Até onde deve ir a livre disposição de direitos da personalidade nas redes sociais? | Coluna Direito Civil

19 de outubro de 2021

O conflito entre direitos da personalidade e liberdade de expressão não representa, em si, algo novo no debate jurídico. A proteção da intimidade e da privacidade há tempos impõe limites à atividade jornalística e à veiculação de notícias sobre pessoas, sendo usados como critérios de ponderação a notoriedade das figuras retratadas e dos fatos noticiados. Todavia, a contemporaneidade traz um novo contexto, que demanda uma releitura desses tradicionais critérios: o contexto das redes sociais.

Nesse ambiente, não há meramente a circulação de informações sobre fatos relevantes ou sobre pessoas notórias. A mais banal das pessoas pode ser retratada na mais trivial das atividades. A selfie na saída do trabalho, o check-in na chegada da academia, a opinião compartilhada sobre o novo barzinho da esquina, ou até mesmo os stories gravados no percurso entre um ponto e outro da cidade: tudo é passível de ser veiculado no espaço virtual.

Diante disso, propõe-se a reflexão: de que maneira seria possível harmonizar a tutela dos direitos de personalidade com essa irrestrita exposição inerente às redes sociais? Parece juridicamente tolerável que imagens, vídeos, opiniões e outras porções da personalidade dos usuários de redes sociais fiquem indelevelmente registrados em espaços acessíveis ao público? Se os atos de disposição sobre direitos da personalidade (que são oponíveis inclusive em face do próprio titular) não podem implicar em renúncia a tais direitos, soa razoável estabelecer-se limites às liberdades dos usuários de redes sociais quanto à sua própria imagem e privacidade.

E restringir a liberdade dos titulares de direitos sempre foi a tônica dos direitos da personalidade. É interessante lembrar que o liberalismo exacerbado resultou em renúncias inimagináveis a direitos nucleares, de modo que a incorporação da sistemática dos direitos fundamentais no campo das relações privadas surge como medida que buscava estabelecer “barreiras ao canibalismo da vontade”[1]. Assim, também a liberdade de expressão entra no bojo dessas restrições, pois essa liberdade não pode ser usada em detrimento da realização da pessoa.

A análise de certos casos torna pode tornar essa discussão mais contextualizada.

Pensemos, por exemplo, que nas redes sociais é bastante comum que imagens ou escritos de tempos remotos sejam resgatados em perfis de pessoas que ganham notoriedade, geralmente com intuito de gerar constrangimentos. Vejamos o exemplo da médica Marcela McGowan, que participou do reality show Big Brother Brasil em 2020. Em decorrência da visibilidade adquirida pela participante do programa, internautas resgataram postagens feitas por Marcela na rede social Twitter, no ano de 2013, nas quais ela tecia comentários deselegantes sobre a então Presidenta Dilma Rousseff[2].

De 2013 a 2020, certamente a personalidade de Marcela se desenvolveu. É provável que seu pensamento tenha mudado, e que as postagens de tempos remotos não mais traduzissem suas visões sobre a vida. Todavia, essas publicações do passado podem ser facilmente resgatadas e reproduzidas em contextos desabonadores, na contramão da realização da pessoa – que é o norte para a análise de situações envolvendo violações a direitos da personalidade.

A situação aqui retratada apenas visa ilustrar esse caráter perpetuador daquilo que é lançado nas redes sociais, que é incompatível com o atributo da irrenunciabilidade dos direitos da personalidade. A porção da personalidade livremente disponibilizada pelo usuário em postagens e publicações não deve ficar ali armazenada de forma irrestrita e indelével. Soa razoável e desejável estabelecer-se uma limitação temporal para o armazenamento dessas informações – esse é um dos parâmetros de sopesamento que propomos no artigo “Direitos da personalidade e liberdade de expressão nas redes sociais: atualizando critérios de ponderação”, que integra a coletânea da obra “Liberdade de expressão e relações privadas”. No trabalho, traçamos reflexões sobre as novas possibilidades de tutela de direitos da personalidade nos contextos tão peculiares trazidos com a popularização das redes sociais.

