O mito da independência de esferas na responsabilidade médica: o impacto da decisão ética na responsabilidade civil e criminal

23 de agosto de 2022

Coluna Direito Civil

Tema originalmente abordado na palestra do evento “Temas Contemporâneos em responsabilidade Civil Médica”, organizado pela Comissão de Responsabilidade Civil da OAB/PR e o Grupo de Pesquisas Miguel Kfouri Neto.

 

Desde o início da formação jurídica, o futuro jurista é apresentado à teoria da independência de esferas de responsabilidade, com o consequente entendimento de que um mesmo ato pode ser analisado sob múltiplas perspectivas e que tais perspectivas não são, necessariamente, dialógicas.

A referida teoria aponta que um mesmo ato pode repercutir na esfera criminal, administrativo-trabalhista, ética e cível. Sob tal perspectiva, decisões condenatórias ou absolutórias de uma esfera não tem o condão de impactar negativa/positivamente nas demais esferas.

O Código Civil dispõe que:

Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.

 

Há, no ordenamento jurídico brasileiro, uma exceção à teoria da independência das esferas de responsabilidade, conforme previsão no Código de Processo Penal :

Art. 65.  Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

 

Verifica-se que, o próprio ordenamento já estabelece, de forma apriorística, que a separação das esferas é relativa, na medida em que o juízo cível tem o dever de considerar as decisões criminais que reconheçam o estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal ou exercício regular de direito, além de decisões que já tenham decidido sobre a autoria e/ou existência do fato.

Considerando que o presente artigo centra-se na judicialização da Medicina, é importante analisar a disposição sobre o tema no Código de Processo Ético Profissional editado pelo CFM:

Art. 7º O processo e julgamento das infrações às disposições previstas no Código de Ética Médica (CEM) são independentes, não estando em regra, vinculado ao processo e julgamento da questão criminal ou cível sobre os mesmos fatos.

§ 1º A responsabilidade ético-profissional é independente das esferas cível e criminal.

§ 2º A sentença penal absolutória somente influirá na apuração da infração ética quando tiver por fundamento o art. 386, incisos I (estar provada a inexistência do fato) e IV (estar provado que o réu não concorreu para a infração penal) do Decreto-Lei nº 3.689/1941 (CPP).

 

Ou seja, no âmbito ético da Medicina, as decisões criminais, a priori, só influenciam no debate ético se apontarem para a inexistência do fato ou reconhecerem que o réu não colaborou para a prática criminosa.

Nos tempos modernos, há uma evolução das relações médico-paciente para um ambiente de excessiva litigiosidade, com repercussões nas múltiplas esferas de responsabilidade. De acordo com dados do CNJ, quase 35 mil novos processos com o tema “erro médico” foram propostos no ano de 2021.

Advogados que atuam na área do Direito Médico percebem que, há alguns anos, uma nova estratégia tem sido usada por alguns litigantes: a propositura, paralela, de ações judiciais cíveis sobre erro médico, representações/denúncias e notícias crimes perante o Ministério Público / Polícia Civil e de denúncias no âmbito ético do CRM/CFM.

A estratégia de litigar na esfera ética pode ser encarada como um mecanismo de produção de provas que auxiliarão na construção de uma possível condenação cível/criminal. E, neste contexto, estar-se-ia diante de uma reanálise da estrutura da responsabilidade civil, na medida em que a tradicional visão de separação e independência de esferas é remodelada para uma zona de influência e convergência de interesses processuais.

Cada um dos ramos jurídicos é tradicionalmente tido como uma caixa isolada e hermeticamente fechada que não dialoga com as demais. Um civilista, a rigor, ficaria restrito à manifestação na esfera jurídico-civil, ao passo que um criminalista atuaria exclusivamente na esfera criminal, o que poderia ser representado da seguinte forma:

Visão Tradicional do Fenômeno Jurídico

Fonte: autoria própria[1]

No passado, a esfera ética era negligenciada, inclusive sem a participação de defesa técnica de um advogado. Acontece que a forma de tratamento jurídico atual é distinta. Um médico denunciado passa a responder por múltiplas esferas de responsabilidade e tem que se preocupar com todas as esferas, na medida em que uma condenação/absolvição em uma área certamente afetará as demais.

Enquanto advogado atuante exclusivamente na defesa médica, tenho verificado que, não raras as oportunidades, os denunciantes no âmbito do CRM/CFM são a Polícia Civil, Ministério Público e os próprios interessados. E que, quando um profissional médico negligencia sua defesa na esfera ética, ele está, consequentemente, negligenciando sua defesa nas demais esferas.

