Doação como adiantamento de herança: a mudança esquecida

29 de outubro de 2024

A repetição acrítica de concepções clássicas é capaz de nos surpreender quando retomamos às bases e passamos a analisar de maneira técnica questões elementares consignadas no corpo da legislação. Seguir propagando afirmações que não estão em consonância com o que consta do texto legislativo como se estivessem corretas é conduta temerária que não pode ser perpetuada sob pena de ruína dos preceitos norteadores de nosso Estado Democrático de Direito[1].

Um descuido inadmissível desse jaez dá ensejo a que possamos discutir “novidades” legislativas em um Código Civil com mais de 20 anos e que vem sendo objeto de projeto visando a sua atualização.

Uma das alterações que podem ser constatadas entre o texto do Código Civil de 1916 e o texto vigente está no contrato de doação, mais especificamente naquele realizado de um ascendente para seu filho.

O disposto no art. 1.171 do Código Civil de 1916 determinava que “A doação dos pais aos filhos importa adiantamento da legítima” enquanto o seu correlato na codificação atualmente em vigor traz que “A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança” (art. 544).

A mais singela leitura do texto revogado e do atual permite notar que existem duas distinções claras entre os dispositivos: uma quanto aos beneficiários da liberalidade e outra referente à natureza do que se está adiantando.

Anteriormente, apenas encerraria a ideia de um adiantamento de caráter sucessório a liberalidade realizada em favor de filhos enquanto a nova previsão traz esse efeito para aquelas que tenham como destinatários todos os descendentes, bem como o cônjuge. A outra distinção evidente é que o texto revogado previa que tal sorte de doação encerrava um adiantamento de legítima e atualmente essa doação importa em adiantamento da herança.

São diferenças inquestionáveis, pois gera uma manifesta ampliação de quem há de estar no polo subjetivo da relação contratual estabelecida, já que descendentes e cônjuge atingem uma gama de pessoas maior do que a previsão de outrora destinada apenas aos filhos. Também é patente a distinção existente entre legítima e herança, institutos que possuem concepções específicas e que não se confundem.

Quanto à mudança dos donatários, há considerações da nossa doutrina e jurisprudência. Contudo, a outra distinção foi solenemente ignorada durante anos a fio. Se é inquestionável que herança e legítima são diferentes, por qual motivo é tão difícil se entender que o seu adiantamento também o é?

Em linhas bastante panorâmicas, tem-se que herança é o conjunto patrimonial deixado pelo de cujus, ou “a universalidade de relações jurídicas (universitas rerum) deixadas pelo falecido”[2]. De outro lado, a legítima há de ser compreendida como uma parcela específica da herança, a ser destinada obrigatoriamente a herdeiros necessários, da qual esse não podem ser privados salvo por indignidade ou deserdação[3].

Impossível se conceber que são, portanto, palavras a serem consideradas como sinônimo, de sorte que se faz inadmissível que a inteligência do disposto no antigo texto que versava sobre a doação em favor de filhos seja a mesma daquele que atualmente trata da doação em favor de descendentes e cônjuge.

Incomodado com a ausência de atenção da doutrina e da jurisprudência com relação a alteração tão relevante no texto legal, o tema deu base ao livro “Sucessões: Colação e Sonegados”, publicado em 2022, bem como a um artigo científico, aprofundando a discussão, denominado “Doação de ascendente para descendente ou de um cônjuge/companheiro ao outro: antecipação de herança e não de legítima”, publicado no v.3, n.2, da Revista Conversas Civilísticas.

Essencialmente, o que se deve extrair do disposto no art. 544 do Código Civil é que ao se “estabelecer que as doações para descendentes ou cônjuge/companheiro importam em adiantamento de herança” o ordenamento jurídico “imprime nesse negócio jurídico uma nova caraterística, transformando-o em uma transmissão mortis causa com efeitos anteriores à ocorrência do evento morte, e que, para que seja mantida, dependerá de que efetivamente haja herança em favor do donatário que iguale ou supere o que foi doado”[4].

Em que pese toda a complexidade evidente de tal assertiva os manuais e legislação comentada ,apenas se restringem a dizer que o art. 544 do Código Civil é importante para as análises referentes à colação, não conferindo a devida amplitude ao preceito legal. Ignoram que, em verdade, o donatário “não está recebendo doação, mas sim herança”[5].

