A Concessão de Portos Organizados: um instrumento equalizador de assimetrias regulatórias e redutor de custos de transação  

3 de março de 2022

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Como é de conhecimento convencional, o setor portuário é estruturado a partir da instituição de uma assimetria regulatória entre os exploradores das infraestruturas portuárias – arrendatários e operadores de Terminais Privados (TUPs). Como já tive a oportunidade de asseverar[2], cuida-se da instituição de um ambiente de concorrência assimétrico entre operadores, que exploram tal infraestrutura dentro ou fora da Poligonal do Porto Organizado. Acontece que, malgrado as eficiências produzidas pela competição (pela redução dos lucros dos monopolistas), fato é que tal assimetria regulatória importou no ocaso da exploração de áreas afetadas à exploração portuária, localizadas em Portos Organizados. Nesse sentido, o Tribunal de Contas da União – TCU, por intermédio do Acórdão nº 2.711/2020, a partir de análise das infraestruturas existentes e do benchmarking internacional, se manifestou no sentido de “apesar de ter apresentado avanços, o processo licitatório para arrendamento portuário é complexo, rígido e moroso, incompatível com a agilidade necessária para a otimização do espaço público”.

Nessa direção, foi editada a Lei n° 14.047/2020, que, ao dispor sobre medidas temporárias para o enfrentamento da Pandemia da Covid-19, no âmbito do setor portuário, reforçou a possibilidade de delegação, por intermédio de concessão, de toda a infraestrutura portuária para a iniciativa privada, bem como previu que “os contratos celebrados entre a concessionária e terceiros, inclusive os que tenham por objeto a exploração das instalações portuárias, serão regidos pelas normas de direito privado, não se estabelecendo qualquer relação jurídica entre os terceiros e o poder concedente, sem prejuízo das atividades regulatória e fiscalizatória da Antaq” (art. 5°- A, da Lei n° 12.815/2013).   

Acredito se tratar de manifesta diretriz normativa no sentido de desregulação paulatina da exploração da infraestrutura portuária, por arrendatários, de modo a equilibrar a assimetria regulatória para com os Terminais Privados (TUPs). Com lastro em tal reforma normativa, o BNDES e a prestigiosa consultoria (técnica e jurídica) contratada, após analisar as possíveis alternativas de privatização do Porto Organizado, apresentou uma robusta modelagem de concessão integral, por intermédio da alienação de participação societária da União na empresa estatal (Docas) cumulada com a celebração de um contrato de concessão. De acordo com os consultores contratados, tal modelo de delegação apresentaria as seguintes vantagens: (i) seria menos custosa para o Estado, considerando a desnecessidade de incorrer em custos de desmobilização e de liquidação; (ii) teria menor risco de solução de continuidade das operações; (iii) seria mais rápida e simples para operacionalização quando comparado a outras alternativas; (iv) não aumentaria custos de transação e a percepção de risco do investidor privado dada a ausência de participação minoritária do Estado na companhia; e (v) permitiria a utilização da iniciativa privada para resolver passivos da empresa estatal, de forma mais eficiente, do que poderia ser resolvido caso a União assumisse esses passivos.

Cuida-se de uma engenhosa e muito bem posta modelagem que se assemelha à Concessão da Infraestrutura aeroportuária (da INFRAERO para empresas privadas), que teve início, nos idos de 2011. Nada obstante, precisava-se garantir que a nova concessionária do Porto Organizado não forjasse mais um ambiente concorrencial desequilibrado para com os arrendatários. Daí a grande perspicácia da utilização do disposto no art. 20, II, do Decreto n° 8.033/2013, que admite que o contrato de concessão do porto organizado tenha por objeto “o desempenho das funções da administração do porto e a exploração indireta das instalações portuárias, vedada a sua exploração direta”. Nesse quadrante, o concessionário terá as relevantes funções de: gerir os espaços portuários; prover a infraestrutura básica e os serviços condominiais; coordenar as operações portuárias e promover a interação com a comunidade; contribuir para o desenvolvimento regional; e fomentar a realização de novos negócios.

