Confira a entrevista com a Amyra El Khalili, autora de diversos artigos da Revista Fórum de Direito Urbano e Ambiental, para o portal “Correio da Cidadania” sobre o e-book ” Commodities ambientais em missão de paz – novo modelo econômico para América Latina e Caribe “.
Correio da Cidadania: Começando pelo título do livro, o que são commodities ambientais e quais suas finalidades na economia atual?
Amyra El Khalili: Primeiramente, é preciso compreender o que são “commodities” para depois definirmos o que são “commodities ambientais”. Commodities são mercadorias padronizadas para compra e venda que adotam critérios internacionais de comercialização em mercados organizados (bursáteis, ou seja, de Bolsas de Mercadorias e de Futuros). Hoje classificamos as produções convencionais em commodities agropecuárias (soja, milho, café, boi, cana, cacau, açúcar etc.) e commodities minerais (petróleo, gás, ouro, prata, cobre, ferro etc.).
Foi justamente com o objetivo de questionar como se dão esses “critérios” de padronização e seu modus operandi que passei a estudar o binômio “água e energia” e cunhei a expressão “commodities ambientais”. Fui operadora de commodities e de futuros por mais de duas décadas, treinei e capacitei operadores para as corretoras, passei a ser estrategista em engenharia financeira, estruturei e montei quatro corretoras associadas à Bolsa de Mercadorias & de Futuros (antiga BM&F), na década de 90 negociava duas toneladas de ouro por dia nos mercados spot (à vista) e derivativos (futuros) até chegar à condição de consultora da BM&F assessorando-a na implantação de instrumentos econômico-financeiros, como, por exemplo, o contrato futuro de soja em grão a granel. Fiz a rota da soja no Brasil para o lançamento deste contrato futuro de soja. Como conheço essa engrenagem por dentro, sei separar produção de finanças como também identificar quando produção e finanças se “fundem e confundem”.
As commodities ambientais são o oposto das commodities convencionais por fazerem contraponto aos critérios de padronização e comercialização, ao questioná-los tecnicamente confrontando os números e estatísticas das grandes escalas de produção, incluindo as variáveis sociais e ambientais e principalmente as reinvindicações dos que são os legítimos representantes de sua “eminência parda, O Mercado”, ou seja, os produtores e consumidores que somos todos e todas nós, pagadores de impostos e taxas, além de pagarmos também as exorbitantes taxas de juros praticadas no Brasil quando recorremos a empréstimos e financiamentos.
Assim sendo as “commodities ambientais” são mercadorias originárias de recursos naturais, produzidas em condições sustentáveis, e constituem os insumos vitais para a indústria e a agricultura. Estes recursos naturais se dividem em sete matrizes: 1. água; 2. energia, 3. biodiversidade; 4. floresta; 5. minério; 6. reciclagem; 7. redução de emissões poluentes (no solo, na água e no ar). As commodities ambientais estão sempre conjugadas a serviços socioambientais – ecoturismo, turismo integrado, cultura e saberes, educação, informação, comunicação, saúde, ciência, pesquisa e história, entre outras variáveis que não são consideradas nas commodities convencionais.
Enquanto as commodities convencionais (agropecuárias e minerais) se concentram em alguns poucos produtos da pauta de exportação com escalas de produção, com alta competividade e tecnologia de ponta (transgenia, nanotecnologia, biologia sintética, geoengenharia etc.) nas commodities ambientais desenvolvemos critérios de produção alternativa como a agroecologia, a orgânica, a permacultura, a biodinâmica, a agricultura de subsistência consorciada com pesquisa de fauna e flora, como as plantas medicinais, exóticas e em extinção. Exemplifico a pesquisa com o banco de germoplasma do bioma macaronésia (misto de bioma amazônico com mata atlântica).
É o caso da semente de linho e das tinturas resgatadas pelo banco de germoplasma para bordados tradicionais da Ilha da Madeira em Portugal que foram clonados pelos chineses e industrializados. O mercado foi inundado por falsificação chinesa dos bordados da Ilha da Madeira. Resultado: as bordadeiras já não querem mais ensinar suas filhas o ofício por serem exploradas pela industrialização e por empresários que exportam seus bordados para boutiques e pagam uma miséria para as bordadeiras.
Outra contradição: enquanto na Amazônia combatemos a biopirataria, nos países do norte pesquisam as sementes e espécies para recuperar o que degradaram e desmataram. São essas contradições, seus paradoxos e reflexões entre problemas e soluções que estamos debatendo e analisando ao construir coletivamente o conceito “commodities ambientais”. As commodities ambientais são como um espelho diante da face do sistema financeiro para que possamos enxergar em tempos de trevas alguma luz no fim do túnel, propondo um modelo de transição à economia de mercado em sua fase neoliberal (neo = novo; liberal = livre mercado).
Ora se vivemos em uma economia onde quem comanda é o livre mercado, por que somente os detentores de capital podem decidir sobre o que, como e de que forma devemos produzir e consumir? Se é livre para os capitalizados, por que deles somos reféns e estamos “presos”? Devemos ser eternamente “escravos do livre mercado”?
Se somos os que produzem, os que consomem, os que pagam impostos, taxas e os juros, por que temos que nos subordinar às regras de padronização e comercialização internacionais, fora de nossa realidade e ainda aceitar passivamente que esse mercado se “autorregule”?
No Brasil sabemos que o legislador é questionável e muitas vezes injusto; é quando a lei beneficia o réu (o degradador) e penaliza a vítima (o ambiente). E quando é conveniente para bancos e corporações, prevalece o negociado sobre o legislado.
Correio da Cidadania: Considera a exploração das commodities ambientais sustentável? Qual a “separação a se fazer do joio do trigo”, como a obra propõe?
Amyra El Khalili: As matrizes das commodities ambientais são recursos naturais e processos renováveis e não renováveis: a água, a energia, a biodiversidade, a floresta, o minério, a reciclagem, a redução de emissões de poluentes (no solo, na água e no ar). Não são mercadorias, não podem ser “comoditizadas” por se tratarem de bens difusos, de uso comum do povo.
As commodities ambientais são as mercadorias que se originam destas matrizes, por exemplo, o doce de goiaba da produtora de doces de Campos dos Goytacazes (RJ). A goiabeira é matriz. A goiaba é matéria prima, o fruto. A mercadoria é o doce de goiaba. A prestadora de serviços é a mulher doceira de Campos dos Goytacazes que aprendeu com a índia Goytacá a receita tradicional para fazer goiabada cascão. A mulher doceira se organiza em associação e cooperativa. A água e a energia como commodity ambiental, neste caso, é o insumo usado pela mulher doceira para produzir o doce de goiaba. Torna-se commodity ambiental quando essa mulher doceira cuida da bacia hidrográfica e trabalha com energia renovável e/ou maximizando o uso da água e da energia para poder produzir seu doce. É quando água e energia são captadas da natureza e passam para a cadeia produtiva.
Nas commodities ambientais trabalhamos as sete matrizes integradas ao aprendermos como funciona um ecossistema. Na natureza não há separação entre as matrizes porque a natureza está integrada. Se separamos em sete matrizes é para poder estudar e analisar os impactos socioeconômicos de seu uso justamente para não permitir a exploração desenfreada e nem o extrativismo industrializado como ocorreu no desastre ambiental com a mineração em Mariana, Minas Gerais.
Estamos falando de commodity, ou seja, de mercado organizado e não de extrativismo pura e simplesmente (sem organização social). Commodity não se dá na informalidade e nem é possível dizer que qualquer coisa vira commodity na ilegalidade e sem critério de padronização. Agora mercadoria pode ser lícita tanto quanto ilícita. A lista de coisas ilícitas que se tornam mercadorias é enorme, dá pano pra burca!