Ainda que se possa discorrer sobre a possibilidade de que o doador estabeleça que a sua liberalidade não se aterá aos parâmetros dispostos no corpo do art. 544 do Código Civil[6], é de se concluir que a ausência de manifestação impõe a incidência da presunção firmada no referido artigo, fazendo com que a doação cujo destinatário seja o descendente ou o cônjuge configure um adiantamento daquilo que essa pessoa fará jus em decorrência do falecimento desse doador.

E o fato de se tratar de um adiantamento de herança e não de legítima, como se determinava outrora, torna premente a constatação de que a morte do doador conferirá caracteres especiais à sucessão com o retorno do que foi doado para o inventário, mais especificamente à herança.

A atual indicação do locus ao qual o montante antecipado haverá de ser reincorporado para fins sucessórios faz com que haja uma ampliação dos interessados na consideração de tal doação no inventário. Por retornar para a herança é natural que todo aquele que possa ter algum interesse juridicamente relevante no patrimônio do falecido tenha legitimidade para exigir que o que foi adiantado a título de herança seja considerado na sucessão.

Inicialmente, por tais doações comportarem adiantamento de herança e não mais de legítima, há de se indicar que, por motivos distintos, três são os interessados na exata definição do patrimônio do falecido: seus credores, os herdeiros testamentários e os herdeiros necessários.

Os credores tem direito que precede ao direito dos herdeiros sobre o patrimônio positivo do falecido, de sorte que, como se denota de toda a estrutura de nosso ordenamento jurídico, os sucessores apenas serão destinatários de algum benefício econômico em decorrência da morte de outrem caso as dívidas do falecido não sejam superiores aos bens por ele deixados. Assim os credores do morto passam a ter legítimo interesse em que o que fora adiantado a título de herança seja retornado para a sucessão a fim de que possa ter seu crédito satisfeito.

Como muito bem menciona Rolf Madaleno “não há herança quando toda ela está absorvida pelas dívidas deixadas pelo morto”[7], de forma que se faz inconcebível que se possa ponderar a existência de algum herdeiro beneficiado com herança recebida de forma adiantada enquanto houver débito do falecido inadimplido, de sorte que “a prevalência da doação realizada em adiantamento de herança pressupõe que o doador tenha deixado herança a ser partilhada entre seus herdeiros, sob pena de o donatário perder a propriedade do que lhe foi doado/adiantado”[8].

Os herdeiros testamentários também apresentam legítimo interesse em que o que fora adiantado a título de herança retorne para o inventário, vez que por não mais ser uma antecipação de legítima a consideração do que foi doado tem o poder de alterar o monte-mor, o que impactará na base sobre a qual incidirá o percentual destinado ao herdeiro testamentário, bem como na definição de qual será a parte disponível e indisponível[9].

Se o que foi adiantado tem que ser retornado para o lugar de onde foi retirado, é imperioso que o que foi doado para descendente ou cônjuge venha a ser agregado à herança bruta[10], sendo certo que o correto estabelecimento desse montante é primordial para a definição do importe que caberá ao herdeiro testamentário ao fim do inventário.

O último dos interessados nas doações antecipatórias de natureza sucessória são os herdeiros necessários que, ordinariamente, constituem-se, para a doutrina clássica e para a jurisprudência, nos únicos interessados nessas liberalidades praticadas pelo falecido, em decorrência do direito que lhes é franqueado pela lei de igualação das legítimas em sede de colação[11].

Visando garantir que os destinatários de legítima sejam contemplados com um quinhão idêntico da herança, impõe-se o dever de colacionar, cabendo-lhes trazer à sucessão aquilo que eventualmente tenham recebido em adiantamento de herança, a fim de serem igualadas as respectivas legítimas[12], sob pena de sonegados.

Ainda que a alteração legislativa existente entre o texto codificado de 1916 e o presente no art. 544 do Código Civil de 2002 tenha sido totalmente desprezada durante todos esses anos fica bastante evidente que se trata de uma mudança de elevado impacto que não pode seguir sendo ignorada.

