violados os direitos básicos dos consumidores envolvidos, com a consequente responsabilização civil.
Gabriela Buarque Pereira Silva
Advogada. Mestra em Direito Público pela Universidade Federal de Alagoas.
Membro do Grupo de Pesquisa Direito Privado e Contemporaneidade (Ufal).
Pesquisadora voluntária no Privacy Lab do Cedis/IDP
e no Laboratório de Políticas Públicas e Internet (Lapin).
Notas
[1] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (…) V – defesa do consumidor; (…).
[2] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor; (…).
[3] XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.
[4] Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (…) III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; (Redação dada pela Lei nº 12.741, de 2012).
[5] LÔBO, Paulo Luiz Netto. A informação como direito fundamental do consumidor. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 37, p. 59-76, 2001.
[6] Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995).
[7] MARQUES, Cláudia Lima. Superação das antinomias pelo diálogo das fontes: o modelo brasileiro de coexistência entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002. Revista da ESMESE. N. 7, 2004, p. 27.
[8] BENJAMIN, Antonio Herman V.; BESSA, Leonardo Roscoe; MARQUES, Claudia Lima. Manual de Direito do Consumidor. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 99.
[9] BENJAMIN, Antonio Herman V.; BESSA, Leonardo Roscoe; MARQUES, Claudia Lima. Manual de Direito do Consumidor. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 106.
[10] GARCIA, Leonardo de Medeiros. O princípio da informação na pós-modernidade: direito fundamental do consumidor para o equilíbrio nas relações de consumo. Revista Direito UNIFACS. N. 176, Salvador, 2015, p. 10.
[11] LÔBO, Paulo Luiz Netto. A informação como direito fundamental do consumidor. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 37, p. 59-76, 2001, p. 69.
[12] LÔBO, Paulo Luiz Netto. A informação como direito fundamental do consumidor. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 37, p. 59-76, 2001, p. 69.
[13] LÔBO, Paulo Luiz Netto. A informação como direito fundamental do consumidor. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 37, p. 59-76, 2001, p. 70.
[14] MARQUES, Cláudia Lima. A proteção do consumidor de produtos e serviços estrangeiros no Brasil: primeiras observações sobre os contratos à distância no comércio eletrônico. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS. V. 21, mar./2002, p. 79.
[15] LANDIM, Wilkerson. Engenheiro do Google é afastado por acreditar que IA se tornou consciente. Mundo Conectado. Disponível em: https://mundoconectado.com.br/noticias/v/26069/engenheiro-do-google-e-afastado-por-acreditar-que-ia-se-tornou-consciente. Acesso em: 22 jul. 2022.
[16] LÔBO, Paulo Luiz Netto. A informação como direito fundamental do consumidor. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 37, p. 59-76, 2001, p. 69.
[17] LÔBO, Paulo Luiz Netto. A informação como direito fundamental do consumidor. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 37, p. 59-76, 2001, p. 69.
[18]MARINONI, Luiz Guilherme. A tutela específica do consumidor. Disponível em: http://www.marinoni.adv.br/wp-content/uploads/2012/06/PROF-MARINONI-A-TUTELA-ESPEC%C3%8DFICA-DO-CONSUMIDOR-.pdf. Acesso em: 1º jan. 2020.
[19] ALMEIDA, Gilberto. Notas sobre utilização de inteligência artificial por agentes empresariais e suas implicações no âmbito do direito do consumidor. In: FRAZÃO, Ana. MULHOLLAND, Caitlin (coord.). Inteligência artificial e direito: ética, regulação e responsabilidade. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 424.