O Projeto de Lei nº 21/2020, de autoria do Deputado Eduardo Bismarck e relatoria da Deputada Luísa Canziani, estabelece princípios, direitos e deveres para o uso de inteligência artificial no Brasil. O projeto já foi aprovado pela Câmara dos Deputados e segue para o Senado Federal.
Em que pese a propaganda no sentido de que o texto é notadamente principiológico, observam-se disposições que restringem ou modificam algumas garantias fundamentais, especialmente no regime de responsabilidade civil. É o caso do art. 6º, VI, do PL, que prevê de modo abstrato a responsabilidade subjetiva como regra geral nos casos de inteligência artificial, desprestigiando a cláusula geral do risco prevista no art. 927 do Código Civil e a análise de caso concreto que norteia a operacionalização dos casos de responsabilidade.
A previsão vulnerabiliza diretrizes fundamentais como a solidariedade social e o direito da vítima à reparação integral de seus danos, caracterizando inegável retrocesso no campo do Direito de Danos. No mesmo sentido, o PL não dá ênfase suficiente aos preceitos básicos para a proteção dos direitos fundamentais no ramo do desenvolvimento tecnológico, tais como a transparência e o dever de informação.
A relevância da regulação da inteligência artificial e a multiplicidade de seus impactos torna necessário o aprofundamento da discussão por todos os setores interessados: iniciativa privada, sociedade civil e Estado. À medida que o desenvolvimento proporcionado pela IA (Inteligência Artificial) é crescente e se alastra por todos setores sociais, torna-se imprescindível debater o que o Legislativo brasileiro entende como termos de uso, limites e responsabilidades nesse ramo tecnológico. Esse é o caminho natural quando se trata de regulação legislativa de tecnologias.
A própria Lei Geral de Proteção de Dados levou cerca de oito anos desde a elaboração de sua primeira versão até a sua aprovação. O Marco Civil da Internet, que desde o início de sua tramitação também atraiu olhares do setor empresarial e da sociedade civil organizada, passou por um amplo debate ao longo de sua elaboração, que durou aproximadamente sete anos e contou com plataformas de consultas públicas diretas e participativas. O PL nº 21/2020 de IA, inexplicavelmente, tramitou em regime de urgência e, em menos de seis meses, já foi aprovado pela Câmara dos Deputados.
O processo legislativo deve ser transparente, participativo e colaborativo. As novas tecnologias podem, inclusive, oferecer oportunidades online e seguras de intercâmbio de informações e colaboração pública, possibilitando à população a compreensão sobre as atividades do governo. Nesse ponto, a acessibilidade digital representa um desafio, sendo necessário pensar em formas de conectividade que estimulem a participação cívica para todos. Parlamentos e instituições públicas trabalham melhor quando alinhados com o engajamento cívico.
As iniciativas de Crowdlaw, por exemplo, consistem na elaboração coletiva de uma legislação com o auxílio de ferramentas tecnológicas. Ou seja, um processo pelo qual o Legislativo se volta para a tecnologia como meio de interação com os cidadãos durante a elaboração de projetos de lei e políticas públicas[1].
Exemplos estrangeiros vão desde o aplicativo Mi Senado, que visa aproximar os cidadãos colombianos dos processos legislativos por meio de acesso à informação. Canais de comunicação com senadores e oportunidades de votação em tempo real, passando por processos de envolvimento dos eleitores via web, em construções colaborativas das leis e atos regulatórios na Finlândia e França, até a participação cidadã na construção colaborativa de Constituições na Islândia e na África do Sul[2].
Não à toa, o Congresso Nacional brasileiro implementou plataformas digitais para ampliar o debate, como o caso dos portais E-Democracia[3] e E-Cidadania[4]. Tais iniciativas, no entanto, ainda não têm se mostrado suficientes para democratizar o debate de maneira efetiva, especialmente tendo em vista a baixa influência de múltiplos grupos de pressão que permanecem alijados aos interesses que predominam no Congresso, como representações de consumidores, da sociedade civil, entidades sem fins lucrativos, academia, dentre outros.
É necessário, também, entender que o objetivo da Administração Pública é servir aos cidadãos e gerir a coisa pública. Nesse ponto, a Organização dos Estados Americanos (OEA) elenca três princípios norteadores de um governo aberto: transparência, accountability e participação[5]. É essa a tríade que precisamos quando pensamos em um marco normativo, especialmente nos casos de tecnologia.
A democracia participativa traz como elementos inerentes ao seu desenvolvimento a participação e a igualdade política, demandando que todos os setores sociais compartilhem suas perspectivas e possam influenciar na condução de políticas públicas e na elaboração de leis, beneficiando os interesses envolvidos sem prejudicar direitos fundamentais. A voz democrática é distorcida quando apenas alguns setores são ouvidos e outros são solenemente negligenciados. A distorção participativa no processo legislativo, portanto, é um indicativo de déficit democrático.
Costuma-se chamar de lobby a atividade de monitoramento da legislação em fase de elaboração. O lobby pode ter como objetivo impedir, retardar ou modificar um texto legal ou, ainda, incentivar a aprovação de uma medida considerada positiva. Acontece que é grande o número de cidadãos que não compõem grupos de pressão com força para influenciar o processo legislativo, bem como é baixa a capacidade dos eleitores de monitorar esse procedimento, o que pode tornar restrita a fonte utilizada para a elaboração de regulações tecnológicas.
Algumas pautas sobre a inovação, tais como a do último PL de IA, não costumam despertar mobilizações midiáticas intensas ou convicções profundas no eleitorado. E a ausência de mobilização da opinião pública tende a favorecer a aprovação de projetos de lei motivados por específicos grupos de interesse.
