O Valor Justo indenizatório e o equilíbrio econômico-financeiro das concessões

13 de dezembro de 2022

O estabelecimento de uma regulação contratual bem desenhada pressupõe o equacionamento de pelo menos quatro objetivos de difícil conciliação: (i) a definição de um nível e estrutura tarifária equilibrados, que remunerem adequadamente os investidores e, ao mesmo tempo, garantam modicidade, acessibilidade e eficiência econômica; (ii) a estruturação de uma matriz de riscos clara, objetiva e abrangente, com os riscos devidamente alocados às partes com maior capacidade para gerenciá-los; (iii) a instalação de uma arquitetura fomentadora de incentivos para que os serviços sejam prestados na qualidade pretendida, com cumprimento pelos concessionários de obrigações de investimentos e/ou de desempenho, as quais estão atreladas ao aporte de recursos (próprios ou de terceiros) e ao manejo de questões técnicas e operacionais do serviço delegado;  e (iv) a revelação tempestiva e transparente de informações reais a propósito do valor e por conseguinte da viabilidade econômico-financeira da exploração, levando em conta o ambiente costumeiro de incerteza e elevada assimetria de informações entre os agentes[1].

Tais fatores forjam o que se convencionou denominar “equilíbrio econômico-financeiro”. É dizer, tal equilíbrio pressupõe que a remuneração percebida, pelo concessionário, será serviente a financiar a operação e manutenção do ativo, suportando as parcelas de risco e responsabilidade que lhe cabem, por intermédio de sua amortização até o termo do contrato. Não é por outra razão que se devem distinguir as formas e as metodologias indenizatórias, que serão aplicadas, caso se trate da extinção normal (por decurso de prazo), ou de umas das hipóteses de extinção anômala dos contratos de concessão (encampação, caducidade, rescisão, anulação e falência).

Mas, note-se: não existem dois equilíbrios econômico-financeiros: aquele que deveria ser preservado, durante a vigência do contrato de concessão; e, aqueloutro, que seria instalado, a partir de sua extinção prematura. A coerência e harmonização dos regimes indenizatórios com o equilíbrio econômico-financeiro da concessão sugere a produção de importantes eficiências contratuais. Esta coerência é frequentemente rompida quando utilizadas metodologias baseadas puramente em informações históricas, sem contrapartida em estimativas do valor equilibrado da concessão.

Em termos práticos, nos setores de infraestrutura, usualmente, se adota a metodologia do Custo Histórico Contábil – CHC (a exemplo do que se passa, nos setores de concessão de rodovias e de concessões aeroportuárias, nos termos da Resolução ANTT n°5.860/2019 e Resolução ANAC n°533/2019)[2]. Esta metodologia é frequentemente defendida como a mais simples e objetiva, mas possui ao menos dois problemas graves. Primeiro, a apuração histórico contábil dos custos é uma ferramenta gerencial primordialmente utilizada para fins de registro, com objetivos bastante distintos dos necessários para uma estimativa razoável do valor equilibrado da concessão. Em segundo lugar, a assimetria de informações entre o Poder Concedente e os concessionários pode produzir um elevado risco moral (Moral Rarzard)[3], comprometendo a compatibilidade entre os valores registrados com a aquisição e manutenção de tais bens e os valores atualizados de mercado. Mais do que isso, a indenização por custo contábil histórico “puro” pode criar uma opção real de saída valiosa para o concessionário, criando incentivos indesejáveis ao término prematuro dos contratos[4].

Vale lembrar que o Pronunciamento Técnico CPC 01 já prevê que os investimentos em bens reversíveis não amortizados devam ser escriturados como ativo intangíveis e reduzidos ao seu valor recuperável (teste de impairment). É razoável argumentar que, quando a redução ao valor recuperável é bem-feita, o valor indenizatório calculado a partir do método CHC guarda mais coerência com o valor equilibrado da concessão. No entanto, além do teste de impairment ser frequentemente negligenciado para fins indenizatórios, ele é, sem maiores direcionamentos regulatórios, pouco transparente e  afeito a grandes doses de subjetividade (perdendo a sua proclamada vantagem frente a outras alternativas metodológicas).

Segue daí a adequação da Metodologia do Valor Justo e sua vinculação com o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão, nas hipóteses de sua extinção prematura. Explica-se. Nos termos do Pronunciamento Técnico CPC 46, a Metodologia do Valor Justo tem por desiderato “estimar o preço pelo qual uma transação não forçada para vender o ativo ou para transferir o passivo ocorreria entre participantes do mercado na data de mensuração sob condições correntes de mercado (ou seja, um preço de saída na data de mensuração do ponto de vista de participante do mercado que detenha o ativo ou o passivo)”. Assim é que tal metodologia pressupõe, a partir da aplicação de um Fluxo de Caixa Descontado (FDC), uma avaliação concreta: (i) dos dados reais da performance do ativo concessionado; (ii) da metodologia que foi engendrada, para fins de reequilíbrio econômico-financeiro (Plano de Negócios Original, EVTEA, Fluxo de Caixa Material e eventual Taxa de Desconto); e (iii) da matriz de riscos contratuais e a ocorrência de eventos qualificados como “riscos” e “incertezas”.

