Nos dias 19 e 20 de maio, no Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, ocorreu a IX Jornada de Direito Civil, em comemoração aos vinte anos de instituição da Lei 10.406/2002 e da própria instituição das Jornadas. Sob a coordenação geral do Ministro Jorge Mussi, vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça e diretor do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, e uma coordenação científica formada pelos Ministros Luis Felipe Salomão, Paulo de Tarso Sanseverino e Marco Aurélio Bellizze, o trabalho ocorreu mediante divisão em sete comissões distintas, por conta da inclusão da nova comissão de direito digital e novos direitos.
Cada comissão contava com estudantes, magistrados, membros do Ministério Público, advogados e juristas de notória especialização, que se dedicaram a avaliar cada uma das 915 proposições encaminhadas, quantidade que representa quase o triplo da média de proposições enviadas nas Jornadas anteriores. Nas palavras do ministro Luis Felipe Salomão, “as Jornadas possibilitam – por meio de profunda e democrática atividade dialógica – expor a compreensão moderna do arcabouço normativo, temperado pelo que há de mais inovador na comunidade científica”.
Nos últimos anos, os enunciados aprovados nas Jornadas servem como norte interpretativo para magistrados de todas as instâncias, na construção de importantes decisões, em muitos casos, precedentes que contribuíram para a consolidação do entendimento de nossos Tribunais, além de pautar diversos trabalhos científicos, cumprindo os objetivos traçados pelo saudoso Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior, um dos idealizadores desta iniciativa, significativamente importante para o desenvolvimento da doutrina e da jurisprudência civil em nosso país.
Cumpre apresentar alguns dos enunciados aprovados, destacando ao menos um de cada uma das comissões de trabalho, lembrando que eles que precisam ser interpretados a partir da justificativa encaminhada com a proposição, para uma melhor compreensão de sua necessidade e alcance.
Destaque-se da Comissão de Parte Geral e Normas de introdução ao direito brasileiro, o Enunciado 646, relativo ao art. 13 do CC/02, com o seguinte teor: “a exigência de autorização de cônjuges ou companheiros, para utilização de métodos contraceptivos invasivos, viola o direito à disposição do próprio corpo”. Colhe-se da justificativa que “as relações familiares não impedem a disposição dos direitos da personalidade pelos cônjuges, tendo em vista seu caráter personalíssimo, ou seja, mesmo em uma relação afetiva como o casamento, o corpo da mulher não deixa de ser um atributo personalíssimo seu, oponível contra todos, inclusive seu marido. Controlar o próprio corpo é inerente ao exercício deste direito da personalidade”.
Passando para a Comissão de Obrigações, deve-se ressaltar o teor do Enunciado 649, cuja redação é a seguinte: “o art. 421-A, inc. I, confere às partes a possibilidade de estabelecerem critérios para a redução da cláusula penal, desde que não seja afastada a incidência do art. 413”, que dialoga diretamente com o enunciado 355 da IV Jornada; este destacava a natureza de preceito de ordem pública do disposto no art. 413 do CC/02, impedindo as partes de renunciar a possibilidade de redução da cláusula penal. De fato, colhe-se da justificativa que “a faculdade conferida pelo art. 421-A, inc. I, está restrita ao estabelecimento de parâmetros para a interpretação dos ‘pressupostos’ de uma intervenção, o que difere do afastamento da possibilidade de intervenção”. Por tal razão, não é possível às partes o afastamento convencional do art. 413.
É na interlocução e diálogo entre as normas do Código Civil e o regramento dispensado às relações de consumo que se encontra o enunciado que merece destaque na comissão de Contratos. Nos termos do verbete 650, “o conceito de pessoa superendividada, previsto no art. 54-A, § 1º, do Código de Defesa do Consumidor, deve abranger, além das dívidas de consumo, as dívidas em geral, de modo a se verificar o real grau de comprometimento do seu patrimônio mínimo para uma existência digna”. Trata-se de proposição que enfrenta a constatação de que apesar de a Lei 14.181/2021 ter sido editada com o propósito de resolver a problemática relacionada ao superendividamento das pessoas, não supriu totalmente a lacuna normativa, pois teve seu âmbito de incidência restringido apenas para as relações de consumo, tratando o problema, portanto, apenas de forma parcial, visto que as dívidas cíveis em geral não seriam abarcadas pela nova lei.
Seguindo para a Comissão de Responsabilidade Civil, merece destaque o Enunciado 662, relativo ao tratamento conferido pelo art. 932 do CC/02 à responsabilidade pelo fato de outrem. Nos termos do enunciado aprovado, “a responsabilidade civil indireta do curador pelos danos causados pelo curatelado está adstrita ao âmbito de incidência da curatela tal qual fixado na sentença de interdição, considerando o art. 85, caput e § 1º, da Lei n. 13.146/2015”. Conforme descrito na justificativa, o curador “tem os limites do seu múnus fixados em sentença, sua responsabilidade civil indireta sobre os danos causados pelo curatelado deve ser apurada de modo equivalente. Não lhe cabe responder por danos que não guardam correlação com os limites da curatela”.
Na Comissão de Direito das Coisas e Propriedade Intelectual, o destaque vai para a proposição aprovada sobre o direito real de laje, disciplinado pelo art. 1.510-A do CC/02. Segundo o novo enunciado: “é possível o registro do direito real de laje sobre construção edificada antes da vigência da lei, desde que respeitados os demais requisitos previstos tanto para a forma quanto para o conteúdo material da transmissão”. Conforme a justificativa, “não há qualquer restrição a que o titular da construção-base, objetivando regularizar situação previamente existente (laje edificada), venha a estabelecer novo registro”.
Entre os temas analisados pela Comissão de Famílias e Sucessões, destaca-se o direito à convivência, que aparece como fundamento para os Enunciados 671 e 672. Enquanto o primeiro dispõe que “a tenra idade da criança não impede a fixação de convivência equilibrada com ambos os pais”, o segundo trata da convivência estendida a outros integrantes do núcleo familiar ao disposto que “o direito de convivência familiar pode ser estendido aos avós e pessoas com as quais a criança ou adolescente mantenha vínculo afetivo, atendendo ao seu melhor interesse”, o que ensejou o cancelamento do Enunciado 333, que havia sido aprovado na IV Jornada.
De fato, o regime de convivência da criança com os genitores deve ser equilibrado e o mais amplo possível, contemplando, conforme descrito na justificativa da proposta aprovada, “a divisão equânime de tempo indicada pela Lei 13.058/2014 (art. 1.583, § 2º, CC)”. A lei não faz menção ou restrição à idade da criança como limitador ao direito de convivência. Ademais, o direito à convivência familiar deve alcançar todos aqueles que mantêm vínculo afetivo com a criança ou com o adolescente.
Resta comentar alguns dos enunciados aprovados pela nova Comissão de Direito Digital. Várias das proposições aprovadas dialogam com o microssistema da proteção de dados pessoais, exigindo maior nível de especialização para a adequada compreensão dos temas em estudo, o que talvez justifique um texto futuro, abordando especificamente tais assuntos.
Para os fins deste artigo, merece destaque o teor do Enunciado 677, segundo o qual “a identidade pessoal também encontra proteção no ambiente digital”. Neste ponto, em que as demandas atualmente analisadas no âmbito do Poder Judiciário ainda estão incipientes no que se refere ao marco regulatório da proteção de dados pessoais, é essencial que alguns enunciados enfrentem a questão da influência das novas tecnologias no direito privado. Conforme preconiza a justificativa da referida proposição, “o respeito à alteridade e às peculiaridades da relação entre o eu e o outro exige, agora sob os contornos do componente tecnológico, tratamento conformado com os valores constitucionais”.
Que as Jornadas possam seguir cumprindo o seu papel, persistindo na busca pela melhor compreensão de um direito dinâmico, apto a enfrentar as diversas vicissitudes de relacionamentos mais complexos e sujeitos aos impactos das novas tecnologias.