Na economia verde chamam os processos de serviços ecossistêmicos e ambientais. Ocorre que também não são “serviços”, já que a natureza não está a serviço dos humanos, não cobra por seus trabalhos. No conceito “commodities ambientais” estamos falando de “benefícios providenciais” e não de serviços ambientais.
Se alguém presta algum serviço nessa equação, é a bordadeira da Ilha da Madeira, a costureira, o extrativista, a quebradeira de coco de babaçu, o ribeirinho que pesca o peixe, a doceira que retira a goiaba mantendo a goiabeira em pé e plantando uma muda de goiabeira ao lado da árvore que extraiu o fruto, os povos indígenas e tradicionais que protegem e guardam as florestas e as águas. Estes, sim, prestam serviços e deveriam ser devidamente remunerados por manter os “benefícios providenciais” que a natureza nos proporciona. Eles e elas trabalham para que tenhamos água em quantidade e qualidade, assim como o ar, a terra e o mar.
Correio da Cidadania: E os verdadeiros prestadores de serviço estão sendo excluídos dos benefícios econômicos?
Amyra El Khalili: A academia e as grandes ONGs têm por hábito criar novas expressões e palavras-chaves para desviar a atenção do principal, tanto os que defendem o neoliberalismo quanto os que o criticam. É muita tergiversação política, distorção e enviesamento das bandeiras e justas causas que defendemos e discutimos no mundo real. Mas o povo não é bobo. É bom, mas não é bobo. Como disse uma liderança Jaminawá “capivara é capivara, paca é paca, cobra é cobra e nem vem com esses nomes complicados que a gente não sabe o que é, pra gente as coisas são simples”.
Se usamos a palavra-expressão “commodities” é porque dominamos o assunto e estamos rebatendo argumentos frouxos e inconsistentes. Derrubando mitos que se apresentam como verdades absolutas e inquestionáveis. Quem nos ouve e nos lê com atenção entende perfeitamente o que estamos falando.
Também nunca soube de um investidor que colocasse dinheiro em algo que não entendesse, pelo contrário, se o fazem sem entender é porque estão sendo enganados. Enganar pessoas é estelionato (abuso da boa fé do indivíduo) e se tiver papéis com palavras-expressões enroladas, certificadores duvidosos, auditores incompetentes (na melhor das hipóteses) é fraude. Se tiver juros impraticáveis e escorchantes, é agiotagem. Daí a coisa sai da esfera, do campo técnico e ideológico e passa à condição de jurídico-econômico. Nessa última hipótese, é crime.
Portanto, estamos entrando no território do direito penal, mais especificamente no direito ambiental e no direito humano sem perder de vista que estamos tratando também com direito econômico, tributário e fiscal. É matéria multidisciplinar e não dá para uma única mortal se rogar de doutora no tema. Eu não me atreveria a tanta prepotência!
Senão vejamos, quando privatizaram a Vale do Rio Doce o que venderam? Uma empresa estatal? Não, venderam as riquezas do subsolo, o bem público, o minério explorado pela Vale do Rio Doce que passou a ter acionistas estrangeiros e se submeter às regras de mercado (ou a falta delas!). Aqui estou falando de mercado financeiro e não do mercado como um todo que somos todos nós, produtores e consumidores de bens e serviços.
Quando leiloaram o pré-sal, entregaram para exploração de outros países em território brasileiro o bem comum do povo, o petróleo. Eu respondo sua pergunta com outra pergunta: é viável?
Tomemos como fato a recente greve dos caminhoneiros. Ao indexarem os preços dos combustíveis ao preço praticado nas bolsas internacionais, as bombas de gasolina e álcool nos postos passaram à condição de corretores e cambistas, com reajustes de preços diários e inesperados.
É impossível conviver com uma situação dessas quando nem os caminhoneiros conseguem saber o que estão pagando para continuarem na estrada; quando nem seus salários estão garantidos e ainda correm riscos de vida com assaltos e péssimas condições de trabalho com a frota sucateada ou como vão pagar as prestações dos caminhões novos que compraram.
Quando propomos “as commodities ambientais” estamos falando de alternativas de geração de emprego e renda para os que vivem da mineração, da exploração desenfreada do bem comum, pois os argumentos das mineradoras e do agronegócio são de que tal atividade extrativista gera emprego e renda, traz divisas (dinheiro de investidores estrangeiros) para o país. Mas sabemos que as empresas multi e transnacionais que se estabelecem no Brasil vêm aqui em busca de insumos (água e energia), de matéria prima (minério e produtos agropecuários) e mão de obra barata ou mesmo de graça e escravizada.
Eles trazem seus funcionários bem pagos do exterior, altamente capacitados falando duas ou mais línguas, com mestrados e doutorados, não contratam mão de obra regional, exploram o ambiente local com a cumplicidade de políticos. Assim privatizam-se os lucros e socializam-se os prejuízos.
Correio da Cidadania: Nesse sentido, em textos no Correio da Cidadania você escreve provocativamente que água, energia e alimentos são, sim, mercadoria, a despeito dos slogans mais famosos em movimentos sociais ou do discurso de grupos e partidos. Como explicar isso?
Amyra El Khalili: Pois digo que é bem o contrário dessas campanhas que vêm de fora para dentro, cunhadas por ONGs internacionais quando a palavra commodities traduzida ao pé da letra significa mercadoria. Querendo “padronizar as campanhas” para que sejam usadas em todos os continentes, as ONGs cometem um equívoco e alimentam mais ainda a confusão entre produção e finanças. Eles fazem a mesma coisa que os colonizadores que tanto criticam fizeram: nos submetem a sua voz de comando sem nos perguntar se essas expressões nos servem para dizer o que gostaríamos de dizer.
Explico: commodities é palavra-expressão utilizada em finanças e podem ser bem mais que simples mercadorias, dependendo de como é usada e em que contexto está sendo empregada, como o agronegócio em suas propagandas quando afirma que o Brasil se tornou o maior exportador de soja com o boom das commodities, tendo os chineses comprando nossa produção, tanto quanto os que dizem que “tudo vai virar commodity” sem explicar como é possível essa metamorfose desconsiderando que ainda temos uma Constituição Federal com o artigo 225, além do direito econômico, tributário e fiscal.
Eis a síntese do texto: o bem ambiental é definido pela Constituição como sendo “de uso comum do povo”, ou seja, não é bem de propriedade pública, mas sim de natureza difusa, razão pela qual ninguém pode adotar medidas que impliquem gozar, dispor, fruir do bem ambiental ou destruí-lo. Ao contrário, ao bem ambiental, é somente conferido o direito de usá-lo, garantindo o direito das presentes e futuras gerações.
Estão usando a palavra-expressão commodities de forma enviesada, distorcida e descontextualizada ou simplesmente jogando a palavra-expressão de um lado para outro sem aprofundar o debate que está em curso há décadas, desta forma, desviando a atenção do principal e na maioria das vezes invertendo o sentido de nossas colocações, demonstrando que não sabem do que estão falando e que desconhecem os gargalos das cadeias produtivas de bens e serviços.
Correio da Cidadania: Mercantilização da Natureza?
Amyra El Khalili: Desde que o primeiro colonizador meteu os pés neste continente latino-americano caribenho, a natureza foi mercantilizada. Estamos em outra fase: a da militarização da natureza. Sem dúvida é inquestionável que o objetivo da “militarização” é para seguir mercantilizando tudo e qualquer coisa, da natureza a vida – aliás, seria hipocrisia dizer que esta ainda não foi mercantilizada. Já se vão mais de 500 anos de colonização mercantil e ninguém fez nada. A cada governo, seja de direita ou esquerda, reproduz-se o mesmo “modus operandi”. Proferi palestra na sede do BNDES (em 2000) promovida pelo governo dos EUA a falar sobre o Plano Colômbia, quando jogaram veneno nas plantações de coca, papoulas, maconha, que além de matar a terra atingiram a população com graves sequelas.
Alguém citou essa fala nos relatórios? Nada! O que os jornalistas escreveram na “grande imprensa” foi apenas o que interessava ao mercado de carbono, mas não escreveram o que disse sobre a necessidade de criar alternativas agroecológicas para os pobres campesinos (as) que plantam coca, maconha e papoulas (BERNA, Vilmar 2018).
Desta forma sou solidária com as propostas do “Comunicado do Componente da FARC no Programa Nacional Integral de Substituição de Cultivos de Uso Ilícito (PNIS)”. Se queremos paz nas florestas, nos campos, nas montanhas e nas águas, temos de caminhar para as soluções dos problemas e não “problematizar mais e mais jogando gasolina onde já há incêndio”.
Como é possível explicar para Dona Maria, para Seu João, que alimento não é mercadoria se eles têm de comprar na feira, no supermercado, na padaria, no açougue a comida dos filhos? Como é possível explicar para minha mãe que água e energia não são mercadorias se as contas de água, luz, gás e combustível estão pela hora da morte?
Será que dá para a gente usar esse argumento com as Empresas-Estados que nos abastecem com água, luz e gás, que não são mercadorias? Que o Estado tem de nos prover de serviços que jamais deveriam ser mercantilizados como saúde, educação, segurança pública, previdência, entre outros que pagamos com impostos e taxas na hora que temos que quitar nossas dívidas? O funcionário que me atende no guichê pode me isentar desses pagamentos apenas com tal argumento?
Penso que as afirmações “água, energia e alimento não são mercadoria” não explicam nada para ninguém, a não ser para os funcionários públicos e os da academia que têm seus salários garantidos no fim do mês e podem dispor de bolsas de pesquisas para ficarem estudando e pesquisando, com despesas de viagens pagas pelo Estado ou por instituições para participarem de seminários, reuniões, encontros e palestras, enquanto a grande maioria, na qual me incluo, mal consegue manter seus empregos com seus diplomas de curso superior e algumas especializações. E veja você que não fiquei rica negociando commodities nas Bolsas. Sigo em caravana dando aulas em comunidades pobres, muitas vezes trabalho sem receber honorários.
Devemos sem dúvida alguma discutir a qualidade do que produzimos e consumimos, se o que comemos nos alimenta ou se o que pagamos tem preço justo, mas devemos evitar confundir mais ainda o que já está confuso e obscuro. Enfim, para quem estamos falando e com quem estamos dialogando? Essa é a pergunta que não quer calar.
Para os simples mortais, galinha é galinha, paca é paca, como diz sabiamente a liderança Jaminawá do Acre.
Correio da Cidadania: Você estabelece diálogo direto com o que chama de “eminência parda”, o mercado. Qual o grau de incidência deste ente nas políticas ambientais e como você descreve os instrumentos financeiros por ele desenvolvidos como incentivos de preservação ambiental?
Amyra El Khalili: Vamos identificar quem é sua eminência parda: o Mercado. Faço essa provocação depois de anos e anos ouvindo o sistema financeiro falar em meu nome sem me perguntar o que eu penso ou o que eu gostaria de dizer. Como operadora da Bolsa repetia todos os dias: o mercado subiu, o mercado caiu, o mercado está nervoso, o mercado está parado. E a gente nem se dá conta do que está dizendo de tão condicionados que ficamos nesse universo.
O mercado a que me refiro no e-book “Commodities ambientais em missão de paz”, como disse anteriormente, somos todos nós que produzimos e consumimos, e não o mercado financeiro, que absolutamente não produz nada e tem sobrevivido como parasita de rentismo e da especulação.
O colega Ladislau Dowbor esclarece esse imbróglio com rigor científico em seu indispensável livro “A era do capital improdutivo”. Ladislau também coordena um grupo de estudos sobre o tema “ financeirização” ao qual temos contribuído e apoiado por considerarmos importante a iniciativa de organizar uma frente que faça contraponto ao modelo neoliberal globalizado.