Nesse sentido, digno de nota, por exemplo, é o disposto no art. 13, da minuta de norma de referência da ANA, objeto da Consulta Pública nº 08/2022, que poderá ser acessada via Sistema de Participação Social da ANA até às 18h de 26 de dezembro, segundo a qual “Para cálculo do Valor Presente Líquido será utilizada a taxa de desconto considerada para fins de reequilíbrio econômico-financeiro, cujas regras de definição deverão estar previstas em contrato. E, no seu art. 14, parágrafo único, de acordo com o qual “Para cálculo do Valor Presente Líquido será utilizada a taxa de desconto considerada para fins de reequilíbrio econômico-financeiro, cujas regras de definição deverão estar previstas em contrato.

No mesmo sentido, em um contexto de extinção das primeiras Concessões do Serviço de Telefonia Fixo Comutado – STFC, cite-se o disposto no seu art. 5°, § 1°, do Decreto n°10.402.2020[5], que dispõe sobre a adaptação do instrumento de concessão para autorização de serviço de telecomunicações e sobre a prorrogação e a transferência de autorização de radiofrequências, de outorgas de serviços de telecomunicações e de direitos de exploração de satélites, segundo o qual “O valor econômico será obtido pela diferença entre o valor esperado da exploração do serviço adaptado em regime de autorização e o valor da exploração desse serviço em regime de concessão, calculados a partir da adaptação”.

Há, portanto, de se concluir que esse breve ensaio no sentido de que, a despeito da necessidade de respeito à metodologia já contratualizada entre poder concedente e concessionários (dos atos jurídicos perfeitos), a utilização da Metodologia do Valor Justo e sua vinculação ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão se apresenta como uma escolha eficiente para os projetos de infraestrutura vindouros. A uma, porquanto garante a consistência interna entre os contratos concessão, no que toca ao se regime tarifário, de reequilíbrio e indenizatório. A duas, pois que, ao reduzir a assimetrias de informações entre as partes, sugere a redução de condutas oportunistas e, na ponta, incrementa a segurança jurídica nos setores de infraestrutura.

 

Rafael Véras
Professor Responsável do LLM de Infraestrutura e Regulação da FGV Direito Rio.
Doutorando e Mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.
Gabriel Fiuza
Doutor em economia pela Victoria University of Wellington -NZ.
Mestre em economia pela EPGE/FGV
e em métodos matemáticos aplicados a finanças pelo IMPA

 

Notas
[1] Para além da existência de estruturas de monopólios naturais (ao menos, em alguns segmentos da cadeia de infraestruturas), e dos desafios engendrados por ambientes concorrenciais assimétricos, a missão regulatória ainda é revestida de outra grande complexidade, em razão da assimetria de informações entre o Poder Concedente e as firmas reguladas (o que poderá ensejar a prática de comportamento oportunistas), incrementado os “custos de transação”. (DECKER, Christopher. Modern Economic Regulation: An Introduction to Theory and Practice. University of Oxford, 2014. p. 45).
[2] NUNES, Thiago Mesquita (Coord.). Relatório do Grupo de Trabalho sobre Extinção Antecipada de Contratos de Parceria. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, 2022.
[3] NÓBREGA, Marcos “Análise Econômica do Direito Administrativo”, In: Luciano Benetti Timm, Direito e economia no Brasil, São Paulo: Atlas, 2012, p. 404-416
[4] COSTA, F do A.  Risco de Demanda e Abandono Contratual: Uma Análise por Opções Reais da Concessão da Rodovia BR-381/262/MG/ES. Dissertação de Mestrado. UNB, 2020.
[5] Decreto que regulamentou a Lei n°13.819/2019, em especial seu art. 144-B, cuja redação é seguinte:
Art. 144-B. O valor econômico associado à adaptação do instrumento de concessão para autorização prevista no art. 144-A será determinado pela Agência, com indicação da metodologia e dos critérios de valoração. (Incluído pela Lei nº 13.879, de 2019) § 1º O valor econômico referido no caput deste artigo será a diferença entre o valor esperado da exploração do serviço adaptado em regime de autorização e o valor esperado da exploração desse serviço em regime de concessão, calculados a partir da adaptação. (Incluído pela Lei nº 13.879, de 2019)
2º O valor econômico referido no caput deste artigo será revertido em compromissos de investimento, priorizados conforme diretrizes do Poder Executivo. (Incluído pela Lei nº 13.879, de 2019) § 3º Os compromissos de investimento priorizarão a implantação de infraestrutura de rede de alta capacidade de comunicação de dados em áreas sem competição adequada e a redução das desigualdades, nos termos da regulamentação da Agência. (Incluído pela Lei nº 13.879, de 2019) § 4º Os compromissos de investimento mencionados neste artigo deverão integrar o termo previsto no inciso IV do art. 144-A. (Incluído pela Lei nº 13.879, de 2019)
5º Os compromissos de investimento deverão incorporar a oferta subsidiada de tecnologias assistivas para acessibilidade de pessoas com deficiência, seja às redes de alta capacidade de comunicação de dados, seja aos planos de consumo nos serviços de comunicações para usuários com deficiência, nos termos da regulamentação da Agência. (Incluído pela Lei nº 13.879, de 2019)

 

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