Interessante notar que quando da abertura de prazo para a apresentação de propostas e sugestões para a atualização do Código Civil, em anteprojeto apresentado em meados de 2024 ao Senado Federal, encaminhei, ao seu relator diretamente, bem como a alguns integrantes das comissões, e também pelas vias oficiais, considerações sobre o disposto no art. 544, com os desdobramentos dele decorrentes. Apesar de não ter recebido qualquer devolutiva, o que se vislumbra do texto aprovado no relatório final é: “Art. 544. A doação de ascendente a descendente importa adiantamento de legítima, respeitadas as exigências legais para a dispensa de colação”.

Apesar de particularmente ter uma série de objeções ao novo texto sugerido, é de se notar que a proposta pugna pelo retorno da expressão “legítima” em substituição de “herança”, sem qualquer explicação quanto aos motivos que a nortearam, reconhecendo que estas são distintas, afastando qualquer sorte de possível ponderação de que a alteração do texto trazida pelo Código Civil de 2002 seja irrelevante.

Com isso, segue o questionamento já apresentado anteriormente: qual a dificuldade de meus colegas doutrinadores e dos magistrados em reconhecer que a doação em favor dos descendentes ou do cônjuge importa em adiantamento de herança e não mais de legítima?


Notas

[1] CUNHA, Leandro Reinaldo da. Direito civil pensado. a importância de não se repetir velhos dogmas de forma indiscriminada. Revista Conversas Civilísticas. v.1, n.2 p. I – IV, 2021.

[2] CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito das sucessões. 5. ed. São Paulo: Ed. RT, 2014. p. 26.

[3] CUNHA, Leandro Reinaldo da. Sucessão: Colação e sonegados. Indaiatuba: Editora Foco, 2022, p. 11.

[4] CUNHA, Leandro Reinaldo da. Doação de ascendente para descendente: antecipação de herança e não de legítima. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 3, n. 2, 2023, p. 191.

[5] CUNHA, Leandro Reinaldo da. Doação de ascendente para descendente: antecipação de herança e não de legítima. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 3, n. 2, 2023, p. 168.

[6] CUNHA, Leandro Reinaldo da. Doação de ascendente para descendente: antecipação de herança e não de legítima. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 3, n. 2, 2023, p. 169.

[7] MADALENO, Rolf. Sucessão legítima. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 369.

[8] CUNHA, Leandro Reinaldo da. Doação de ascendente para descendente: antecipação de herança e não de legítima. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 3, n. 2, 2023, p. 175.

[9] CUNHA, Leandro Reinaldo da. Doação de ascendente para descendente: antecipação de herança e não de legítima. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 3, n. 2, 2023, p. 186.

[10] CUNHA, Leandro Reinaldo da. Doação de ascendente para descendente: antecipação de herança e não de legítima. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 3, n. 2, 2023, p. 189.

[11] CUNHA, Leandro Reinaldo da. Sucessão: Colação e sonegados. Indaiatuba: Editora Foco, 2022.

[12] ITABAIANA DE OLIVEIRA, Arthur Vasco. Tratado de Direito das Sucessões. São Paulo: Max Limonad, 1952, p. 824.


Referências

CUNHA, Leandro Reinaldo da. Doação de ascendente para descendente: antecipação de herança e não de legítima. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 3, n. 2, p. 164–195, 2023.

CUNHA, Leandro Reinaldo da. Direito civil pensado. a importância de não se repetir velhos dogmas de forma indiscriminada. Revista Conversas Civilísticas. v.1, n.2 p. I – IV, 2021.

CUNHA, Leandro Reinaldo da. Sucessão: Colação e sonegados. Indaiatuba: Editora Foco, 2022.

ITABAIANA DE OLIVEIRA, Arthur Vasco. Tratado de Direito das Sucessões. São Paulo: Max Limonad, 1952.

MADALENO, Rolf. Sucessão legítima. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.


Leandro Reinaldo da Cunha

Professor Titular-Livre de Direito Civil da Universidade Federal da Bahia (graduação, mestrado e doutorado). Pós-doutorado e doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP e Mestre em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos – UNIMES. Líder dos grupos de pesquisa “Direito e Sexualidade” e “Conversas Civilísticas”. Vice-presidente e investigador da Rede VCC – Visões Contemporâneas sobre a Contemporaneidade, rede internacional interdisciplinar de estudos, inserida no contexto das Redes Temáticas Internacionais da Universidade de Coimbra. E-mail leandroreinaldodacunha@gmail.com.

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