O atual sistema financeiro é que está determinando o que sua eminência parda, o Mercado, deve produzir e consumir. Por isso mesmo, se sentem à vontade de falar em nome de sua eminência parda, o mercado, de forma generalizada, sem separar mercado financeiro de mercado de trabalho, de mercado alternativo, de mercado de produção, de mercado de bens e serviços. Há mercados e mercados e distinguir produção de finanças é o primeiro passo para não confundirmos trigo com joio.
Por outro lado, acontece também que a economia que vivemos se estabeleceu (establishment) no paradigma mecanicista onde tudo tende a ser mercantilizado, com escalas de produção utilitárias e não como produção com valor de uso social. É evidente que qualquer instrumento econômico-financeiro que seja pensado nesse mesmo paradigma será usado para concentrar mais ainda o capital rentista (que vive de juros e não de produção) do que realmente ser usado para efetivamente financiar a produção. E consequentemente acabam sendo usados para financeirizar (endividar) os que produzem bens e serviços.
Portanto, as críticas aos instrumentos econômicos da economia verde, como Créditos de Carbono, REDD – Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação, Créditos de Efluentes, Créditos de Compensação, Pagamentos por Serviços Ambientais, Pagamentos por Serviços Ecossistêmicos etc. são pertinentes e merecem atenção. Principalmente que órgãos fiscalizadores e reguladores, bem como o Ministério Público, apurem as denúncias que estão sendo registradas em nossas redes de informação.
No entanto, não podemos generalizar e confundir gente séria e bem intencionada com oportunistas, especuladores e criminosos. Muitos acreditam ingênua e equivocadamente que tais instrumentos financiarão a transição de uma economia marrom para uma economia verde, e não estão compreendendo as armadilhas financeiras e jurídicas engendradas com operações que envolvem questões de ordem geopolítica casadas com terras e recursos naturais estratégicos, regulados e legislados com a cumplicidade de políticos para a implementação destes perigosos contratos financeiros e mercantis. É o pacote que vem da chamada economia verde ou economia de baixo carbono.
Correio da Cidadania: Ainda sobre tais instrumentos, que pensa de créditos de carbono e outras modalidades de compensação ambiental?
Amyra El Khalili: Escrevi o artigo “O que são créditos de carbono?” em 1998 (presente no e-book) para explicar a diferença entre títulos bursáteis (negociados em bolsas) e commodities (mercadoria padronizada) e esclarecer que “créditos de carbono” não podem ser “commodities ambientais”.
Questiono se há emissão de um título para que e para quem ele deveria servir? Se é um crédito seja do que for, como se pode usar-aplicar esse crédito?
Primeiramente, carbono não pode ser considerado mercadoria se a intenção é reduzir as emissões. Não existe conta para reduzir nada no sistema financeiro, somente para multiplicar. Confundem “sequestro de carbono” com “créditos de carbono”.
Na natureza, o sequestro de carbono é a fotossíntese. As plantas capturam o CO2 para depois eliminar o oxigênio. Em finanças não há como fazer essa equação. Ainda mais no mercado de commodities que está desregulamentado e hoje a Chicago Board negocia até 100 vezes a mesma saca de soja por ação de especuladores e manipuladores que nada têm a ver com a atividade produtiva. Tais ações distorcem os preços e prejudicam os financiamentos das lavouras, condicionando os agricultores a comprarem as tecnologias de ponta que os países do norte patentearam, como sementes, agrotóxicos, químicos, máquinas e equipamentos.
Uma coisa é financiar um projeto de mitigação (redução de emissões), a outra é emitir títulos para as Bolsas ou negociar commodities nas Bolsas. São coisas diferentes, têm funções diferentes; não deveriam se fundir e muito menos se confundir. Ocorre que com os instrumentos da economia verde citados anteriormente, estão fundindo e confundindo propositadamente os contratos em uma arquitetura financeira perigosa.