A transparência passa a ser, então, um elemento imprescindível para o fortalecimento democrático e para a mitigação da assimetria informacional e econômica que sucede na interação entre o eleitorado e o Poder Legislativo. Esse contexto, no qual os eleitores passam a não se reconhecer em legislações aprovadas pelo Poder Público, gera uma crise de representatividade política que descredibiliza a própria concepção de Estado. O Estado Brasileiro evidencia-se no interior de uma crise institucional no que tange a um dos papéis essenciais para o regime democrático: a função legislativa.
Corromper uma prática social significa degradá-la. Tratar o Congresso Nacional como um instrumento de lucro, negligenciando seu papel de instituição pública representativa de governo é uma maneira de corrompê-lo. A regulamentação de questões tecnológicas sensíveis é um dos desafios contemporâneos, especialmente tendo em vista os riscos de discriminações, desemprego e impactos na vida privada. Torna-se necessário refletir sobre as fronteiras das big techs e, por isso, a regulação assume papel relevante, com vistas a garantir os direitos fundamentais.
Uma consulta pública bem sucedida depende do diálogo entre o Executivo, Legislativo, setores da sociedade civil, iniciativa privada e da academia, com mapeamento de posicionamentos, contribuições e comentários. O dilema de regular novas tecnologias traz a reflexão sobre a falta de posicionamento diante de empresas privadas, potencializado pela desestrutura do serviço público para lidar com avanços científicos desafiadores e complexos.
Para que o processo legislativo se torne mais flexível e progressivo e para que um marco normativo da IA no Brasil seja adequado, é necessário que os formuladores interajam com um público mais abrangente, caracterizado por agentes com conhecimento a respeito dos temas debatidos, indivíduos que se utilizam das tecnologias e representantes de um universo mais plural de valores, para permitir que o processo regulatório e de políticas acompanhem as rápidas mudanças advindas do desenvolvimento tecnológico sem prejudicar direitos fundamentais[6].
Em cada etapa do processo de elaboração de leis existem diferentes necessidades informacionais. O processo começa com a identificação de problemas. E pode ser beneficiado com a contribuição diversificada daqueles que vivenciaram a experiência. Como, também, daqueles que possuem expertise sobre o tema, possibilitando a aprendizagem sobre situações experimentadas por diversos membros da sociedade, especialmente aqueles que são mais vulneráveis e que não teriam outros meios para apresentar informações[7].
A etapa seguinte seria a da resolução dos problemas identificados, com soluções inovadoras e criativas. Oportunidade em que a expertise reconhecida e legitimada com origem em diversas fontes pode assumir um protagonismo mais ativo. Mas o fato é que, em cada estágio, o aprimoramento dos resultados pode exigir a aferição de ideias e informações múltiplas, tornando imprescindível o enfoque multissetorial na regulação tecnológica[8], o que não vem acontecendo na tramitação do PL nº 21/2020.
Sem a pretensão de esgotar as soluções pertinentes para a questão, esse texto objetiva somente refletir sobre a insuficiência da participação democrática no processo legislativo quando se fala de regulação tecnológica. Reconhecer o problema é o primeiro passo para resolvê-lo.
O direito de eleger representantes é condição necessária para a democracia. Mas apenas exercer o direito de voto não aproveita o potencial democrático de considerar o conhecimento que se multiplica em diversos setores e que pode contribuir para resolver desafios complexos submetidos ao Poder Legislativo, especialmente quando decisões de impacto pretendem ser tomadas rapidamente. Para exercer um papel proativo é necessário ir além do voto.
Gabriela Buarque Pereira Silva
Advogada; Mestra em Direito Público pela Universidade Federal de Alagoas;
Membro do Grupo de Pesquisa Direito Privado e Contemporaneidade (Ufal); Pesquisadora voluntária no Privacy Lab do Cedis/IDP e no Laboratório de Políticas Públicas e Internet (Lapin).
Notas
[1] NOVECK, Beth Simone. Crowdlaw: inteligência coletiva e processos legislativos. ESFERAS. N. 22, 2021, p. 72. Disponível em: https://portalrevistas.ucb.br/index.php/esf/article/view/10887/7391. Acesso em: 4 jan. 2022.
[2] NOVECK, Beth Simone. Crowdlaw: inteligência coletiva e processos legislativos. ESFERAS. N. 22, 2021, p. 72. Disponível em: https://portalrevistas.ucb.br/index.php/esf/article/view/10887/7391. Acesso em: 4 jan. 2022.
[3] BRASIL. E-Democracia. Disponível em: https://edemocracia.camara.leg.br/. Acesso em: 31 dez. 2021.
[4] BRASIL. E-Cidadania. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ecidadania. Acesso em: 31 dez. 2021.
[5] ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Hacia el gobieno aberto:Una caja de herramientas. Disponível em: http://www.gigapp.org/administrator/components/com_jresearch/files/publications/FINAL%20Caja%20de%20Herramientas.pdf Acesso em: 31 dez. 2021.
[6] NOVECK, Beth Simone. Crowdlaw: inteligência coletiva e processos legislativos. ESFERAS. N. 22, 2021, p. 75. Disponível em: https://portalrevistas.ucb.br/index.php/esf/article/view/10887/7391. Acesso em: 4 jan. 2022.
[7] NOVECK, Beth Simone. Crowdlaw: inteligência coletiva e processos legislativos. ESFERAS. N. 22, 2021, p. 77. Disponível em: https://portalrevistas.ucb.br/index.php/esf/article/view/10887/7391. Acesso em: 4 jan. 2022.
[8] NOVECK, Beth Simone. Crowdlaw: inteligência coletiva e processos legislativos. ESFERAS. N. 22, 2021, p. 77. Disponível em: https://portalrevistas.ucb.br/index.php/esf/article/view/10887/7391. Acesso em: 4 jan. 2022.
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