Os atributos dessa categoria de direitos nos ajudam nessa discussão. Podemos citar como características dos direitos da personalidade apontadas pela doutrina: a generalidade, pela qual esses direitos seriam concedidos a todo cidadão, pelo só fato de ser; a extrapatrimonialidade, pela qual não estariam restritos à mera dimensão econômica, ainda que o dano decorrente de sua violação possa ser indenizável; o caráter absoluto, por serem oponíveis erga omnes; e a inalienabilidade, relacionada à irrenunciabilidade e impenhorabilidade, ponto que comporta maior grau de discussão, haja vista a situação jurídica dos atos lesivos a direitos da personalidade cometidos com consentimento do interessado[3].

São, sem dúvida, atributos que dão conteúdo ético a essa categoria de direitos, e orientam que sua disposição deve estar atrelada a uma lógica de afirmação e valorização da pessoa, não sendo juridicamente adequado pensar uma sistemática de livre disposição de direitos da personalidade, na contramão dos interesses do próprio titular. A liberdade de expressão não deve ser usada como parâmetro para viabilizar uma disposição irrestrita de valores personalíssimos no ambiente virtual.

Se nos icônicos casos Lüth e Lebach temos uma discussão sobre imprensa e direito ao esquecimento, hoje temos esse debate sendo travado em esferas muito mais abrangentes. Observamos um universo de pessoas sendo diariamente lembradas de passados longínquos, registrados há anos em postagens banais, que vêm à tona através de lembretes gerados mecanicamente por algoritmos que se valem de bancos de dados alimentados pelos próprios usuários.

O “direito ao esquecimento” parece cada vez mais esquecido, e a disposição da própria imagem parece ser cada vez mais irrestrita. Será que há meios de compatibilizarmos as transformações da sociedade com a relevante tradição da categoria dos direitos da personalidade?

No texto mencionado, discutimos a atualização dos critérios tradicionalmente utilizados na regulação da atividade jornalística, alcançando possibilidades para novos critérios, adequados às peculiaridades das redes sociais e da sociedade da informação.

Convidamos o leitor a aprofundar essa reflexão através da leitura do texto!

Gostou? Curta, comente, salve e compartilhe! Afinal as redes sociais podem e devem ser usadas não só para a disposição de direitos da personalidade, mas também para a divulgação científica e o adensamento do debate crítico!

 

Ana Carla Harmatiuk Matos é mestre e doutora
pela Universidade Federal do Paraná. Mestre em Derecho Humano
pela Universidad Internacional de Andalucía.
Tutora Diritto na Universidade di Pisa – Itália.
Professora na graduação, mestrado e doutorado em Direito
da Universidade Federal do Paraná. Professora de Direito Civil e de Direitos Humanos.
Advogada. Diretora da Região Sul do IBDFam. Vice-presidente do IBDCivil.

 

Hermano Victor Faustino Câmara
é doutorando em Direito das Relações pela UFPR e Professor nas áreas de Direito Privado e Direitos Humanos na UniSecal, em Ponta Grossa, onde coordena o projeto de pesquisa “Direitos da personalidade na contemporaneidade”. É pesquisador dedicado às temáticas do direito das famílias, com foco na abordagem do direito civil constitucional.

 

[1] SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2014, p. 4.
[2] PORTAL METRÓPOLES. Ex-BBB20 Marcela Mc Gowan pede perdão por ofensas contra Dilma Rousseff. Disponível em: <https://www.metropoles.com/entretenimento/bbb/ex-bbb20-marcela-mc-gowan-pede-perdao-por-ofensas-contra-dilma-rousseff> Acesso em: 13/01/2020.
[3] TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato. Fundamentos do Direito Civil. Vol. 1 – Teoria Geral do Direito Civil, 2020. Cap. VII, item 3, sem paginação.

 

Aprofunde-se mais sobre o tema:

Um comentário em “Até onde deve ir a livre disposição de direitos da personalidade nas redes sociais? | Coluna Direito Civil

  1. Leônidas Nogueira de Souza disse:

    Muito interessante o artigo. Gostei bastante. No momento, há uma perseguição desenfreada do judiciário, no tocante às mensagens transmitidas pela internet. A sociedade está sob forte ameaça. Até quando? Abraços.

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