Suspeitamos que o fazem para se apropriarem de terras e recursos naturais estratégicos (bens comuns). Com a crise financeira internacional de 2008 após a quebra do Banco Lehman Brothers, os investimentos que estavam no subprime (hipotecas de residências) migraram para o que chamamos de subprime ambiental (hipotecas de terras).
Como disse, nenhum investidor coloca dinheiro naquilo que não conhece e nem assina contratos que não entende. Ainda mais com contabilidades complexas em contratos financeiros e mercantis que necessariamente devem medir a quantidade de carbono sequestrado. Como é feita a medição? Quem audita tal engenharia?
Se na academia há divergências do que pode ou não ser “sequestrado”, se especialistas a todo momento publicam estudos e relatórios que derrubam teses e projetos de carbono, em quem confiar tamanha tarefa para assinar acordos, contratos e projetos que envolvem bilhões e ainda alienam terras por 30, 40, 50 e até 100 anos?
Mitigar não ocorre da noite para o dia, leva anos e anos, e muitos que estão assinando contratos, acordos e projetos nem estarão vivos para saber seus resultados, comprometendo assim o patrimônio ambiental e cultural das presentes e futuras gerações, como é o caso das terras dos povos indígenas e tradicionais.
Correio da Cidadania: Enquanto não esse debate fica ausente do conhecimento público as experiências aqui criticadas avançam pelo Brasil.
Amyra El Khalili: Sim, e não precisamos ir até lá na Amazônia para verificar: aqui mesmo, em território paulista, as terras dos agricultores podem ficar em garantia por tantos anos e alienadas somente para receberem os trocos dos tais “serviços ambientais e ecossistêmicos”, seja de sequestro de carbono ou da gestão das águas de uma represa, cachoeira ou rio que passa dentro de uma propriedade ou fazenda? Será que não estão colocando em risco o patrimônio público (como são as terras indígenas e tradicionais da União) ou privado, como são as terras de meus avós maternos e paternos em Minas Gerais e na Palestina, para receberem um valor insignificante quando essas terras valem muito mais, não para serem exploradas à exaustão, mas por nos proporcionarem os “benefícios providenciais” que nos mantêm vivos, como água, ar e solo?
Analisando um contrato que estamos auditando, encontramos a seguinte cifra: contrataram uma consultora individual em capacitação para plantarem hortas comunitárias pela módica quantia de R$ 95.000,00 por 15 (quinze) meses; em contrapartida ofereceram a uma liderança indígena o valor de R$ 180.000,00 (para três aldeias) por ano em troca de assinarem um contrato de REDD+. Veja , a consultora individual recebe pouco mais da metade do valor oferecido para três aldeias. É uma discrepância absurda. Nunca recebemos essa módica quantia para capacitar comunidades nos cursos de commodities ambientais. Como estamos auditando, por segredo de justiça não vou revelar nomes.
Todos os instrumentos da economia verde obedecem a mesma lógica de outros contratos financeiros e mercantis tanto quanto a lógica dos empréstimos internacionais que escravizam a nossa economia, tais como os empréstimos do FMI, do Banco Mundial, dos Bancos Multilaterais para financiamento de obras públicas, de transporte e de saneamento básico. Basta olhar a quantidade de obras paradas cujos investimentos fizeram de estradas, trilhos e trens um monte de sucata.
Correio da Cidadania: O que pensa, em linhas gerais, dos conceitos de economia verde?
Amyra El Khalili: Participamos de várias frentes que se opõem ao modelo econômico-financeiro chamado “economia verde”. Somos contrários aos projetos de “economia verde” que vêm de cima para baixo e de fora para dentro, como a implementação de uma agenda de venda rápida, com objetivos como legislar, dar números e estatísticas.
Há três principais mercados mundiais ilícitos: o de armas, o do narcotráfico e o da biopirataria. Esse dinheiro passa pelo sistema financeiro – o verdadeiro responsável pelo financiamento do mercado de armas e de todo o aparato gerador de guerras e misérias. Defendemos projetos socioambientais que, focados na preservação e conservação ambiental, contribuem para a segurança pública, combatem as drogas, a violência contra a mulher, a criminalidade, a discriminação étnica, racial e religiosa, promovem a igualdade de gênero, concorrem para a geração de emprego, ocupação e renda.
Como alternativa, construímos coletivamente a economia socioambiental. Diferentemente da economia verde, a socioambiental passa por um processo de consulta à base popular, de ampla consulta pública e suficientemente lenta para ser entendida. O processo que adotamos é de baixo para cima e de dentro para fora. É, sobretudo, desvinculado da agenda de eleições. Todo trabalho de consulta e construção coletiva demora anos, dadas as dificuldades de chegar onde poucos conseguem, em regiões afastadas e sem acesso à comunicação, locais caracterizados por uma população que necessita de assistência e orientação sobre impactos socioambientais
Agimos em duas frentes: primeiro, ao orientar a respeito da produção de um projeto econômico, financeiro e jurídico com a mudança de paradigma; segundo, ao divulgar e publicar relatórios produzidos por formadores de opinião e lideranças que participaram de cursos e oficinas que aplicamos em parceria com universidades, centros de pesquisas e grupos locais, além de divulgar também os relatórios de outras frentes que apoiamos.
Os relatórios indicam o mapa da região, o perfil da população, as características do bioma, identificam as potencialidades alternativas da biodiversidade, entre outras informações relevantes. Dessa forma, podem apresentar os tipos de problemas a eles conectados, como o de água contaminada e o do enfrentamento de violência, de drogas, de degradação ambiental, exclusão e desigualdades sociais e propor soluções. É assim que se idealizam projetos socioambientais e se buscam maneiras de viabilizá-los.
Correio da Cidadania: A maior transparência sobre os conceitos de economia verde nos levaria a observar dilemas e jogos de interesse parecidos com os que o país em crise se defronta no momento?
Amyra El Khalili: Antes de idealizar um projeto socioambiental, é necessário que a sociedade seja devidamente informada, em linguagem de fácil compreensão, sobre questões técnico-científicas. Nossa proposta é questionar esse modelo econômico para que os atores sociais se informem melhor sobre as alternativas e riscos ao tomar suas decisões. Afinal, em casos como os dos projetos oriundos do mercado de carbono, recusar dinheiro é um direito, quando não um dever.
Vários casos poderiam ser citados. Por exemplo: com a divulgação do “Dossiê Acre”, demos visibilidade às denúncias feitas com projetos do mercado de carbono e pagamentos por serviços ambientais no Acre. Elaborado em 2012, o estudo não tinha ainda conseguido o merecido espaço na mídia e nos mais diversos fóruns de debate, como também se ignorava seu ponto de vista técnico, operacional, jurídico, socioeconômico, além de essas políticas de cima para baixo interferirem no modo de vida das comunidades indígenas, tradicionais e campesinas da região amazônica.
Temos, atualmente, mais de cinco mil distribuidores, multiplicadores e parceiros na produção e disseminação de informação. São essas parcerias e “nós de comunicação” que formam a “aliança” que ora completa mais de duas décadas de trabalho voluntário, sem recursos de empresas e de governos. Não somos a mídia. Representamos para a imprensa um contraponto. Apoiamos a mídia alternativa para que também consiga seus financiamentos, posto que nos presta um serviço de utilidade pública da maior relevância.
Há mais de 20 anos trabalhamos nesse projeto, de envergadura geopolítica, pela cultura de paz, pela autodeterminação e emancipação dos povos com a cultura de resistência, cujo resultado se dará a longo prazo. Não buscamos resultados imediatos, mas duradouros e verdadeiramente sustentáveis, formando “alianças” inquebrantáveis.