Desta forma, a atual relação da responsabilidade civil não pode ser encarada da forma tradicional, sendo necessário o redesenho das responsabilidades:

Comunicação entre os Ramos do Direito

Fonte: autoria própria[2]

A partir de uma leitura da imagem acima, é possível afirmar que as partes estão no centro do sistema, mas sujeitas as zonas de influência de um processo no outro. A existência de microssistemas ou ramos distintos não pode ser interpretada como falta de unidade, mas como uma multiplicidade de responsabilidade dialógica.[3]

O caminho atual tem sido inverso. Ao invés de se aguardar a decisão criminal para posterior responsabilização ética ou cível, visto que aquela pode fazer coisa julgada em relação às demais, o Poder Judiciário, Polícia Civil e Ministério Público têm utilizado as decisões do Conselhos Regionais de Medicina como forma de subsidiar as suas próprias decisões, descontruindo, assim, a visão tradicional do fenômeno de responsabilidade.

A suposta natureza técnica e célere do processo ético profissional em relação ao processo judicial favorece a provocação do CRM/CFM em busca de uma fonte decisória e subsídio para a formação do livre convencimento motivado. Desta forma, algumas decisões judiciais apontam para as manifestações éticas como meio de colaborar com o julgamento do mérito no âmbito cível ou criminal.

A título exemplificativo, decidiram TJSP, TJPB e TJPR, respectivamente:

Imperícia é a falta de aptidão para o exercício da profissão, mas o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, órgão encarregado da fiscalização do exercício da medicina no Estado, avaliou a conduta do réu e nada apontou com relação à suposta inaptidão dele para o exercício da profissão, não cabendo a nós, leigos, concluir o contrário. (TJSP – Apelação 0000826-52.2012.8.26.0213. Relator: Francisco Orlando de Souza, Data de Julgamento: 13 de dezembro de 2021. 2ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo).

Havendo relação de consumo a responsabilidade do médico é subjetiva, conforme o § 4º, do art. 14 do CDC, devendo haver demonstração da culpa do profissional liberal no evento danoso, como no presente caso, demonstrado através das provas dos autos e sindicância do CRM e CFM

(…)

Agindo assim, me convenço que a médica agiu com imperícia no caso, pois se tivesse atendido a paciente adequadamente a primeira vez poderia ter evitado o infarto que ocorreu horas depois.

Esse também é o entendimento técnico exposto nos autos, onde restou atestado tanto pelo Conselho Regional de Medicina como pelo Conselho Federal de Medicina, uma instância superior, que a médica agiu com imperícia. (TJ-PB 00007905920058150181 PB, Relator: DES. MARCOS CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE, Data de Julgamento: 12/11/2019, 3ª Câmara Especializada Cível)

Por fim, corroborando a inexistência de responsabilidade, o Conselho Regional de Medicina  entendeu pelo arquivamento da sindicância instaurada para apuração dos fatos, concluindo que não há indícios de infração ética e que o médico réu apelante “agiu com dedicação, com perícia, prudência e diligência, prestou os atendimentos de pós-op., inclusive, realizou o procedimento complementar, ou seja, um dos meios disponíveis e recomendados que o caso. (TJPR, AC 0007821-36.2018.8.16.0056, Relator: Clayton De Albuquerque Maranhão, Data de Julgamento: 14 de outubro de 2021)

 

Logo, o cenário contemporâneo da responsabilidade não pode ser encarado de forma isolada das demais manifestações ético-jurídicas. Processos, independentemente da natureza, têm a capacidade de influenciar e subsidiar condenações, notadamente aqueles juízos emitidos por órgãos técnicos-éticos. Cabe aos denunciantes/autores e denunciados/réus se atentarem para as repercussões de cada um dos processos, de modo que a atuação deve ser estratégica e coordenada entre as múltiplas esferas do Direito com o objetivo de favorecer uma visão macro de responsabilização.

 

Igor de Lucena Mascarenhas Advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela Universidade Federal da Bahia e Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Sócio do Dadalto & Mascarenhas Sociedade de Advogados.

 

[1] MASCARENHAS, Igor de Lucena. Eutanásia e seguro de vida: análise do direito à percepção da indenização. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 82

[2] MASCARENHAS, Igor de Lucena. Eutanásia e seguro de vida: análise do direito à percepção da indenização. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 83

[3] SOARES, Felipe Ramos Ribas; MATIELI, Louise Vago; DUARTE, Luciana da Mota Gomes de Souza. Unidade do ordenamento na pluralidade das fontes: uma crítica à teoria dos microssistemas. In: SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos Nelson. Direito Civil Constitucional. São Paulo: Atlas. p. 72

Deixar uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *