Novos desafios para a compreensão da vulnerabilidade no âmbito das relações de consumo

27 de maio de 2025

O reconhecimento da existência de vulnerabilidades em relações ju­rídicas ensejou o desenvolvimento de diversos microssistemas legislativos que tiveram por escopo possibilitar a adequada proteção de indivíduos em sua esfera mais exposta a situações de extrema assimetria. Exemplo disso são os diplomas relativos ao Estatuto do Idoso (Lei n.º 10.741/2023), ao Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n.º 13.146/2016), ao Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069/1990) e ao pioneiro desses microssistemas de proteção no Brasil, o Código de Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078/1990)[1].

As relações de consumo passaram por profundas transformações ao longo do tempo, deslocando-se de uma concepção fortemente vinculada ao ideário liberal de autonomia privada para um modelo que reconhece a potencial exploração do consumidor pelo fornecedor, com consequente quebra da paridade entre as partes envolvidas na relação de consumo.

A desigualdade estrutural entre as posições jurídicas e sociais de fornecedores e consumidores, já amplamente reconhecida nas relações comerciais tradicionais (ou analógicas), torna-se ainda mais evidente no contexto do comércio digital. Esse novo ambiente não apenas intensifica os fatores clássicos de vulnerabilidade do consumidor, como também introduz riscos inéditos e/ou o agravamento de problemas já conhecidos, exigindo por parte de todos os atores envolvidos no sistema de defesa dos consumidores uma reavaliação dos instrumentos de proteção existentes.

Carlos Nelson Konder propõe que a vulnerabilidade seja compreendida como uma categoria jurídica autônoma, legitimadora da intervenção estatal em relações de caráter predominantemente privado, com o objetivo de reequilibrar as desigualdades existentes e promover uma efetiva igualdade material entre os sujeitos[2].

Nesse ponto, impende salientar que a noção de vulnerabilidade vem sendo ressignificada na atualidade, priorizando-se aspectos existenciais da relação jurídica com o escopo de promover o adequado anteparo do integrante da relação consumerista em situações de desigualdade de oportunidade, fragilidades ou deficiência na autodeterminação[3].

É digna de nota a chamada vulnerabilidade informacional, condição que vem ganhando contornos e características próprias nos últimos anos. Os fornecedores, para além de serem especializados nos serviços que oferecem e de ostentarem maior capacidade econômica, ainda decidem quais informações devem ser repassadas aos consumidores a respeito das negociações das quais participam.

Essa assimetria é agravada no ambiente digital por meio do uso intensivo de tecnologias de rastreamento de comportamento, voltadas ao perfilamento algorítmico direcionado ao desenvolvimento de técnicas persuasivas que influenciam a tomada de decisão dos consumidores.

A dificuldade de acesso à informação clara, precisa e acessível, assume contornos mais complexos quando inserida em um contexto de decisões automatizadas, normalmente marcadas pela ausência de transparência sobre os critérios utilizados para a personalização de conteúdos e ofertas. Não fosse o bastante, a disseminação de práticas publicitárias dissimuladas em ambientes digitais, especialmente nas redes sociais e plataformas de vídeo, utilizando da colaboração de influenciadores digitais agravam o cenário de manipulação de nossas escolhas de consumo.

Diante da incapacidade dos consumidores de compreenderem ou contestarem os mecanismos automatizados que determinam sua experiência de consumo, a boa-fé objetiva que deveria permear tais relações, resta comprometida, em especial quando verificamos quão frágil é o consentimento obtido de usuários no ambiente digital, seja pelo predomínio de práticas contratuais padronizadas, seja pelo emprego de dark patterns, vale dizer, interfaces deliberadamente projetadas e amplamente divulgadas para induzir escolhas desfavoráveis ao consumidor.

Difícil proteger a autodeterminação diante de tanta obscuridade algorítmica, que se apresenta como um benefício de personalização, um respeito a nossas preferências, quando percebemos que a realidade atual é de baixa compreensão de circunstâncias relevantes para que possamos exercer efetivamente nossa liberdade de escolha.

O cenário atual é de dependência tecnológica, marcada pela assimetria de poder contratual e técnico. E não se pode esquecer daqueles considerados excluídos digitais, quer seja pelo acesso precário à internet ou pela ausência de educação para as relações em meio eletrônico. Aqui não se incluem apenas idosos e pessoas com deficiência. O âmbito é bem maior quando consideramos grupos sociais periféricos com baixa escolaridade e até mesmo sem acesso à internet.

Impõe-se um esforço contínuo para interpretar o sistema protetivo das relações de consumo de acordo com a realidade de um mercado marcado pelas transformações da vida digital.


Notas

[1] Sobre o tema, seja permitido remeter ao artigo que publiquei em coautoria com João Pedro Bastos de Oliveira, denominado “A concepção de vulnerabilidade no ordenamento jurídico pátrio” In Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil – v. 21 – n. 125 – março/abril 2025, p. 121-135.

[2] KONDER, Carlos Nelson. Vulnerabilidade patrimonial e vulnerabilidade existencial: por um sistema diferenciador. Revista de Direito do Consumidor, v. 99, p. 101-123, 2015.

[3] Neste ponto, seja permitido remeter a EHRHARDT JR., Marcos Augusto de Albuquerque; LÔBO, Fabíola Albuquerque. Vulnerabilidade e sua compreensão no direito brasileiro. In: LÔBO, Fabíola Albuquerque; EHRHARDT JR., Marcos (coord.) Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2021.


Marcos Ehrhardt Júnior

Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor de Direito Civil da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e do Centro Universitário Cesmac. Editor da Revista Fórum de Direito Civil (RFDC). Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil). Diretor Nordeste e Presidente da Comissão de Enunciados do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Advogado. E-mail: contato@marcosehrhardt.com.br.

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