O contrato de interdependência e o seu regime jurídico à luz do Novo Marco Regulatório do Saneamento | Coluna Direito da Infraestrutura

22 de novembro de 2022

 

As novas concessões regionais de saneamento tiveram por desiderato, para além de encamparem a diretriz da prestação regionalizada – evitando-se o cream-skimming e os subsídios cruzados ocultos –, o de se interditar a celebração de novos contratos de programa, por meio de dispensa de licitação para delegação de serviços públicos (art. 24, XXVI, da Lei nº 8.666/1993), como se depreende das modelagens licitadas, com a assessoria técnica do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES.

Dito em outras palavras, tal vertente tem por desiderato gerar um sistema de incentivos para a substituição de um modelo de exploração monopólica, quase que despida de incentivos para o adimplemento de obrigações de “investimento” e de “desempenho” pelas CESBs, para um modelo no qual as eficiências serão captadas, em um ambiente competitivo (de Leilão). Mais tecnicamente, endereçou-se um sistema de regulação de entrada, no âmbito de um leilão (franchise bidding), por intermédio do qual se pretende, num ambiente de pressão competitiva, estabelecer um regime de competição pelo mercado[1].

Nada obstante, o tema da titularidade sobre a exploração dos recursos hídricos, pela prestadora histórica, teria de ser endereçado. É que, em razão do disposto no art. 4°, da Lei n° 11.445/2007 “Os recursos hídricos não integram os serviços públicos de saneamento básico”. E, considerando o disposto 31 da Lei n° 9.433/1997, de acordo com o qual “Na implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, os Poderes Executivos do Distrito Federal e dos municípios promoverão a integração das políticas locais de saneamento básico, de uso, ocupação e conservação do solo e de meio ambiente com as políticas federal e estaduais de recursos hídricos”.

Diante disso, na modelagem concessória licitada, no RJ, já em consonância com o racional que iria lastrear a Lei n° 14.026/2020, previu-se a segregação entre a “produção de água”, que abrange a captação de água e o seu tratamento (etapa upstream), excluindo-se a distribuição da água aos usuários finais (etapa downstream). Cuida-se de segregação das etapas de prestação do serviço, que tem previsão no art. 10-A, § 2°, da Lei n°11.445/2007 (incluído pela Lei n°14.026/2020), segundo o qual “As outorgas de recursos hídricos atualmente detidas pelas empresas estaduais poderão ser segregadas ou transferidas da operação a ser concedida, permitidas a continuidade da prestação do serviço público de produção de água pela empresa detentora da outorga de recursos hídricos e a assinatura de contrato de longo prazo entre esta empresa produtora de água e a empresa operadora da distribuição de água para o usuário final, com objeto de compra e venda de água” (Grifos Postos). Não se trata de modelagem novidadeira, no setor de saneamento[2].

Com lastro nesse racional e na opção discricionária de manter a operadora histórica (CEDAE) em parte da cadeia do serviço que restou trespassado para o setor privado, a modelagem veiculou a obrigação de se celebrar um plexo de contratos coligados, que disciplinasse a relação de interdependência entre a propriedade da água e a titularidade do serviço de saneamento (que, a despeito de ser municipal, é compartilhada, por intermédio da representação do Estado do Rio de Janeiro, na forma do disposto no art. 8°, II, da Lei n° 11.445/2007, incluído pela Lei n° 14.026/2020).

Seguiu daí a celebração de um Contrato de Interpendência, entre a CEDAE e as concessionárias privadas, que tem por objeto disciplinar as obrigações e responsabilidades relativas à produção e ao fornecimento de água potável, por atacado, pela operadora histórica às concessionárias, nos Municípios atendidos, a partir do sistema upstream. Cuida-se de uma engenharia, de regulação endocontratual, por intermédio da qual se pretende uniformizar a disciplina econômico-jurídica dos serviços das etapas upstream e downstream, bem como estabelecer, na forma do disposto no art. 23 da Lei n° 13.655/2018 (LINDB), um regime de transição da gestão de recursos hídricos do operador histórico para as concessionárias privadas.

Nesse quadrante, o racional econômico-financeiro contrato de interpendência, de acordo com  Wladimir António Ribeiro e Rafael Roque Garofano[3] tem por desiderato “disciplinar a relação existente entre os diferentes prestadores de serviços de saneamento básico, evitando-se conflitos que possam colocar em risco a adequada, contínua e eficiente prestação dos serviços, através da imposição da celebração de um instrumento formal capaz de regular, por escrito, as condições da execução das atividades interdependentes, afastando a informalidade e a insegurança inerentes às relações mantidas, há anos, muitas vezes apenas por acordo verbal”.

Cuida-se de instrumento contratual, que tem previsão no art. 12 da Lei n° 11.445/2007, segundo o qual “Nos serviços públicos de saneamento básico em que mais de um prestador execute atividade interdependente com outra, a relação entre elas deverá ser regulada por contrato e haverá entidade única encarregada das funções de regulação e de fiscalização”. E que se compatibiliza com o princípio da coerência administrativa[4].

Não se trata, propriamente, de um contrato de concessão, porém o seu regramento é, previamente, delineado pelo Marco Regulatório Setorial. De fato, de acordo com o §2°, do art. 12 da Lei n° 11.445/2007, tais instrumentos deverão conter, ao menos: (i) as atividades ou insumos contratados; (ii) as condições e garantias recíprocas de fornecimento e de acesso às atividades ou insumos; (iii) o prazo de vigência, compatível com as necessidades de amortização de investimentos, e as hipóteses de sua prorrogação; (iv) os procedimentos para a implantação, ampliação, melhoria e gestão operacional das atividades; (v) as regras para a fixação, o reajuste e a revisão das taxas, tarifas e outros preços públicos aplicáveis ao contrato; (vi) as condições e garantias de pagamento; (vii) os direitos e deveres sub-rogados ou os que autorizam a sub-rogação; (viii) as hipóteses de extinção, inadmitida a alteração e a rescisão administrativas unilaterais; as penalidades a que estão sujeitas as partes em caso de inadimplemento; e (ix) a designação do órgão ou entidade responsável pela regulação e fiscalização das atividades ou insumos contratados.

Tenho para mim que não se tratam, propriamente, de contratos com objetos delegatórios, mas que sofrem influxos regulatórios salientes, tendo em vista os seus impactos sobre parcela a jusante do serviço de saneamento. Tais contratos, na verdade, se inserem no âmbito do bloco de contratos coligados celebrados pelo Estado com as concessionárias privadas.

Cuida-se, pois, de contratos privados regulados. Nada obstante, não se trata de um contrato regido, integralmente, pelo direito privado, tampouco de um contrato administrativo (com as exorbitâncias que lhe são inerentes). Assim é que os referidos contratos não se submetem ao regime jurídico-administrativo – usualmente atribuído aos contratos de que a Administração Pública é parte –, na medida em que têm por objeto endereçar um sistema de coordenação entre distintos segmentos da prestação do serviço de saneamento com uma empresa estatal (a CEDAE).

Nesse sentido, tal contrato, para além do disposto no art. 12 da Lei n°11.445/2007, tem fundamento no disposto no art. 25, § 2°, da Lei n°8.987/1995, o qual dispõe que “Os contratos celebrados entre a concessionária e os terceiros a que se refere o parágrafo anterior reger-se-ão pelo direito privado, não se estabelecendo qualquer relação jurídica entre os terceiros e o poder concedente”. Nada obstante, por se tratar de um contrato de direito privado, celebrado no âmbito de uma relação que veicula a prestação de um serviço público (o saneamento) e a exploração de um bem público (o recurso hídrico), esse dirigismo contratual é qualificado pela incidência de influxos regulatórios.

É assaz recorrente que o regulador discipline, por exemplo, os termos de contratos de direito privado celebrados entre concessionários de serviços públicos, notadamente no que toca ao compartilhamento de infraestruturas (essential facilities). Em Telecomunicações, por exemplo, tal competência é prescrita pelo artigo 73 da Lei n° 9.472/1997, cuja redação é a seguinte: “as prestadoras de serviços de telecomunicações de interesse coletivo terão direito à utilização de postes, dutos, condutos e servidões pertencentes ou controlados por prestadora de serviços de telecomunicações ou de outros serviços de interesse público, de forma não discriminatória e a preços e condições justos e razoáveis”. A fim de disciplinar esse dispositivo, foi editada a Resolução Conjunta nº 1, de 24 de novembro de 1999 (ANEEL, ANATEL e ANP), que aprova o Regulamento Conjunto para Compartilhamento de Infraestrutura entre os Setores de Energia Elétrica, Telecomunicações e Petróleo.

Cuida-se de racional que deve ser transposto para os Contratos de Interdependência celebrados, no âmbito das concessões regionais. Diante do exposto, é se concluir esse breve ensaio no sentido de que: (i) o Contrato de Interdependência tem por objeto estabelecer um regulação contratual, a disciplinar a segregação entre a “produção de água”, que abrange a captação de água e o seu tratamento (etapa upstream), excluindo-se a sua distribuição aos usuários finais (etapa downstream), com fundamento no art. 10-A, § 2°, da Lei n°11.445/2007 (incluído pela Lei n°14.026/2020); (ii) Cuida-se, pois, de contratos privados regulados, celebrados entre duas pessoas jurídicas com personalidade jurídica de direito privado (CEDAE e as concessionárias), na forma do disposto no art. 25, § 2°, da Lei n°8987/1995; (iii) tais contratos não se submetem a quaisquer exorbitâncias contratuais decorrentes do regime jurídico-administrativo. Porém, por fazerem parte de uma coligação contratual pactuada para viabilizar a prestação de um serviço público, tais terão de ser parcialmente regidos por normas de direito público, expedidas pela entidade reguladora setorial.

 

 

Rafael Véras é coordenador da Coluna Direito da Infraestrutura da Editora FÓRUM. Professor do LLM em Infraestrutura e Regulação da FGV Direito Rio. Doutorando e Mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.

[1] PHILLIPS JR., C. F. The regulation of public utilities: theory and practice. Arlington, VA: Public Utilities Report Inc., 1993. DEMSETZ, H. Why regulate utilities? Journal of Law and Economics, n. 11, v. 1, p. 55-65, 1968.

[2] Veja-se, de modo exemplificativo, o Contrato CEDAE nº 096-A/2013, firmado entre a CEDAE e a Águas de Niterói S.A., tendo por objeto “o fornecimento de água potável por atacado, pela CEDAE à Águas de Niterói, para abastecimento público do Município de Niterói” (Cláusula 1.1). No mesmo sentido, o Contrato de Interdependência anexo ao Contrato de Concessão da Prestação Regionalizada dos Serviços Públicos de Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário prestados nos Municípios da Região Metropolitana de Maceió, modelagem recém licitada, e que tem por objeto regular a relação de interdependência entre a Companhia de Saneamento de Alagoas – CASAL e a BRK Ambiental, “notadamente as obrigações e responsabilidades relativas à produção e distribuição de água potável nos Municípios abrangidos” (Cláusula Segunda).

[3] LUNA, Guilherme Ferreira Gomes; GRAZIANO, Luiz Felipe Pinto Lima; BERTOCCELLIET, Rodrigo de Pinho et. al. (Coords.). Saneamento Básico: Temas fundamentais, propostas e desafios. Rio de Janeiro: LumenJuris, 2017.

[4] O dever de coerência administrativa determina, assim, que a Administração Pública se comunique internamente, harmonizando suas funções de forma coordenada ou cooperativa, como se verá adiante, em favor de seu exercício coerente, evitando o embate estéril de competências ou o comportamento contraditório de dois órgãos distintos, por exemplo, e a consequente violação ao princípio da proteção da confiança legítima. (RIBEIRO, Leonardo Coelho; FREITAS, Rafael Véras de. Manutenção do ambiente negocial entre o público e o privado e desenvolvimento nacional: o impacto das modulações regulatórias nos contratos da Administração e o dever de coerência administrativa. In CORRÊA, André Rodrigues; PINTO JÚNIOR, Mario Engler. Cumprimento de contratos e Razão de Estado. São Paulo: Saraiva, 2013).

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