Os efeitos econômicos de tal modelagem caminham no sentido da correção das falhas produzidas por problemas de coordenação entre agentes econômicos (“Tragédia dos Comuns”[3]). É que, não raro, os agentes exploradores da infraestrutura portuária e as próprias autoridades portuárias não despendiam recursos adequados para a realização de investimentos nas infraestruturas comuns do Porto Organizado. Diante do que, ao maximizar seus próprios interesses, produziam ineficiências coletivas (para os arrendatários, para os TUPs e para a própria Administração dos Portos). Nesse quadrante, a modelagem de exploração indireta muito bem engendrada pode servir de móvel para a correção de tal vicissitude.    

Tenho para mim que dois são os nortes regulatórios das minutas colocadas em audiências públicas e que serão licitadas: (i) reduzir custos de transação; e (ii) endereçar um amplo sistema de flexibilização tarifária. De fato, a propósito do primeiro aspecto, com a negociação direta dos novos contratos de exploração de áreas afetas às operações portuárias, entre concessionário e arrendatário, sob um regime privado, sem amarras do regime publicístico dos contratos administrativos e a intervenção direta União, sugere-se que terá lugar uma saliente redução dos custos de transação, ex ante e ex post, sob as perspectivas de Coase e Willianson[4].  Tais custos, por certo, serão vertidos à realização de novos investimentos e à redução tarifária.

A propósito do segundo aspecto, tem-se a fixação de um regime dúplice de regulação tarifária (ex ante e ex post), que considera os efeitos concorrenciais da exploração do Porto Organizado pelo novo concessionário, muito em linha como o que restou consignado no Acórdão nº 2.711/2020 – Plenário do TCU e com as orientações do World Bank Port Reform Toolkit atualizado, em 02 de fevereiro 2021 (Módulo 6)[5]. Dito em outras palavras, o teto-tarifário (Price Cap) ou a receita teto serão fixados quando e se configurarem indícios do exercício de posição dominante, pelo futuro concessionário. Cuida-se de providência, de todo, salutar, pois que reduzirá a assimetria de informações entre o regulador e o concessionário, tendo em vista a possibilidade de proposição de valores tarifários não só por este (após o decurso do regime de transição), como, por intermédio da Proposta Apoiada (instituto bem importado do setor aeroportuário). Também são salutares a instituição de contribuições fixas e variáveis, a serem despendidas pelos concessionários, na qualidade de um incentivo que, para além de evitar oportunistas, serve à repartição do risco de demanda entre as partes; e a incidência de deflatores tarifários (Q e X). A previsão de cláusulas de relevância sofistica o equilíbrio econômico-financeiro da concessão do Porto Organizado, por intermédio da incidência de uma lógica de incentivos vocacionada ao atendimento das obrigações de investimento e de desempenho.

Assim, se, em 28 de janeiro de 1808, o Príncipe-regente Dom João de Bragança abriu os portos às nações amigas, podemos dizer que, em 2022, com a delegação dos Portos Organizados para concessionárias privadas, teremos uma “nova abertura dos portos” para o mercado internacional e para o desenvolvimento da logística brasileira.

  


Rafael Véras
é consultor Jurídico em Setores de Infraestrutura.
Doutorando e Mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.

Notas

[2] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo ; FREITAS, Rafael Véras de. A Nova Regulação Portuária. 1.ED.. Belo Horizonte: Fórum, 2015.

[3] HELLER, Michael. The tragedy of the anti-commons: property in the transition from Marx to markets. Harvard Law Review, p. 621-688, Jan. 1998

[4] WILLIAMSON, Oliver E. The Economic Institutions of Capitalism: firms, markets, relational contracting. New York: Free Press, 1985.

[5] https://ppp.worldbank.org/public-private-partnership/library/port-reform-toolkit-ppiaf-world-bank-2nd-edition

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